terça-feira, 31 de março de 2015

O brincalhão Feymnan: inércia e ontoteologia



Um brincalhão genial
A Física releva da ontoteologia
E como sair da ontoteologia?
Inércia e gravidade
Inércia das células? auto-reprodução e ‘órgãos’


Um brincalhão genial
1. “Queria muito aprender a desenhar, por uma razão que guardava para mim: queria transmitir a emoção que sinto sobre a beleza do mundo. É difícil de descrever porque é uma emoção. É análoga ao sentimento que se tem em religião e que tem a ver com um deus que controla tudo no universo inteiro: sentimos um aspecto de generalidade quando pensamos como as coisas que parecem tão diferentes e se comportam de maneira tão diversa são todas dirigidas de ‘detrás do palco’ pela mesma organização, as mesmas leis físicas. É uma apreciação da beleza matemática da natureza, de como ela funciona por dentro, uma compreensão de que os fenómenos que vemos resultam da complexidade dos mecanismos internos que relacionam os átomos; um sentimento de como isto é espectacular e maravilhoso. É um sentimento de veneração – de veneração científica – que eu pensava poder comunicar, através de um desenho, a uma pessoa que também tivesse sentido essa emoção. Poderia recordar-lhe, por um momento, este sentimento sobre as glórias do universo” (Richard P. Feynman e Ralph Leighton, “Está a brincar, Sr. Feynman?” Retrato de um físico enquanto homem, p. 249)[1]
2. É um livro admirável em que Feynman conta aventuras sem conta desde adolescente que mexia em máquinas até arrombar fechaduras e cofres com ficheiros secretos relativos à futura bomba atómica americana em que ele, rapaz novo, colaborou, brincadeiras de todo o calibre e aventuras eróticas mais ou menos tímidas, a tocar tambor numa escola (pobre) de samba no Carnaval do Rio de Janeiro, a estudar japonês quando um dia lá foi num grupo de físicos e esta de aprender a desenhar, com esta motivação, chegando a fazer exposições individuais com pseudónimo e a vender desenhos. O homem era admiravelmente inteligente sem ser vaidoso, e a gente farta-se de rir com as peripécias que inventou. Mas esta citação, que não era destinada a rir, permite pensar a ciência dele e retomar uma outra, dum livro sério que relata seis lições de Física.

A Física releva da ontoteologia
3. “Newton não elaborou hipóteses, ficou satisfeito por descobrir o que ela [a gravidade] fazia, sem se interessar pelo seu mecanismo. Ninguém desde então propôs qualquer mecanismo. É característico das leis físicas terem este carácter abstracto. A lei da conservação da energia é um teorema respeitante a quantidades que têm de ser calculadas e adicionadas conjuntamente, sem se mencionarem os mecanismos, e do mesmo modo as leis mais importantes da mecânica são leis matemáticas quantitativas para as quais não há mecanismo disponível. Porque é que nós podemos utilizar a matemática sem um mecanismo por detrás dela? Ninguém sabe” (Richard P. Feynman, Seis lições sobre os fundamentos da física, p. 128)[2]. Ora Galileu sabia! como tentei sugerir no texto “Questão prigoginiana sobre a energia, a força e a entropia” (neste blogue) em que usei esta leitura de Feynman para propor que a Física moderna é ontoteológica, ao fazer predominar a ‘substância’ sobre o campo de forças (diferencial, o ‘campo’ é substancialmente ‘nada’), os átomos sobre as forças electromagnéticas, a carga eléctrica sobre o respectivo campo. Acontece que a maneira como justifica o seu desejo de aprender a desenhar, ele, que foi muito fraco aluno a desenho no liceu, revela aqui uma paixão inesperada, ao encontrar um pintor que o ensinou, esta justificação justifica essa ontoteologia. As “glórias do universo” faz lembrar como o livro bíblico de Job, depois duma longa queixa a Deus, acaba por celebrar a Glória dele pela criação das coisas (Steiner, A gramática da criação).
4. É a isso que vou brincar, por minha vez, retomando outros textos recentes neste blogue. Ele mesmo dá o lá: “emoção [...] análoga ao sentimento que se tem em religião e que tem a ver com um deus que controla tudo no universo inteiro”, “como as coisas que parecem tão diferentes e se comportam de maneira tão diversa são todas dirigidas de ‘detrás do palco’ pela mesma organização”. O ‘deus’ controla tudo, tal como – análogo (ana-, repete, -logos, discurso) – as coisas são todas dirigidas de ‘detrás do palco’ pela mesma organização: o controle de deus é análogo à direcção de ‘detrás do palco’, isto é ‘por dentro’, pela mesma organização, enquanto que o “universo” é o mesmo nos dois casos, o das “coisas”, aqui nem é analogia (a ‘veneração’, atitude religiosa, quiçá artística também, é ‘científica’). A emoção da beleza é interna, vem de dentro do que a contempla, incomunicável pelo discurso, por suposto Feynman não é capaz de outro discurso sobre o universo do que o de cientista, mas espera que seja comunicável pelo desenho. Isto é, Feynman, cientista e desenhador, ocupa face às coisas (ta onta, os entes do universo) a posição de estar fora e em face delas, como ‘deus’ (theos) segundo os religiosos, que ele não é, mas conhecedor d’ “as mesmas leis físicas [...], a natureza como ela funciona por dentro, uma compreensão de que os fenómenos que vemos resultam da complexidade dos mecanismos internos que relacionam os átomos”. As coisas, os mecanismos internos, os átomos: as ‘substâncias’ no seu ‘interior’. Se sabemos que Kant integrou a mecânica de Newton na sua Critica da razão pura (Jules Vuillemin)[3], podemos perceber como estas ‘substâncias’ foram consideradas por ele númenos, coisas em si incognoscíveis, o que corresponde à noção de “qualidade” de Newton, aquilo dos Antigos (Aristóteles, é claro) que a sua Filosofia natural ou experimental tinha abandonado pela “quantidade”, devido aos princípios da matemática. “Porque é que nós podemos utilizar a matemática sem um mecanismo por detrás dela? perguntava Feynman. Ninguém sabe”. Newton sabia, Galileu também, que percebera que medir o tempo em termos de peso de água valia o mesmo que com um cronómetro de que não dispunha, bastavam-lhe sobre o tempo (seja ele o que for, que S. Agostinho não sabia teoricamente, só na prática quotidiana) as “diferenças e proporções” medidas, geométricas, matemáticas. Os tais “mecanismos internos”, consistiam na questão de ficcionar hipóteses, e para a força da gravidade não conseguiu, como Feynman disse que a Física moderna, apesar de Einstein e Heisenberg, continua a não saber em que é que ela consiste, nem a energia. E aqui ele não está a brincar, está a falar duma ferida dele que desenhar não basta para curar, morreu sem saber, este homem de tantas e tão incríveis curiosidades. Faz pena. Tanto mais que só com Física, com a que ele sabia, não era possível chegar lá, era preciso reverter a questão, tirá-la da ontoteologia, colocá-la numa Fenomenologia com Ciências.
5. O que é a ontoteologia? Foi invenção de Platão: a cada coisa da terra corresponde uma Forma ideal (eidos) eterna que a alma conhece quando separada do corpo. Com o cristianismo, esta Forma tornou-se na relação do Criador com cada criatura que ele criou e contem na existência. Com Descartes, a relação do pensamento como ‘ideia’ à coisa dessa ‘ideia’, depois e até hoje, do ‘sujeito’ ao ‘objecto’. A coisa é conhecida fora do mundo dela, fora do contexto onde foi originada, onde tem a sua lógica específica. É o que faz a definição e também o laboratório: retirar a ‘coisa’ a conhecer do seu contexto e encontrar-lhe a essência, que ela tem em comum com as da mesma espécie (eidos). Ora, quando Feynman pergunta pelos “mecanismos” de qualquer coisa, obviamente que esses mecanismos não jogam nesta relação do conhecido ao conhecedor, mas na lógica do conhecido no seu contexto, seja o que for o conhecedor. Um exemplo simples: posso olhar e apreciar um automóvel, ‘pensá-lo’, mas isso não serve para nada em termos de o guiar. Para isso, tenho que aprender as regras do mecanismo, ser não alguém que conhece o mecanismo, mas tornar-me uma das peças dele, a peça piloto, que permite ao automóvel funcionar como mecanismo na estrada do tráfego, segundo as leis deste a que a sua construção obedece. Um automóvel não se conhece como um ‘mecanismo’ dentro dum laboratório, os engenheiros que fabricam as suas peças têm que ter um olho na respectiva ciência e outro na lei do tráfego. Um outro exemplo ontoteológico de Feynman é quando ele explica que não queria receber o prémio Nobel, porque “o meu pai ensinara-me a ser contra a realeza e a pompa (estava no negócio dos uniformes, pelo que conhecia a diferença entre um homem com uniforme e um homem sem uniforme – é o mesmo homem)” (p. 289). A argúcia dele aqui joga duma forma admirável eticamente – ele não queria receber o Nobel! – mas falha enquanto cientista: um policia à paisana não é o mesmo que um polícia fardado, a ‘essência’ da autoridade policial passa pelo uniforme e pelas armas! Como se o físico, ‘substancialista’, não fosse capaz de distinguir funções sociais, porque tinha que espreitar para dentro do policia (vê-lo nu?) para saber... o quê? Nem a raça nem a orientação sexual, mas que era um homem, uma ‘substância’ vestida cujo fato não interessa. É possível que muitas das coisas engraçadas que ele conta relevem da mesma ontoteologia, daquilo a que se chama fisicalismo.
6. Ora, nem a matemática nem a música são susceptíveis de ontoteologia, têm o seu próprio sistema de unidades (números e símbolos definidos como operatórios, uma, notas musicais sem significado externo, a outra). É por isso que Galileu enunciou as “diferenças e proporções” medidas, geométricas, coisas matemáticas, de laboratório (o cronómetro e o metro: as duas palavras enunciam a ‘medida’ do tempo e do espaço). Aonde Galileu se enganou, foi numa afirmação que é muito citada, segundo a qual “o grandíssimo livro [da natureza] está escrito em língua matemática” ou “a matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo”: é justamente na natureza que a matemática não funciona e foi por isso que se inventou a geometria e depois o laboratório. Ora, o que falta aos cientistas é o que não podem deixar de ter os engenheiros: saber sair dos limites do laboratório para a tal ‘natureza’, onde se nasce e se cresce, para a dita ‘realidade’ onde se não verificam as ‘leis da natureza’, senão não seriam precisos os laboratórios para as descobrir.

E como sair da ontoteologia?
7. Então como proceder? Sobre o laboratório, o fenomenólogo não tem nada a dizer, tudo o que sabe aprendeu com os físicos, teve a sorte inclusive de ter sido aluno de Rómulo de Carvalho no liceu Pedro Nunes. Mas descobriu que um químico belga, Ilya Prigogine, tinha pegado em fenómenos da química do metabolismo das células e, sem aparentemente se interessar pela biologia propriamente dita, fez uma descoberta de Física notabilíssima, revolucionando o motivo termodinâmico de entropia. Trabalhando no domínio da Biologia, descobriu algo que a Física ignora no seu próprio campo, com excepção de alguns casos hidro e termodinâmicos. E o fenomenólogo veio a compreender que esta descoberta se aproximava muito duma outra semelhante: um médico descobre um fenómeno de deslocamento de energias psíquicas (mas que não sabe nem pode medir) como explicando duas das questões mais difíceis dentre todas as que na Europa se colocaram sobre os humanos. Não apenas a “interpretação dos sonhos” (que, tanto quanto eu saiba, nunca ninguém explicou de forma consistente como Freud e ainda por cima experimental, já que terapia de psicoses) mas também nada mais nada menos do que uma maneira de compreender a união entre o corpo e a alma, entre a Biologia e a Psicologia, o busillis de toda a Filosofia, que anda agora a tentar compreender a Neurologia. Portanto, primeiro passo do procedimento: utilizar a produção de entropia de Prigogine para entender a Biologia, do molecular das células às anatomias, à Neurologia e à lei da selva. Mas também aplicar a entropia à Linguística e à questão que apaixonou os estruturalistas dos anos 60 e 70, da relação entre a língua e as falas, a estrutura e o tempo histórico, mas que deixaram sem solução, e ainda à de saber em que é que consiste uma sociedade humana em geral, a que Lévi-Strauss deu resposta mas ela ficou desapercebida sob as polémicas dessa época extraordinária em que justamente, oh físicos!, a física e a química e a biologia, todas a revolucionarem-se, estiveram fora dos debates entre filosofias e ciências sociais e humanas. Este segundo passo do procedimento só foi possível por ter havido no caminho uma tese sobre a questão linguística evocada e um livro antes que relacionava textos e as sociedades em que eles são escritos, questões essas que abriram o espaço, quer a Prigogine e à sua entropia de estruturas dissipativas, quer à revolução fenomenológica operada por Husserl, Heidegger (o humano ‘fora’ da sua interioridade, ex-sistindo no mundo) e Derrida (a linguagem do pensamento dos humanos é uma escrita, uma inscrição nos seus cérebros).
8. Resumindo e concluindo. A proposta de Derrida do motivo de dupla ligação ou duplo laço permitiu enlaçar estes vários campos científicos uns com os outros a partir da Fenomenologia, Biologia, Linguística, Antropologia da sociedade, Psicanálise, sem outra intervenção da Física Química que não fosse a de Prigogine (mas sem essa nada feito, este tem um papel quase filosófico nesta fenomenologia). Estas cinco disciplinas, uma filosófica mais Prigogine, quatro sobre as principais ciências das coisas próprias da Terra que os outros astros ignoram, foram descritas nos capítulos 2 a 6 dum livro – Le Jeu des Sciences avec Heideggr et Derrida – cujo capítulo 7 forneceu uma elaboração fenomenológica comum às cinco disciplinas. Sobrava a Física Química, que fazia parte da constelação inicial de seis disciplinas, mas não parecera necessária à elaboração deste capítulo de síntese. Tratava-se então de tentar ver como é que esta síntese fenomenológica de Filosofia com as Ciências do mundo terrestre se aplicava ou não à Ciência dos astros. E foi uma catástrofe... gloriosa, destinada ao fracasso. Porque implicava uma revolução epistemológica notável da Física Química, que nenhum físico aceitaria vinda de outro lado, de não físicos, por duas razões: uma, é que, como Feynman mostra exuberantemente, dada a sua inteligência que ultrapassa tudo o que se possa imaginar, a Física está feita de forma ontoteológica e a transformação seria tão notável que não se vê como é que ela se poderia dar: se eles não lêem, se lerem não compreendem e respondem à filosofia com física; a outra razão é a humilhação que seria para a ciência que foi sempre, desde Galileu e Newton, o farol do que se entende por Ciência na Europa, praticamente até há muito pouco tempo único objecto da chamada Filosofia das Ciências, a humilhação de ter que se submeter a lógicas vindas das outras ciências. Sem esperança pois. A não ser que haja novos prigogines, físicos químicos que percebam que as suas questões necessitam de procurar fora dos seus paradigmas ontoteológicos.

Inércia e gravidade
9. Galileu, escreveu Feynman, “descobriu um facto muito notável [...] o princípio da inércia – se um corpo está em movimento, sem que algo actue sobre ele, e sem qualquer interferência exterior, ele continuará, para sempre, a deslocar-se a uma velocidade constante, em linha recta. (Porque é que ele se mantém em movimento? Não sabemos, mas é assim)” (2000, p. 113-4). Estas ignorâncias dos físicos sobre a força da gravidade, a energia, a inércia, deslumbraram-me quando li este livro. Não creio que eles falem disto habitualmente, nem sei se a maior parte deles ‘sabe’ que não se sabem estas coisas primordiais. Mas elas são propícias a uma ‘revolução epistemológica’ e os limites ontoteológicos do génio Feynman sugerem que ela tenha de vir de fora! Ora, não é brincar com as palavras, e se suceder que a dificuldade em compreender o que é a inércia vem de se pensar que ela resulta do ‘interior’ dum grave (rocha, água, ar): a inércia tem que ser uma ‘propriedade interna’, ‘própria’, do grave, não pode ter que ver com o ‘fora’? Com quê? Já que se trata de ‘grave’, porque não da ‘gravidade’? a posição dele na terra depende dos outros graves vizinhos que o param (como dizia Galileu, “a condição natural dos corpos não é o repouso, mas o movimento”) devido à gravidade que joga neles e portanto também no vizinho encostado a eles; se algo destes encostados, mormente líquido ou gás, é alterável quimicamente com esse grave, aí são forças electromagnéticas de um e do outro que jogam nessa alteração. Então, dá para pensar que a inércia de cada grave será o efeito das forças nucleares dos seus átomos, é a impenetrabilidade que resiste à sua desagregação, a qual não se dá sem explosão nuclear nem com mudança de estado, para líquido ou gasoso, no caso da água, por exemplo, estas mudanças mantêm as moléculas de H2O, “resistência dos materiais”, à liquefacção e gaseificação, à decomposição das moléculas, e dos átomos até a temperaturas que dêem cabo das forças nucleares; esta resistência do núcleo atómico é também o que oferece o grave ao jogo da gravidade em volta dele ou a transformações químicas. Então a inércia não é apenas ‘interna’, é colocação em campos de forças, gravitacionais e electromagnéticos, isto é, dentro e fora. Porque é que é assim? Porque as três forças fundamentais do universo não jogam nas mesmas distâncias e massas, não são ‘universais’ no sentido de tudo as ter. Que a gravidade não jogue nos protões e neutrões nem nos electrões da gasolina líquida parece dever deduzir-se de eles explodirem quando as respectivas forças, nucleares e electromagnéticas, lhes são retiradas, em vez de serem atraídas para o centro da terra. Ou sou eu que estou enganado? ao pretender compreender a estrutura atómica à luz da entropia positiva, essas forças tendo como função reterem as partículas da entropia negativa (Clausius) que é a explosão.

Inércia das células? auto-reprodução e ‘órgãos’
10. E o que se passa, em termos de inércia com as células? A inércia delas é a auto-reprodução, que verifica claramente a frase de Galileu: se viver implica repousar, o movimento é que é a regra. Ora, nos ‘organismos’ as células ‘organizaram-se’ fabricando ‘órgãos’ que não sejam ‘inertes’ na cena, os que dão para ver, para cheirar, etc., à base de química e de electricidade; mas entre todos os outros, a evolução criou nomeadamente os órgãos que chamamos ‘músculos’ para fazer força; com efeito, foram eles que inventaram, sabem o quê?, as forças locais que, segundo creio, têm enganado os físicos desde Newton sobre a noção de força, dando-lhes o modelo gnosiológico para quererem compreender a força da gravidade, e portanto não o conseguirem, nem a nuclear. Crer que haja partículas para transportar as forças de gravidade, os ‘gravitões’, é para o fenomenólogo o cúmulo da ontoteologia! Então como é que explicam as explosões de gasolina ou nucleaures, quais gravitões?
11. Já agora, também podemos concluir que, se a inércia das células for a sua auto-reprodução, elas não determinam, à laia de ‘mecanismos internos’ à Feynman, o conjunto do organismo, a sua anatomia: os genes não são ontoteológicos. Pelo contrário, as anatomias foram inventadas lentamente pela evolução para suprirem a inércia celular, criando ‘órgãos’ não inertes capazes de funcionarem na selva ecológica, de ver, ouvir, caçar, fugir, com um órgão neuronal incrível que guia tudo isto, mas na atenção constante ao fora, onde está o que há que caçar e donde vem o perigo de ser caçado. Donde que a lógica desta evolução tão surpreendente não possa ser comandada por genes de células que, inertes, são cegas sobre essa selva ecológica; tenha que ter a sua lógica em duplos laços que enlaçam quer o dentro quer o fora, a evolução sendo uma espécie de engenheira de auto-móveis (os animais, as plantas só enquanto crescem) que tem que fabricar os vários modelos de anatomia de forma adequada à necessidade de caçar e fugir. É que a lei da selva obedece a uma regra bioquímica, à necessidade de átomos de carbono em todas as moléculas dos vivos (excepto as de água) e desses átomos só serem acessíveis pela fotossíntese, exigirem primeiro herbívoros para que haja depois carnívoros. O que é que os genes sabem disto, deste fora e dentro incessante?


[1] [Surely You’re Joking Mr. Feynman !, 1985], trad. Isabel Neves, Gradiva, Ciência aberta 19983.
[2] [Six Easy Pieces, org. Robert B. Leighton e Matthew Sands, 1963, 1989, 1995], trad. Mª Teresa Escoval, ed. Presença, 2000.
[3] Physique et métaphysique kantiennes, Paris, PUF, 1955; rééd. PUF, coll. «Dito», 1987.

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