1. Em sequência ao texto Física Química e gramatologia, a questão do tempo que interessou o Público nos seus 25 felizes anos, para nós leitores, pode
ser tomada de outra forma. Percebe-se que a definição de tempo de Aristóteles,
do tempo como “o número do movimento, segundo o antes e o depois”, implica que
é a partir do movimento que ele procede e é possível que Francisco Limpo
Queiroz tenha razão contra o Heidegger interpretando Aristóteles (http://filosofar.blogs.sapo.pt/105816.html): pelo menos, acho que
se pode dizer que é o movimento que no grego precede o tempo, ao invés de Heidegger de Ser e Tempo, que creio ser refém da maneira como a física de
Galileu se apoderou do movimento e mediu o tempo, introduzindo essa medida como categoria
geométrica, como diria Newton, que entendia a Filosofia natural como geometria
mais mecânica. Igualmente o espaço em geometria, o nome o diz, é uma medida, uma diferença, uma distância
entre dois lugares; o tempo será uma diferença entre dois momentos, uma
diferância, se se pudesse dizer recorrendo a Derrida. Para este pensador
pós-heideggeriano, se houvesse algo de prévio epistemologicamente, seria o jogo
do rasto ou différance que
implica o espácio-temporalização, a relação estrutural ao outro e a linguagem
como inscrição. Se não é prévio, é porque justamente desse jogo só sabemos no
movimento das ‘coisas’ que ele é, que ele dá. Pode-se dizer então que o tempo é
uma abstracção, tal como o espaço (categoria desconhecida dos gregos, que só
conheciam o lugar), o peso, a
força, mas também a liberdade e tantos outros motivos filosóficos: o que
existe são coisas temporais entre o seu surgir e o seu desaparecer, sendo que surgem sempre de outro(s) e para
outro(s) desaparecem, coisas essas que também são espaciais, pesadas,
indeterminadas, etc. Ora, as temporalidades são muito variadas. Sejam três exemplos.
2. Um relógio com ponteiros dá a
aparência dum tempo linear, é
para dar essa aparência que ele é feito, comprado, usado. Mas olhando para o
funcionamento dele vê-se que ele tem três temporalidades cíclicas: a do ponteiro dos segundos que percorre o mostrador
todos os minutos, o dos minutos todas as horas e o das horas de 12 em 12 horas.
Quem não souber da maneira ocidental de medir o tempo, olha para um relógio
perplexo, achando certamente graça aos movimentos dos ponteiros, embora só dê
pelo dos segundos.
3. Segundo exemplo. Um livro escrito
para ser lido (também dá para uma conversa, alguém que fala e outro ouve)
também exibe linhas de frases
que os olhos vão seguir. Mas basta pensar que quem não souber a língua pode
percorrer as linhas com os olhos e não ler, para se perceber que há mais do que
essa linearidade. As letras, com acentos e ditongos, fazem uma quarentena de elementos
que se repetem vertiginosamente nas palavras, assim como as palavras se
encaixam sintacticamente em frases e estas se ligam entre elas sucessivamente.
Mas esta temporalidade complica-se: à medida que se avança na leitura das
páginas, é necessário ir retendo na memória, não de cor é certo, o que se leu
como condição do que se está a ler; e também há que manter a antecipação, o
suspense, do que falta ler. Então a temporalidade da leitura das linhas
complica-se com o movimento de reter o já lido e de diferir o por ler. E como é
que se retém o que se leu, se não é de cor? Quando se volta atrás, ou no dia
seguinte, percebe-se: ‘isto já li’; e leste o quê? Resume-se o que se leu, o
que é outra forma ainda de temporalidade, o da possibilidade de resumir (que
não tem a temporalidade da escrita matemática, nem a da música, nem a das
imagens).
4. Terceiro exemplo, a temporalidade da nossa
digestão. Ela tem dois termos, o primeiro é o despertar do apetite, a vontade
de comer, o último é o metabolismo das células jogando sobre as proteínas, hidratos de carbono, gorduras,
vitaminas e sais minerais que lhes chegaram pelo sangue, algumas horas
depois de se ter comido. Ainda aqui, há um processo que é apreendido de forma
linear pelos nutricionistas, mas também a temporalidade se complica: é que a
vontade de comer, que nos vem por via hormonal, antecipa as duas ou três horas
que os nutrientes levam a chegar às células, começa a soar mais cedo. Assim
como outra hormona vem fechar o apetite, dá-lo como saciado ao fim duma certa
quantidade de comida, bem antes outra vez do tempo digestivo se ter completado.
Não é linear, não. E pensar que os bebés mamam de três em três horas, já com
esta temporalidade bizarra que antecipa e depois adia: ao fim de algumas
semanas, as mães começam a esticar os tempos da noite, de forma a que ele se
habitue a uma pausa nesse ciclo das mamadas.
5. Voltemos ao princípio.
Galileu, na experiência que
conta no Discurso sobre duas novas ciências, mostra claramente que para ele o movimento
precede o tempo. Ora, não havendo então cronómetros, para medir o
tempo Galileu inventou uma técnica astuciosa: pesou-o. Ele conta assim: “para medirmos o tempo,
tomávamos um grande balde cheio de água que atávamos bem alto; por um orifício
estreito praticado no fundo, escapava-se um fio de água que recolhíamos num recipiente
durante o tempo em que a bolinha rolava na calha. As quantidades de água assim
recolhidas eram pesadas de cada vez com uma balança muito sensível, e as
diferenças e proporções entre os pesos davam-nos as diferenças e proporções
entre os tempos” (ed. fr. 1970, p.144). Espectacular!
Medir-se o tempo em segundos ou em gramas de água (nossas unidades) é a mesma
coisa do ponto de vista do próprio conhecimento científico! O que significa que
é logo o primeiro grande físico europeu na primeira narrativa recebida duma
experiência que confessa que em física não se trata do ‘tempo’ nem aliás do
‘espaço’, mas apenas de medidas, de diferenças não substanciais. Elas bastam à física que, a esse nível, não tem
nada a fazer nem com um nem com o outro. Acrescente-se e escandalize-se os
físicos: ela não sabe nem tem que saber o que ‘é’ o tempo ou o espaço, só sabe
de diferenças medidas e das respectivas proporções, para o que precisa de
instrumentos adaptados e de convenções adoptadas pelos físicos sobre as
respectivas unidades, como o metro ou o pé, o segundo ou a grama de água, em
resumo, além de matemática, precisa essencialmente de técnica. O discurso
teórico com que o físico interpreta as suas experiências é da ordem da
definição, recebido da filosofia, sujeito como esta a confrontos, como a
história demonstra, a normalidades e a revoluções.
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