1. O jornalista António Guerreiro,
cujos textos no Ípsilon,
revista cultural do jornal Público, todas as sextas feiras são da melhor intervenção filosófica que se faz
entre nós a nível de jornais – ele que não cursou filosofia mas literatura,
ombreia com a gente da literatura como Silvina Rodrigues Lopes, Manuel Gusmão,
Fernando Guerreiro e outros, com quem me entendo melhor em filosofia do que com
os filósofos profissionais – na sua “Estação meteorológica” (de 16/09), onde
costuma diagnosticar o estado do tempo no que ao pensamento mediático diz
respeito, divertiu-se a glosar o uso que se tornou habitual do termo
‘desconstrução’ por qualquer comentador, embora a leste das terminologias
filosóficas actuais, que até nem saberá quem é Jacques Derrida, o filósofo que
criou o termo em francês na peugada doutro alemão de Heidegger. A dizer
verdade, A. Guerreiro não foi tão feliz em retirar pensamento da sua análise
como costuma, nem seria fácil em espaço tão reduzido, e foi o que me estimulou
aqui: o porquê do motivo da desconstrução, que pode ele elucidar sobre a crise de civilização que manifestamente atravessamos,
sem que ninguém saiba para onde se caminha.
2. A origem heideggeriana, Abau, Destruktion da ontologia ocidental, versou ‘destruir’ o substancialismo aristotélico desta, propondo o motivo de diferença
ontológica – entre o Ser (não
ente, substituído mais tarde pelo Ereignis) e os entes substanciais – como chave de interpretação da história vinda
dos Gregos e dos Europeus do século XVII a gerar a modernidade que hoje se
globalizou. Derrida prolongou esse pensamento propondo uma diferença
gramatológica, uma différance,
prévia à diferença ontológica heideggeriana que ainda terá ficado em parte
sujeita ao que denunciou. Tenho escrito sobre isso neste blogue. Aqui
limitar-me-ei a definir este motivo gramatológico da différance como o que permite entender todo o movimento do
que quer que seja, a) como jogo que espacializa-temporaliza, b) relacionado
estruturalmente a Outrem donde ele recebe tanto as regras diferenciais,
económicas, que o especificam enquanto movimento (e por aí susceptível de
ciência) como o seu excesso singular, o que o distingue dos outros indivíduos
da sua espécie, c) e nomeadamente dando conta da escritura (instituição
diferencial social) como origem do logos, isto é da linguagem oral e do pensamento.
3. De a), resulta que não há
espaço-tempo, como julgam os físicos, exterior ou separado das coisas que se
movem, que espaço é distância entre lugares e tempo medida do movimento segundo
o antes e o depois, como definiu luminosamente Aristóteles, tendo os físicos
deixado de compreender o ‘antes e o depois’, o sentido histórico do tempo
irreversível, como sublinhou Prigogine fortemente (embora sem ligar ao velho
mestre do Liceu). De b), resulta que nada é isolado do seu contexto, o que dá
para já uma orientação para o motivo da desconstrução: ela opõe-se à definição que Sócrates, Platão e Aristóteles inventaram,
retirando o definido do seu contexto singular para o generalizar como essência;
contextualizar, algo que hoje em dia se faz com alguma frequência, faz parte do
gesto desconstrutivo, em rigor infindável, já que todo o contexto tem contexto
também, nunca se ‘acaba’ a desconstrução, ela é indefinida. De c), resulta algo
que nos leva ao âmago dela, que tem a ver com o que, ‘construído’ segundo uma
oposição, é des-feito: é a contradição que se joga no movimento e tem
incidências no ‘sentido’ que damos a esse movimento. O que quer dizer que a
desconstrução joga-se segundo um aforismo derridiano, “não há fora de texto” (De
la Grammatologie, p. 227),
joga-se nos textos enquanto
nossa maneira de sabermos os movimentos do que quer que seja, joga-se no que os
textos transportam de uns para os outros, nas leituras, nas pedagogias, nas
aprendizagens, mas também, lá iremos, nas variadas técnicas. O que se
desconstroi afecta-nos a todos, saibamo-lo ou não.
4. O que chamei ‘incidências no
sentido’ ilustra-se na maneira como privilegiamos espontaneamente o nosso
pensamento interior, como se pensa frequentemente que esse pensamento tem que
buscar palavras para se dizer e comunicar a outros, como enfim um texto
escrito, que se afasta daquele que o escreveu e perdura além da sua morte, é
menos íntimo, mais artificial, sei lá, desde Platão no Fedro que essa condenação da escrita pelo logos foi exarada e retida pela tradição, até por
aquela que se reclamava de textos inspirados pela divindade: essa ‘inspiração’
era desconfiança da escrita, da ‘letra’, em favor do ‘espírito’. É a ‘letra’
que é sujeita no sentido pelo ‘espírito’, achamos que o pensamento do autor
domina aquilo que escreveu. Eis uma maneira de dizer um alvo da desconstrução,
que se dirigirá sistematicamente na tradição ocidental a todas as oposições conceptuais
– inteligível / sensível, alma / corpo ou mundo, sujeito / objecto, interior /
exterior, e por aí fora, em que o primeiro termo é privilegiado como fundamento
do outro e o exclui de si. Derrida sistematiza a sua estratégia desconstrutiva
num duplo gesto: primeiro, inverter o par de opostos, privilegiando
provisoriamente o termo subordinado, em seguida deslocar o conjunto de maneira
a encontrar uma fonte comum aos dois termos e verificando a sua
indecidibilidade, sobre a qual o pensamento ocidental teria de-cidido por
de-finição filosófica. Todos os movimentos em que estes termos opostos têm um
lugar interpretativo decisivo, são a repensar, no Ocidente; tudo é a repensar,
até em biologia. Mas não se trata apenas de ‘pensar’: como justamente está a suceder,
as crises são resultado das desconstruções do que foi construído ao longo
dos séculos, da Grécia e Roma,
Cristandade e Europa; “as quatro se vão para onde vai toda a idade” (dizia Fernando
Pessoa algures na Mensagem),
justamente não sabemos para onde vai, se ainda haverá outra ‘idade’.
5. O que foi privilegiado como
inteligível foi o logos,
discurso ou pensamento como capacidade humana acima da corporalidade animal,
capacidade que torna os humanos cúmplices das divindades, logos do homem, senhor (da casa) sobre animais,
escravos, crianças e mulheres, e também logos de regulação da cidade por via das leis. Dito a
correr, nas sociedades de dominação económica agrícola, o discurso
politico-religioso coordenava o social e quando falhava a ordem política era o
recurso às armas da casta dominante, nobres guerreiros, que resolvia em última
instância os conflitos; o predomínio optimista da razão proposto pelo
Iluminismo deveria substituir as armas no papel politico (da aristocracia), a
razão devendo ser capaz de dominar a natureza, incluindo a natureza humana a
educar pela escola obrigatória, substituta da ordem religiosa. Este optimismo
relevava do logos, que se
reclamava da ciência e do progresso vindo com a industrialização pela máquina e
outras técnicas, mormente de ordem química e minorava o papel do laboratório
(técnica e matemática, isto é, escrita) nessa ciência, que se julgava triunfo
do pensamento humano. Como tenho escrito neste blogue, a exactidão das ciências
físicas e químicas vem do papel da
álgebra e das técnicas de medição em unidades convencionais, mantém-se aquém
das disputas teóricas interpretativas do labor do laboratório e por aí escapa
em parte ao controlo que cientistas e engenheiros têm sobre o que descobrem e
inventam. Uma parte das crises vem daí: a poluição, as alterações climáticas,
os acidentes da viação, por exemplos que vão fora da vontade humana, sem contar
pois com as armas atómicas, que dão conta de outra parte das crises, a que tem
a ver com economia e finanças.
6. Estas ‘ciências’ têm-se revelado
impotentes face às crises, pela mesma razão pela qual a invenção da pólvora deu
para fabricar espingardas e canhões e a da cisão atómica para as bombas que
destruíram Hiroshima e Nagasaki: a ética elementar que manda “não matar” e deveria
impedir guerras em tempos cosmopolitas ficou muda diante da vontade de domínio
politico sobre outros humanos. Também economia e finanças albergam nos seus
mecanismos sociais elementares essa vontade de domínio económico e financeiro:
por exemplo, o imperativo de financiamento das economias, resultante de
necessidades de ordem técnica, é colocado como relevando dos desejos humanos de
enriquecer, julgados ‘inatos’, e da respectiva competição (não se trata de
moral mas de epistemologia, não sei como pode ser de outra maneira; face ao
crescimento do desemprego devido aos automatismos electrónicos, julgo que serão
as próprias crises que obrigarão a rever esta questão em sentido fortemente
regulador). Já a grande crise dos anos 1930 se manifestou como incontrolável e
gerando nacionalismos que se exacerbaram além do impossível, mas a dos anos
1980 em diante, que explodiu em 2008, teve um motor técnico muito mais forte, o
da aceleração electrónica das especulações.
7. As crises relevam de quê? Da técnica ser uma
‘escrita’, uma inscrição que por ela mesma altera o contexto onde é inserida
vinda de fora, subverte as
condições de equilíbrio social instável que aí predominavam. Máquinas,
químicas, engenharias genéticas, medicamentos, são obviamente coisas boas enquanto
produzem progresso, o que não só é indiscutível como opondo-se a qualquer opção
de voltar atrás das máquinas e da electricidade. O problema é a força dessas escritas
técnicas que não são sempre
controláveis pela razão humana, ainda que científica e filosófica. Se é certo
que a desconstrução é uma operação de pensamento filosófico, que pode fazer
alguns diagnósticos, digamos, o que se passa com as crises (como foram as
guerras de religião, as revoluções democráticas, as lutas pela escola laica e
tantas outras), é elas serem desconstrução das super-estruturas
politico-ideológicas que opera por si mesma, a partir de certos limiares de
transformação do contexto social, provocando movimentos fortes
desestabilizadores, sem que ninguém saiba como (assim os sismos e os vulcões
numa ordem que escapa à incidência dos humanos) reestruturar o que está
falhando sem recuos possíveis.
8. Diz-se com frequência e uma certa petulância de
hiper-modernos, que vivemos e trabalhamos em “sociedades de conhecimento”. Não
se sabe, em geral, que isso vem de Platão e Aristóteles, da tal de-finição que
de-cide retirar o definido, como essência inteligível, do seu contexto sensível, corporal, sujeito à geração e à corrupção, como diz com frequência Platão
com um certo desdém que comunicou ao cristianismo, anulando o amor das coisas
singulares que este trazia do judaísmo. Anti-aristotélica, a modernidade é muito
mais platónica do que se crê: os nossos argumentos científicos são sobre
‘essências’, pelo que as respectivas técnicas, inventadas integralmente em
‘matéria sensível’, empírica, variada, segundo as medidas ditadas pelos
laboratórios científicos, abrem contextos inéditos que, dele mesmo, o nosso
‘conhecimento’ (logos)
desconhece. As crises não são senão o testemunho excessivo desse
não-conhecimento: já Aristóteles teorizara que lógica e ciência não conhecem o
singular, o individual; e os laboratórios europeus também não, que os
movimentos que eles experimentam para retirar medidas que validem as equações
teóricas são movimentos de singulares quaisquer, condição da chamada universalidade
dessa ciência. A desconstrução opera aquém da oposição inteligível / sensível,
não opera nos laboratórios, mas nos contextos, por via das técnicas. A
sociedade do conhecimento só torna as crise mais graves, não são apenas “a
fome, a peste e a guerra” dos Medievais, ou melhor, são fomes, epidemias e
guerras muito mais graves.
9. No mesmo número do Público, o professor americano de Ciência Politica, Ian
Shapiro, argumenta sobre a grande dificuldade de “exportar democracia”,
chamando aliás a atenção para esta ter tido na Europa épocas em que desapareceu
e depois voltou, não é pois um dado adquirido entre os que seriam os seus
‘exportadores’, como indicia o triunfo do Brexit e a ameaça de Trump nos dois
países em que claramente ela melhor vingou (mas do outro lado do Atlântico com
longo apartheid). Aqui não
creio que seja a técnica desconstructiva a razão predominante, mas mais o que
ela destrói das antigas estruturas antropológicas. Não conheço nada dessas
coisas, mas creio que a ausência duma longa tradição de ‘almas’ dando lugar ao
sujeito e indivíduo europeu torna a questão mais complicada. O Japão parece
mostrar a possibilidade da importação da técnica ser solidária com a da
democracia, num estilo que parece respeitar as tradições nipónicas, enquanto
que a Índia independente mantém a democracia com a enorme resistência do regime
de castas em muitas zonas rurais e a China parece guardar a tradição imperial
do mandarinato apesar da resistência de elites para-ocidentais. O Islão. que
pareceria o mais próximo da tradição ocidental, tem estruturas antropológicas
que resistem fortemente, como infelizmente se tem visto na sua oscilação entre
regimes despóticos e islamistas. A África e muitas outras ex-colónias asiáticas
e do Pacífico conhecem regimes vindos de estruturas tribais e coloniais muito
recentes, não há, creio, experiência suficiente para se saber quantas gerações
serão necessárias, se for esse o caminho. Pois que também é muito certo o que
Ian Shapiro diz na sua primeira frase: “não acredito que a história se mova
numa direcção particular”. E a desconstrução nesta questão? O que eu sei dela
releva da história da ‘construção’ ocidental, não sei se as grandes culturas
indiana, chinesa e islâmica se prestam a esse tipo de diagnóstico
fenomenológico.
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/08/o-exorbitante-questao-de-metodo-de.html, extracto derridiano onde se encontra a frase
“[...] Pode-se
chamar ‘contexto’ toda a ‘história-real-do-mundo’, na qual este valor de
objectividade, e mais geralmente ainda o de verdade, adquiriram sentido e se
impuseram. [...] Uma das definições do que se chama desconstrução seria a
tomada em conta deste contexto sem bordo, a atenção mais viva e mais
larga possível ao contexto e portanto um momento incessante de recontextualização.
A frase, que para alguns se tornou uma espécie de slogan, em geral tão mal compreendido,
da desconstrução (“não há fora-de-texto”), não significa senão que não há
fora-de-contexto. Sob esta forma, que diz exactamente a mesma coisa, a fórmula
teria sem dúvida chocado menos” (Limited Inc.,
Galilée, 1990, p. 252.)