As reduções do pensamento filosófico tradicional
As reduções do pensamento fenomenológico
As reduções do pensamento bíblico
As reduções do pensamento chinês
As reduções dalguns pensamentos científicos
As reduções do pensamento das ciências das sociedades
Como que sem querer, levado por leituras e pela escrita,
tornei-me num experimentador de filosofia fora da filosofia,
vantagem (ou inconveniente,
dirão alguns) sem dúvida
de não ter sido filosófica a minha primeira formação.
O que segue é um exemplo de acrobacia fenomenológica:
pôr em paralelo o que é pensar
em filosofia, ciências, bíblia e chinês!
1. O que chamamos pensar é uma atitude que nos é necessária de vez em quando,
quando nos concentramos, como se diz, mas que não é tanto, como a palavra pode
sugerir, centrarmo-nos na nossa interioridade mas em relação ao que se chama de
forma vaga realidade, que se
nos dá habitualmente como uma espécie de cacafonia, muitas coisas sem ordem
entre elas em que nos conduzimos rotineiramente, vamos fazendo como de costume,
como aprendemos, ‘sem pensar’ justamente. É em relação a essa ordem habitual do
nosso habitar, em casa, na rua, no emprego ou onde seja, que algo nos impele
por vezes a ‘pensar’, a largar essa habituação rotineira para esse ‘algo’,
tenha ou não a ver com a situação concreta em que se está, já que pode ter a
ver com uma lembrança de um passado ou leitura recente, ou com um ‘que fazer?’
que se impõe com pertinência mas sem se saber bem como, ou ainda com um espanto
que nos assalta inesperadamente, ou simplesmente uma associação de ideias que
se revela não trivial. Tudo isto para dizer que pensar implica ‘abstraírmo-nos’
da tal ‘realidade’ envolvente, o que se vê e ouve por onde se anda, as
associações de ideias que incessantemente nos passam pela cabeça. Há que reduzir essa proliferação mais ou menos caótica que
perturba esse ‘algo’ que nos desperta para pensar, redução essa que visa reter apenas essa nova preocupação que nos veio.
As reduções do pensamento filosófico tradicional
2. Já nomear esse algo faz parte da
processo de redução, nem sempre os nomes do que se busca pensar são claros e a
sua restituição implica desligá-los das suas possibilidades abertas de
nomeação, mormente das suas possibilidades de metaforização ou de figurações
várias de coisas ‘concretas’, do que pejorativamente se diz imaginações,
fantasias, que se ligam a desejos variados. Com efeito, a denominação, por substantivos ou verbos mormente, consiste na
primeira e mais frequente operação de redução que torna possível, antes mesmo
de pensamentos, as trocas mais elementares de dizeres, receitas, narrativas e
outra falas quotidianas. Pensamos com nomes de coisas e acções, porque eles são
susceptíveis de se separarem das coisas e acções concretas que nomeiam para
nomearem outras, porque são susceptíveis também de abstracção. Esta no Ocidente
foi inventada com a definição filosófica por Sócrates e teve entre os seus discípulos principais dois alcances
diferentes, quase antagónicos, que marcaram a amplitude das atitudes do pensamento
europeu. Platão definiu essências imutáveis, eternas no mundo celeste sempre igual a si mesmo
em seu movimento astronómico perfeito, em oposição às coisas e qualidades do
mundo terrestre, sujeitas permanentemente à geração e à corrupção, ao nascimento
e à morte, as principais definições relevando da ética: o bom, o justo, o belo,
a virtude. Aristóteles baixou essas essências para compreender o movimento
destas coisas da terra, a substância em cada uma permanece aquém desse
movimento: o motivo de ousia
tanto diz nas Categorias,
primariamente, essa substância do que se move como, secundariamente, a essência que é comum às substâncias da mesma espécie (eidos). A definição reduz assim o contexto real e concreto de cada coisa
definida, o que justamente difere de caso para caso, para reter a essência comum, com a qual se pode argumentar:
em physica, nas ciências que a ousia tornou possíveis, na lógica. Até ao século XVII, foi do fulgor da redução
da definição que se fez o saber filosófico ocidental.
3. Os cientistas desse século
inventaram uma nova operação de redução, a que implica o laboratório
científico, trazendo das observações e cálculos astronómicos uma maneira de medir os movimentos de deslocação espacial e inventando
uma medição instrumental do tempo (a peso de água por Galileu!), a que juntaram
as medições de pesos e no século XIX de intensidade e tensão eléctricas,
desdobrando assim as técnicas da antiga geometria e criando com os laboratórios
(cujo ‘labor’ é justamente o de medir dimensões de movimentos, reduzindo todo o contexto extra-laboratorial)
possibilidades de calcular dimensões não medíveis directamente (velocidades e
acelerações para começar, massas e densidades diversas, momentos de forças, e
por aí fora). Estas medições e cálculos – o que a redução laboratorial retém – foram sempre acompanhados, precedidos ou seguidos,
por definições de ordem filosófica especializadas em paradigmas científicos,
que se foram autonomizando das definições filosóficas, mormente metafísicas,
autonomização que teorizou o trabalho filosófico de Kant e levou a separações
benéficas até que as técnicas resultantes dessas ciências trouxeram consigo
poluições diversas que obrigam a pensar inter-disciplinaridades difíceis,
porque sem reduções evidentes além das que relevam das respectivas disciplinas
laboratoriais, as filosofias mostrando dificuldades em abraçar as novas e
difíceis questões.
As reduções do pensamento fenomenológico
4. Uma das novidades que as ciências
físicas e químicas trouxeram ao pensamento delas foi a como que expulsão do
cientista do processo laboratorial, das suas técnicas de medição e dos cálculos
matemáticos da teoria consequente: é certo que os pensadores como Galileu e Newton
e Lavoisier eram necessários mas os resultados da ordem da (geo)metria e da
matemática impunham-se nos consensos científicos, como ‘objectivos’ (neles a
‘realidade’ objecta à hipótese
teórica e confirma-a como certa laboratorialmente ou não), toda a discussão em
termos de definições teóricas (leis científicas) se fazendo ‘subjectivamente’ –
como se fosse filosofia! – em torno desses resultados ‘objectivos’. Foi o que o
matemático Descartes compreendeu: ‘sujeito’ e ‘objecto’ (res cogitans e res
extensa) oferecem-se separadamente e assim vingou o pensamento europeu, mesmo
nos filósofos que se reclamavam duma abordagem empirista, critica do
‘idealismo’ cartesiano. Ora, foi um matemático filósofo como já era raro haver,
Husserl, que procurou romper com esta separação – ele via muito negativamente a
introdução do laboratório por Galileu na Origem da Geometria! – em nome de não haver consciência (e portanto
‘sujeito’) que não fosse “consciência de qualquer coisa”, do que também chamava ‘objecto’ e que vinha preencher uma
intencionalidade da consciência; ou seja, esta não é uma ‘substância’, uma
‘res’, o que implicou num filósofo matemático, que deveria ser émulo de Platão
o Geómetra, um gesto à Aristóteles, que tratou do intelecto num tratado ‘biológico’,
o Da alma. Ao fazê-lo repetiu
a ruptura deste com o mestre da Academia, proclamando “o retorno às próprias
coisas!” mas repetindo igualmente Platão, a sua operação de redução da definição filosófica: a da empiricidade do
dito ‘objecto’, ou seja aquilo que o liga ao contexto do mundo que o dá.
Paradoxalmente terá sido o primado da percepção no seu discurso sobre a consciência
que o puxou do lado da intemporalidade do eidos, do ‘viso’ da coisa até à sua essência eidética,
sem lhe considerar os movimentos.
5. Foi este manter-se no domínio
aberto pela definição, o das essências intemporais, que Heidegger criticou no
mestre ao romper com ele: o ‘objecto’ da consciência estava já previamente
definido, cortado do seu mundo, e é a reviravolta para este que ele opera à consciência
husserliana, substituída pelo ser-no-mundo, sendo que o que privilegiou como
Ser, com maiúscula, estava do lado do mundo como o ‘lá’ (Da) que o Da-sein era. Neste romper, Heidegger rejeitou a redução
husserliana mas ao propor o motivo de diferença ontológica entre o Ser e os entes e ao sublinhar que esse
Ser não era ente, ou seja não era ‘substancial’ mas diferença pura, foi como se
se tratasse duma operação de redução da substancialidade deste Ser, evitando nomeadamente qualquer hipótese de
relação desse Ser com o Deus criador do cristianismo. É que este Ser diferença,
onde se aloja o pensamento, é a doação dos entes e da sua temporalidade histórica, doação que se oculta,
dissimula, como condição da própria ‘entidade-tempo’ e que ganhará a sua concepção
final em 1962 como Ereignis,
isto é, como Acontecimento ontológico que faz doação e deixa ser cada ente
em seu tempo, em seus
acontecimentos. Onde se torna mais visível tratar-se de uma operação de
desdeificação, aproximável à de Sibony em relação à Bíblia hebraica, duma
redução que se poderia aliás aproximar também das noites místicas dum João da
Cruz, em que o próprio nome de Deus é reduzido, as palavras com que ele possa
ser designado, maneira radical de ser fiel ao tão estranho segundo mandamento
do velho Decálogo, “não invocar o nome de Deus em vão”. Mas gostaria de deixar
esta fuga à divindade que a deixa ainda na penumbra que a recusa, e dar ao Ereignis de 62 o nome da phusis no texto sobre a Origem da obra de arte: a Terra (que não planeta, já que com o sol, a
atmosfera e as nuvens), é ela a doadora dissimulada, fecundidade de todas as
substâncias de que ela é a matriz, essa archê que Aristóteles diagnosticara na phusis que Heidegger herdara juntando-lhe o retiro de Heraclito. Com esta, fez-se assim retorno aos
pensadores de antes de Sócrates, de antes da definição.
6. Ao descobrir filosoficamente a
escrita, Derrida pôde retomar a redução husserliana para aclarar o pensamento
linguístico de Saussure – “na língua não há senão diferenças, sem termos
positivos” – e legitimar assim de forma cabal a operação de redução das
substâncias das diversas ciências, da matéria energia, dos vivos, das sociedades, dos textos, deixando fora destes e dos nomes que eles utilizam as
‘substâncias’ e outras matérias e almas e pensamentos e sentimentos e intenções
e consciências e sei lá que mais, e dizendo “não há fora de texto”, numa grande
redução que se revela inclusiva do próprio ‘fora’, que o texto retém ‘dentro’. Tudo o que dizemos que há, que existe,
é dizendo-o que o dizemos, e podemos sempre dizer mais coisas e mais coisas,
inesgotavelmente, porque as línguas são sempre elípticas e nunca dizem tudo,
mas tudo podem dizer. Há pois redução: da árvore substancial quando digo uma frase com a palavra ‘árvore’, mas é
essa árvore substancial que retenho ao assim dizê-la, como faria uma sua fotografia, e com ela tudo o que dela
sei dizer no que ao seu contexto se atém. Por outro lado, isto é igualmente
verdade do que penso relativamente a ela, pois que não sei pensar fora duma
língua.
As reduções do pensamento bíblico
7. Pode parecer estranha esta
invocação, mas desde que a exegese científica do chamado Pentateuco,
constituído pelos cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, mostrou nos
últimos 40 anos que foi o último, o Deuteronómio, que foi escrito em primeiro lugar – o que aliás,
embora com outra argumentação, já fora tese de Spinoza no seu Tractatus
theologico-politicus – e todos os
outros posteriores de um a dois séculos, que me apercebi de que havia que colocar
a categoria de escritores chamados Profetas como os autores da Bíblia hebraica, assim como os
Filósofos gregos são os
autores da filosofia que nos veio, à Europa. Se me entusiasmei, num dos últimos
textos deste blogue, com a aproximação que Daniel Sibony fez entre o pensamento
da Bíblia hebraica e o de Heidegger, falar no entanto em redução do pensamento
bíblico é manifestamente uma abordagem crucialmente diferente dos textos
proféticos. O livro do Deuteronómio foi escrito três séculos e meio após a tomada de Jerusalém por David e
conta como muitos anos antes desse início da monarquia israelita os seus
antepassados teriam recebido numa montanha dum deserto uma aliança do seu Deus,
Yahvé, a qual dá a matriz do texto hebraico. No coração dessa aliança, como se
faziam entre soberanos após uma guerra nas condições de vassalagem que o
vencedor impunha ao vencido com a obrigação de o defender de outras nações,
estava o Decálogo, os Dez Mandamentos de Moisés. Porquê falar de redução aqui? O que é que é reduzido nesta ficção dum
povo nos seus antepassados no deserto? São justamente os usos e costumes da sociedade monárquica que permitem a
reprodução da sociedade, as suas bases agrícolas e de rebanhos, a saúde das
gentes e dos gados (e até as vitórias eventuais nas guerras). Reduzido todo o saber futuro na “terra prometida” “em que
correrão o leite e o mel”, o que é que a ficção da aliança retém? Uma relação ética política concretizada nos mandamentos entre as casas
israelitas e o seu Deus como soberano. Por exemplo, no episódio das “dez pragas”, Yahvé opõe-se ao Faraó e não
aos Deuses egípcios, assim como os textos que contam o surgimento da monarquia
com Saúl e David e a continuação até à grande derrota diante dos Caldeus de
Babilónia insistem na obediência dos reis ao soberano da aliança. O essencial
do pensamento profético diz-se nas listas de bênçãos e maldições de Deuteronómio 28 e Levítico 26: a casa do justo diante de Yahvé será
abençoada nas suas colheitas e rebanhos, será honrada ao longo das gerações,
Israel será forte e sábio diante das outras nações que virão aprender com eles
a conduzirem-se segundo a justiça.
8. Manifestamente este pensamento
falhou, como teria falhado o da República de Platão se posto em prática: nenhuma sociedade foi em sítio algum que
saibamos duravelmente uma sociedade de justos. O livro de Job é a constatação em forma de drama desse falhanço
num caso individual, mas também a história de Israel, que se tinha constituído
num período de vazio das grandes potências imperiais desde 1177 a C, começou a
partir de 850 a ser feita de derrotas: sucessivamente face a Assírios, Caldeus,
Persas, Gregos e por fim Romanos, até à revolta militar contra Roma, em 66, que
levou à derrota final em 70 e à expulsão dos Judeus do pais, pondo termo à
história que o Deuteronómio
ficcionara. Foi neste contexto que os judeus que continuavam a acreditar no
Deus da sua aliança encontraram como única saída a que se manifesta na
literatura apocalíptica dos dois últimos séculos antes da nossa era: na sua
perspectiva, a reactivação da redução da aliança do deserto indica-se no motivo escatológico do Reino de Deus, só o Soberano pode salvar Israel dos Romanos
(como é claramente enunciado na primeira parte dum hino em Lucas 1, 58-65),
essa soberania manifestar-se-á radicalmente no acabamento da história da
Criação. João Baptista e o seu
discípulo Jesus de Nazaré perceberam o que a história posterior comprovou, que
o império romano era para durar alguns séculos e só este final seria adequado à
aliança. Sendo a concepção da transcendência de Deus já muito apurada na época,
esta escatologia implicará a actuação dum ‘ungido’ (como eram os reis outrora)
ou ‘messias’, no Novo Testamento Jesus ressuscitado, a quem Paulo de Tarso
chama ‘Senhor, ao descrever na sua primeira carta aos Tessalonicenses ” (cap.
4, vers. 16-7) uma ascensão colectiva dos justos para os Céus: “[...] os mortos
que estão no Messias [Jesus ressuscitado] ressuscitarão em primeiro lugar,
depois do que, nós os vivos que ainda cá estaremos, seremos reunidos a eles e
transportados em nuvens para encontrar o Senhor nos ares. Assim estaremos
sempre com o Senhor”. Esta perspectiva escatológica é predominante nas cartas
de Paulo e nos evangelhos de Marcos e de Mateus; ela tem elementos recebidos de
Zaratustra (os Judeus foram vassalos relativamente felizes dos Persas durante
dois séculos: foi nessa época que a Bíblia hebraica foi ultimada como Lei e um
segundo Templo construído para substituir o de Salomão, destruídos por
Babilónia): o motivo dum Juízo final de descriminação ética com a ressurreição
dos justos mortos, no caso de Abraão e toda a sua descendência que não tenha
prevaricado (assassinatos, roubos, adultérios, difamações, os principais
delitos do Decálogo).
9. Esta noção, tanto de João Baptista como de Jesus
e de Paulo, de que o final dos tempos estaria iminente, implica uma
reelaboração da redução do deserto (onde o primeiro viveu e o segundo fez uma estadia espiritual de 40 dias)
que se transforma em temporal, uma redução escatológica (sobre a qual, sem o termo, Agamben escreveu um
belo livro, Le temps qui reste). Pode-se dizer que se trata de reduzir nos usos e costumes das casas dos crentes os poderes
sociais – da riqueza, do domínio
politico, da ortodoxia religiosa – como se expressa nas três dicotomias do Reino
de Deus dos evangelhos sinópticos:
Deus ou o Dinheiro, Deus ou César, Deus dos vivos ou Deus dos mortos (o poder
do Templo que condenou Jesus à morte). Para reter nesses mesmos usos e costumes a sua fruição
frugal e solidária, partilhando o pão e o vinho entre eles e cuidando
especialmente dos pobres (em continuidade com a Bíblia hebraica que colocara no
Deuteronómio 15,4 como
imperativo “que não haja pobres no meio de ti” e no Levítico 18,19 “amarás o teu vizinho como a ti mesmo”). O
gesto eucarístico de partilha do pão e do vinho é o ritual que dá a ver este
mandamento crucial do amor do
próximo como a si mesmo, o rito da edificação do “corpo (social) do Messias”,
do corpo dos justos em ascensão segundo Paulo, como outra figura igualmente
colectiva na sua origem, a do Filho do homem, manifesta em Mateus 25,31-40, em que serão acolhidos os justos que se
preocuparam com a fome, sede, roupa, tecto, saúde e falta de liberdade dos mais
carentes. Seja dito de passagem que esta perspectiva de partilha dos seus
haveres na iminência escatológica explica o chamado “comunismo primitivo” dos
crentes (Actos dos Apóstolos,
cap. 5), que venderam as suas propriedades e puseram os frutos em comum, como
se já não fosse preciso produzir e se viram anos mais tarde na pobreza,
precisando do auxílio de outras
comunidades gregas: eis um aspecto concreto da falência deste pensamento ético
escatológico, como já tinham sido a morte politica de João Baptista e a de
Jesus, esta no ano 30. Este fracasso foi recoberto pela fé na ressurreição de
Jesus, tornado Messias escatológico que voltaria em breve, esperança essa que
se foi desvanecendo ao longo dos anos 60, a geração dos que conheceram Jesus
morrendo, entre os quais Pedro, Tiago, João e Paulo martirizados. Eis senão
quando a notícia da derrota do ano 70 e da destruição do Templo e do fim de
Israel na Palestina reavivou a esperança de Marcos, redactor do primeiro evangelho que cita uma
palavra atribuída a Jesus segunda a qual alguns dos que estavam com ele
haveriam de ver esse Dia final e acrescenta: “leitor, compreende!” (13,14), é
agora ou nunca. Foi nunca.
10. A falência desta profecia foi o segundo grande
fracasso nas origens do cristianismo, ela que viera para cobrir o primeiro,
pretendendo que o assassinato do Messias tinha feito parte do plano de Deus
(evangelho de Lucas), mas foi
fatal para o recrutamento de crentes entre os Judeus: o cristianismo sobreviveu
virando grego e platónico mormente com Orígenes (185-254), fazendo sua a redução do corpo e do temporal. O que há de estranho na
concepção escatológica duma ascensão colectiva entende-se num paradigma que
coloca a questão da fome e da refeição no centro do pensamento de origem
hebraica e não opõe corpo e alma, como descaradamente faz o platonismo, que reduziu o corpo e a sexualidade e corrompeu a ética
evangélica (a chamada ‘moral judaico-cristã é de facto greco-cristã!). O título
grego de Filho de Deus que
Paulo inventou para os seus crentes de origem pagã, dito “definido” a partir da
ressurreição (carta aos Romanos 1,4), com o verbo horizô
que Platão usa para as definições da Formas ideais celestes, permitiu transladar
o título celeste judaico, Messias escatológico, para este Filho de Deus, título celeste platónico; ora, isto veio a ter
como consequência a elaboração teológica, quer da chamada ‘incarnação’ desse
Filho (eternamente) de Deus, quer da Trindade deles com o Espírito, e os dogmas
do século IV, o que teve como resultado o apagamento da própria ressurreição de
Jesus, confinada à liturgia e sua origem judaica. Os dogmas gregos já fazem
parte da história romana do cristianismo como religião do império e em seguida da medievalidade: as reduções
bíblicas desapareceram com a ‘catolicidade’ platónica. Mas a redução escatológica, com os seus convites radicais nos textos
evangélicos, suscitaram ao longo da longa história cristã movimentos de
conversão e vocação em que as reduções espirituais retomaram as exclusões para manterem, pelo menos
por uma ou duas gerações, a fruição frugal do amor do próximo e a alegria livre
que ela traz.
As reduções do pensamento chinês
11. Passados alguns anos sobre a época da minha
leitura de alguma bibliografia sobre a escrita ideográfica, os wen chineses, que desaguou num texto intitulado “Como
pensam os Chineses sem alfabeto?” (num dos meus blogues com este título), só
posso recorrer a esse texto, mas já sem a memória viva das leituras que deu a
sua escrita. Fraco apoio pois, falta-me obviamente a familiaridade que tenho
com os outros espaços do pensamento ocidental, mais uns do que outros. A coisa
mais estranha é que, por um lado, como qualquer texto, o wen reduz o contexto da ‘coisa’ que ele refere para o enfiar numa sequência de
outros wen em frase e discurso
escrito, retendo essa ‘coisa’,
como quem fizesse uma banda desenhada de ‘coisas’ em que, todavia, cada qual
não aparece no seu ‘aspecto’ (eidos) mas num desenho convencional, à maneira das notações matemáticas, mas por
outro lado reduz também as línguas orais que permitem convencionar os wen, ainda aqui de maneira parecida com a matemática
(como esta, a escrita chinesa é legível por falantes de várias línguas que não
se entendem entre si a falar). Também como as contas e as equações, a
ideografia reenvia à vista e não ao ouvido, não dá para ser lida em voz alta de
forma interessantemente inteligível (se não se tiver a escrita diante dos
olhos). Em vez do tiedro do signo alfabético, significante / sentido / coisa
referida, o wen só conhece o
par significante / coisa, paradoxo face à definição que justamente privilegia o
‘sentido’ que define como imutável, intemporal. Mas é uma certa intemporalidade
que ele consegue assim na ordenação da sua escrita, como os números, com uma
grande diferença: face a estes, a quem bastam dez algarismos e em que as
respectivas posições contam, a escrita chinesa multiplica os wen até aos milhares.
12. Onde a matemática consegue calcular, fazer
contas e equações, e a filosofia que define consegue construir argumentos
intemporais e incircunstanciais, o que é que consegue a escrita chinesa que
alinha os seus wen? Consegue
pensar “o curso das coisas”, diz o filósofo francês François Jullien em que me
baseei, reter os seus
processos temporais e a respectiva regulação. O exemplo claro é, não como pensa
um académico, como no Ocidente, mas como pensa um camponês, cujas evidências se
fazem entre o Céu em cima e a Terra em baixo, ambos se alterando entre dia e
noite, o fim de cada um sendo o princípio do outro (que não são pois opostos), e também ao longo das estações do ano, entre as
que vão para o calor e as que vão para o frio, e ainda as sucessões das
gerações. Temos assim, para começar um pensamento simultaneamente temporal ou
sequencial e repetitivo ou cíclico, nunca idêntico mas mais ou menos regulado.
Neste quadro geral se inscrevem os processos agrícolas, entre sementeiras e
colheitas, precavendo-se os cuidados a ter segundo os tempos e as suas
oscilações. Em vez de se ‘definir’ arroz, conhece-se e cuida-se – retém-se –
o seu processo temporal.
Aprende-se fazendo, com a repetição das experiências, reduziram-se as línguas
enquanto fluxos de interesses particulares, sabendo-se, presumo, que o que se
vai assim ganhando como digno de sabedoria é um mundo suficientemente vasto
para ocupar uma vida dedicada a ela. Pensamento fortemente conservador, que se
liga ao extraordinário fenómeno histórico que é o império chinês que durou mais
de vinte séculos com uma casta dirigente de mandarins espalhados por todo o
império, cuja sabedoria justamente se fazia através do estudo dos textos e das
controvérsias da sua tradição, mas que também inovou: as descobertas que,
segundo Francis Bacon, filósofo inglês do início do século XVII, foram
decisivas para a modernidade que estava despontando, a bússola, o papel, a
impressão, a pólvora, foram inventos deles (mas que não souberam dar-lhe
todavia o proveito que lhes deram os Europeus).
As reduções dalguns pensamentos científicos
13. As reduções científicas são feitas pelos
respectivos laboratórios e têm que ser buscadas na análise do que estes excluem
da circulação normal dos seus fenómenos, consoante o tipo de ciência,
obviamente. Comecemos pela área que conheço melhor, pois foi objecto da minha
tese de doutoramento[1], a da Linguística. Na linguística estrutural, o
laboratório – que reduz todos
os laboratórios de outras ciências que possam ter a ver com a linguagem ou com
os sons: Acústica, Fisiologia da audição e fonação, Neurologia e Psicologias –
consiste na operação de comutação aos dois níveis duma fala, o da voz e o do discurso (dupla articulação da
linguagem). Em qualquer deles, numa palavra no primeiro e numa frase no
segundo, segmenta-se de forma a obter unidades que possam comutar entre si e
nessa comutação produzir efeitos de sentido. Entre ‘casa’ e ‘cara’, a comutação
‘s/r’, por exemplo, dá duas palavras diferentes; em ‘chegou a minha cara amiga’
e ‘a vida está cada vez mais cara’, também as comutações de ‘cara’, por
‘querida’ num caso e ‘dispendiosa’ noutro, mostram que se trata de duas
palavras diferentes (embora a primeira frase se preste à mutação metafórica ou
irónica de ‘dispendiosa’). O que se reduz neste laboratório é o sentido das palavras nas frases analisadas, mantendo-se todavia a exigência, ao
fazerem-se as mutações, de haver sentido. E o que é que se retém? É justamente a língua como objecto da ciência linguística (do
suíço Ferdinand de Saussure), de que os trabalhos do russo Nicolai Troubetzkoy
em Fonologia (Círculo linguístico de Praga), do dinamarquês Louis Hjelmslev em
morfologia e sintaxe e do francês Maurice Gross em semântica e sintaxe são
descobertas científicas das mais fabulosas e ignoradas do século XX[2].
14. Mas a Linguística é apenas uma parte do que se
chamava a Filologia como disciplina dos textos, mormente os antigos a restituir
em suas edições criticas, já que a língua que ela restitui não ultrapassa os
limites da frase e deixa nomeadamente um campo aberto aos sentidos semânticos
de ordem textual, aquilo a que Claude Lévi-Strauss (as suas quatro
Mythologiques) e Roland Barthes (S/Z) chamaram códigos: são as estruturas semânticas internas dum dado
texto e do corpus a que ele
pertence. É a uma semiótica de textos singulares, tal como Barthes a inventou e praticou em mais
dois ou três textos além da novela Sarrasine de Balzac, que me parece poder atribuir-se uma
possível, embora muito difícil, cientificidade. A dificuldade de discernir o
gesto exclusivo do laboratório consiste em que não basta reter que há sentido
como na comutação linguística, já que os códigos descobrem-se enquanto
estruturas desse sentido nesse texto, o que torna mais moroso o trabalho de análise,
ainda quando o conhecimento do corpus dê os mesmos códigos de tipo ‘paramétrico’ nos vários textos: é que são os
códigos de tipo sequencial que justificam o texto singular que se lê, é na análise
deles que se descobrem os segredos do texto, as contradições que o trabalham,
como, aluno modesto de Barthes, pude constatar na leitura do evangelho de
Marcos há mais de 40 anos mas
também na da Poética de
Aristóteles e no Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche. O problema é pois que o laboratório
exige uma competência de leitura dos textos na respectiva época que, sendo
longínqua, se pode caracterizar pela pertença dos dicionários respectivos ao
laboratório. Ora, estes dicionários supõem a leitura dos textos da época,
incluindo pois o que está a ser lido, há uma circularidade hermenêutica, em sentido heideggeriano, que é incontornável.
Foi ela, por exemplo, que ofereceu uma grande dificuldade à decifração dos hieróglifos
egípcios até à descoberta da roseta de Champollion: é preciso estar já dentro
dos códigos do texto para dar por eles. Sucedendo embora que haja por vezes
oscilações, ou mesmo divergências entre dicionários, manter que eles fazem
parte do laboratório semiótico como estou propondo pela primeira vez permite
atenuar fortemente o inevitável ‘subjectivo’ da leitura. Mas a minha
experiência, limitada é claro, permite encontrar uma outra forma de atenuar a
singularidade: ela tem a ver com a lógica restituída do texto quando se
consegue enfim algum acabamento à leitura do texto e se exibe uma compreensão
inédita da estrutura desse texto que possa eventualmente esclarecer aspectos da
sua história. Foi o que sucedeu com a minha leitura de Marcos, embora haja que reconhecer que 40 anos mais
tarde não parece que se tenham tirado consequências ‘científicas’ da minha
descoberta barthesiana (que entusiasmou o próprio Barthes!)[3]. O que se reduz então nesta semiótica do texto singular, forte? O
nomenclaturismo corrente das leituras, que relacionam o que se está lendo,
frase a frase ou sequência a sequência, com uma ‘realidade representada’ que o
leitor ficciona, imagina: pelo contrário, só se descobrem os códigos por um
lento trabalho de reenvio de cada passagem lida às outras passagens em que haja
elementos equivalentes semanticamente, é o texto que se decifra a si mesmo e
nos dá após a tal ‘realidade’ tal qual ele a conta, que é justamente o que a redução retém.
15. A redução operada pelo laboratório de Física (e de Química) não precisa de ser
detalhada, já tratei dela noutros textos deste blogue. O laboratório é composto
de instrumentos de medição, de Geo-metria em sentido literal e em sentido matemático, de equações sobre dimensões
correspondentes às medidas feitas, com os quais opera, de forma geral, sobre movimentos entre dois tempos. Fazendo-o, reduz todo o contexto exterior ao laboratório,
impedindo o acesso a todos os que lhe são ‘estranhos’, que ainda que aí entrem,
não compreendem o que lá se passa, embora se possam divertir com o que vêem.
Mas a operação de mensuração de tal e tal dimensão do movimento (espaço, tempo,
temperatura, peso, intensidade ou voltagem eléctricas, etc) também reduz a substância ou matéria da ‘coisa’ singular sobre
a qual a experiência é feita, para reter com as repetições das experiências e os respectivos cálculos físicos (ou
químicos), regras ou leis desses movimentos medidos segundo as respectivas
dimensões. Mesmo a teoria física (ou química) da linguagem dessas leis, com a
sua relação à tradição filosófica, saibam-no os físicos ou não, sendo embora
necessária para a instituição do laboratório e das experiências e para a
compreensão dos cálculos e das leis, mesmo ela é parcialmente reduzida, se
dizer se pode, tendo em atenção que nunca ela é de consenso acabado entre os
cientistas, o que não é verdade dos resultados experimentais, ainda que os
instrumentos se aperfeiçoem, como aconteceu fortemente durante o século que
passou. O que é com efeito assim retido são os resultados e equações que permitiram gerar técnicas inéditas com efeitos no contexto reduzido (alguns
desses efeitos sendo de poluição, como é bom não esquecer).
16. No que concerne à Biologia, a questão mais
delicada consiste em saber como articular a redução bioquímica com as disciplinas tradicionais da Anatomia e da
Fisiologia, estas duas tendo sido sobretudo investigadas em cadáveres e hoje
conhecendo aparelhagem sofisticada de visão detalhada dos diversos órgãos e
tecidos, visão adequada a estudar movimentos deles. Não sei responder à
questão, por falta de competência, por certo, mas também pela dúvida em saber se
se trata de dois tipos de laboratórios ou de um só mais complexo do que um
laboratório de tipo químico. Que adequação científica, teórica, haverá entre
experimentações com as suas equações químicas e representações de moléculas,
por um lado, e visões ecográficas ou equivalentes, susceptíveis de ‘descrições’
fenomenológicas, como de desenhos, por outro? Aparentemente, trata-se de duas
metodologias irredutíveis. E aí estaria a raiz do que me parece, dos variados
livros de biologia molecular e neurologia que tenho lido, ser uma espécie de
divórcio entre as duas maneiras de se estudar biologia: complementares,
dir-se-á, mas que não me parecem completar-se, antes uma faltar às conclusões
bioquímicas, isto é, em dados numéricos, da outra. Provavelmente, como faz um/a
médico/a que disponha dos resultados duma análise bioquímica e duma ecografia
ou duma radiografia, por exemplo, esta servirá de ‘contexto’ em que se lêem os
resultados, um pouco como os tempos duma corrida ilustram o vídeo da chegada
dos atletas à meta. Ora bem, a questão é a de saber que retenção corresponde à redução bioquímica? O que se deve reter em termos de conhecimento científico será a
globalidade dum animal vivo incluindo os seus comportamentos principais no seu
meio ecológico; o que é que a Biologia actual retém? As leituras que fiz confirmam que a biologia
molecular desencadeou uma espécie de ‘salto’ do nível celular descoberto com
grande espanto e entusiasmo para o organismo e suas propriedades, saltando
sobre a maneira como anatomia e fisiologia fazem o seu papel entre esses dois
extremos. Como ligar cientificamente o conhecimento que se tem da estrutura das células e do seu metabolismo incessante com aquilo que o animal é e com aquilo
que ele tem que fazer para que
tal metabolismo seja alimentado por moléculas (aminoácidos) vindas com o sangue?
Como estabelecer cientificamente o que nunca li em nenhum dos variados livros
em que aprendi tudo o que sei de biologia e neurologia e dos quais deduzi que a
anatomia do animal é constituída de modo a garantir essa alimentação celular, como os biólogos sabem sem saber. É aliás o que
justifica a imensa diversidade das espécies!
As reduções do pensamento das ciências das sociedades
17. Também em Antropologia e de forma geral nas
ciências das sociedades há uma dificuldade em estabelecer qual a redução que
elas operam, dificuldade essa que é de ordem claramente filosófica: o
estabelecimento do pensamento europeu sobre as sociedades fez-se em antagonismo
com as estruturas monárquicas vindas do feudalismo e com a preponderância nelas
das instituições religiosas, em antagonismo pois com a filosofia politica de
Aristóteles então dominante nas universidades, visando a casa e a cidade, ou seja as duas principais unidades sociais das sociedades tradicionais. A utilização que nessa
época de transição se fez da dupla análise / síntese em vários domínios consistiu em dividir o que há
que analisar até aos seus elementos últimos e em seguida subir sintetizando até
aos compostos donde se partira com as novas regras que a análise suscitara. Até
ao ‘átomo’ (não divisível, em grego) em física, excluindo as ‘forças’
(‘dinâmica’) para caracterizar os móveis como inertes (excluindo os vivos); em
lógica até ao signo, último termo com sentido, permitindo a ‘ideia’; e na
filosofia social dividindo até ao ‘indivíduo’ (não divisível, agora em latim,
como aliás ‘insecto’ em zoologia), e em seguida sintetizando no ‘contrato
social’ como a relação básica de que os indivíduos têm a iniciativa. Ora, tal
como as línguas também são vistas como ‘convencionais’, o que supõe indivíduos
a decidirem sobre as palavras antes delas, o que se pressupõe assim é uma
exterioridade prévia do indivíduo em relação à sociedade: vindo da ‘natureza’,
o “bom selvagem”, ‘ele’ constitui-a. Reduziram-se assim os antepassados! (e também as crianças que deles aprendem). O
problema metodológico essencial das ciências sociais é considerarem que as
sociedades são compostas de indivíduos adultos, é não terem em conta que estes
nascem nus e sem saber e que terão que aprender os usos sociais que já lá estão, recebidos dos antepassados, entre os quais são predominantes as próprias unidades
sociais de habitação, como
lugares de repartição social dos indivíduos, de residência e/ou de trabalho.
Também elas e os respectivos usos são reduzidos de antemão, como se as
sociedades fossem ‘multidões de populações’. Ora, são justamente os indivíduos
com seus nomes próprios que têm que ser reduzidos para se reter a composição das unidades sociais, quer
internamente – o paradigma dos seus usos – quer na inter-relação entre elas, a
dimensão politica e cultural do conjunto, cidades em suas regiões e países.
18. Por outro lado, esta caracterização social do
indivíduo reduz indevidamente
o seu carácter biológico, seguindo implicitamente a oposição filosófica
europeia entre natureza e cultura ou social: só esta dimensão é retida, os indivíduos acabam por ser os ‘sujeitos’ da
filosofia europeia, herança das ‘almas’ de antanho. Fazer uma critica fenomenológica
desta redução / retenção
implica que para a substituir se tenha em conta a diferença entre estas ciências
e as outras focadas anteriormente, sobre entes (mormente as da vida) ou sobre
estruturas (sociais) com carácter de imanência (as linguagens[4]) no que à análise científica diz respeito (a
operação de comutação). Pelo contrário, desde a Antropologia e mais ainda na
História e na Sociologia (são as três grandes ciências globais das sociedades, embora estas duas tenham grande
dificuldade em ultrapassar o carácter sectorial, limitado a certas estruturas),
que uma ‘sociedade’ é uma grande estrutura horizontal que envolve muitos entes
com dinâmicas específicas que demandam vários tipos de estruturas sociais mais
ou menos complexas articuladas entre si: são as mudanças destas estruturas
sociais e consequentemente da grande estrutura ‘sociedade’ que resulta dessa
articulação que são o objecto das ciências das sociedades, que as comparam
entre elas, o que têm em comum e as suas diferenças, maiores ou menores. Dito
de outra maneira, as ciências das sociedades envolvem os resultados das outras
ciências acima evocadas. O que é que todas as sociedades têm em comum, desde as
tribos selvagens (isto é, que estão sob o domínio da lei da selva que rege o
mundo ecológico) às sociedades históricas de agricultura dominante e às
recentes sociedades industrializadas? Aquilo que as respectivas ciências tendem
a reduzir: que se trata de
populações de mamíferos, que têm que se alimentar todos os dias, que se reproduzem
sexualmente, que estas duas dimensões biológicas tornam rivais e facilmente
agressivos, que têm que repousar todas as noites e que serem protegidos reciprocamente.
Ora bem, acontece que a única justificação da formação de uma sociedade em
relação à condição humana na selva é a de melhorar a solução destas demandas mamíferas. É o que se pode dizer através do motivo
gramatológico de suplemento:
as estruturas de habitação prolongam as estruturas etológicas das sociedades de
primatas e de outros mamíferos mais desenvolvidos que também já suprem as
condições biológicas dos seus indivíduos. Reduzir a dimensão biológica dos
humanos, permitiu reter
fenómenos sem dúvida interessantes, como o dom, o potlach, os mitos, mas deixou
escondido o que Lévi-Strauss restituiu esplendidamente: que o interdito do
incesto é correlativo da exogamia e que este binómio dá conta duma sociedade
como aliança de unidades sociais que trocam as suas filhas e irmãs de maneira tal que em cada unidade
social há sempre alguém que vem de fora e que é esse alguém a mamífera que
procria. Não se trata de um argumento de ordem biológica, Lévi-Strauss teve o
cuidado de o mostrar (Estruturas elementares do parentesco), mas de um argumento que retém nas genealogias tribais o lugar da reprodução
sexual no coração do laço social: reduzidos os indivíduos retêm-se apenas os seus lugares genealógicos. Outra
demonstração equivalente de Lévi-Strauss foi a sua análise dos mitos
ameríndios, como a lógica dos seus códigos era a lógica das qualidades sensíveis dos usos das respectivas tribos, em que a culinária
predomina largamente. Freud e Norbert Elias são outros exemplos de retenção da
consideração da sexualidade e da alimentação nas maneiras civilizacionais
europeias (e, no primeiro caso, nos seus mitos). Se se tem em conta a
importância dos costumes gastronómicos a par das diferenças de línguas nas relações
entre indígenas duma dada tribo, ou casta ou classe social, percebe-se que a
reacção primária em relação a quem não come e fala da mesma maneira, a quem é estranho ou estrangeiro, seja a de hostilidade, segundo uma lei da
guerra que é herança da lei da
selva devida à evolução
biológica.
19. Citando “As ciências das sociedades numa
perspectiva fenomenológica” (neste blogue), eis a definição de sociedade: ela
habita uma dada terra ecológica que a alimenta, repartindo-se em unidades
locais com seus paradigmas de usos e costumes e defendendo-se de estranhos:
cada unidade local enlaça os seus useiros e por sua vez é enlaçada com as
outras pela tribo por via do sistema de parentesco, duplo laço social. Ter em conta
a predominância da lógica dos usos sociais (retidos com redução dos seus useiros, que aliás fazem parte desses usos) permite perceber como
essa lógica comanda as modificações históricas, nomeadamente os usos de tipo
técnico (agricultura e gado, especialização e divisão do trabalho nas cidades,
escrita), todos aqueles cuja invenção deu origem a novos tipos de unidades
sociais: casa (unidade de parentesco e economia) / arsenal de navios,
manufactura, fábrica, banco, loja, etc, e família (separada da actividade
económica) / escola, sinagoga, igreja, universidade / côrte real, administração
de Estado, forças armadas, e por aí fora. Podem-se distinguir dois tipos de
temporalidades nas sociedades: as de rotina, incluindo festas e celebrações para escapar à rotina,
e os acontecimentos, de que as
guerras são o exemplo clássico, quase rotineiro, as epidemias, as descobertas
marítimas, todas as invenções que abriram paradigmas novos, sei lá. É tendência
das ciências para privilegiar os acontecimentos, como foi óbvio até ao século
passado, mas creio que a maneira de os caracterizar é correlativa da
transformação de rotinas que ele opera e os seus limites: é acontecimento o
que altera rotinas, isto é, paradigmas de usos. Em história, o que pode ser descobertas interessantes
são as correlações que se podem estabelecer entre séries de mudanças, como o
caso célebre de Max Weber entre a “ética calvinista” e o “espírito do
capitalismo”: o que ele reduziu da ‘realidade concreta’ nas duas séries permitiu reter a relação entre uma motivação de tipo religioso e
uma motivação económica nos mesmos sujeitos. Pelo contrário, não ter em conta
esta predominância da lógica dos usos sociais terá como efeito nefasto o
enclausuramento dos paradigmas das diversas disciplinas relativas a estruturas
sociais e a dificuldade de cruzar transversalidades entre elas (mas é apenas um
supor, não sei que chegue para sustentar esta hipótese).
20. Por exemplo, a invenção da agricultura e a
correlativa invenção das cidades como especialização e divisão do trabalho teve
como efeito que os citadinos ficaram dispensados de trabalhar directamente no
que diz respeito à sua alimentação, mas também ficaram à mercê de emprego ou de
fome, já que fora das casas autárcicas que punham a alimentação no coração da sua
economia. As metrópoles da industrialização vieram reforçar esta
vulnerabilidade social tremenda, a população agrícola reduzida a uma percentagem
mínima; além da fome e alojamento (protecção), a indigência viu acrescer os
problemas de saúde. Queria invocar três fontes diferentes para pensar esta
questão. Uma delas é o pensamento profético do Deuteronómio, que propunha “que não haja pobre no meio de vós”
(15, 4); entre os dez mandamentos do seu Decálogo, quatro – não matar, não
roubar, não violar, não difamar – são esteios de qualquer moral social, nenhuma
sociedade os pode ignorar e foi o que a Carta dos direitos humanos de cada cidadão veio detalhar e melhorar para a
contemporaneidade; a terceira consiste em tanto a filosofia politica de Platão
como a de Aristóteles proporem como ideal da cidade a felicidade. Será possível deduzir destas três fontes ideais
uma consideração científica? Seria retomar esta noção dos grandes pensadores
gregos de que todos somos os descendentes intelectuais, a de pensar a felicidade
duma cidade ou região como questão de saúde social. Se as ciências
das sociedades enquanto globalidade, Antropologia, História e Sociologia,
souberem provar que todas as sociedades que estudaram têm em comum as suas populações
de mamíferos terem que se alimentar todos os dias, que repousar todas as noites
e que serem protegidos reciprocamente, além de se reproduzirem sexualmente e
serem rivais e facilmente agressivos, como acima se aduziu deduzindo da
Biologia, então pode-se pensar que seja possível caracterizar cientificamente
uma panóplia de indicadores desta condição humana fundamental e ela valer nas análises das diversas
ciências sociais, mormente económica e jurídica, para estabelecer, por exemplo,
limites políticos e jurídicos ao direito de propriedade herdado dos Romanos,
que estes estendiam do uso até ao abuso, como o capital financeiro e
multinacional repetem, na sua maneira de empobrecerem as economias locais.
21. O que nos traz à questão do pensamento
económico. Se a economia conhece um privilégio entre as ciências sociais, ele
não resulta sem mais das questões que trata serem muito importantes, elas não
são necessariamente mais importantes do que as questões de outras estruturas
sociais, por exemplo as da linguagem, mas do facto de ter uma unidade de troca,
a moeda, que exerce uma redução extremamente simples dos diversos factores sociais, alguns muito mais
complexos e resistentes à análise. A moeda reduz tudo o que não é ela, mercadorias inclusive, seus
proprietários (do lado dos lucros como dos salários), retém apenas as contas
sobre estatísticas segundo as quatro operações da tabuada, somar, diminuir e
multiplicar, e depois dividir para obter taxas. Sendo a sua força, esta redução simples e aritmética é também a ‘nossa’ fraqueza,
porque dá aos seus praticantes e aos que directamente beneficiam dessa redução
(o ‘capital’ é a parte valorizada do que é retido, seja quem for o proprietário) as evidências de
discursos sobre o todo da sociedade, ocultando que não são senão discursos
sobre as suas estruturas de mercado. É por isso que essas evidências só são
questionadas quando a outra parte decisiva do mercado que, enquanto ‘força’ (de
trabalho) não aparece como tal nas contas da economia (mas sob a rubrica
‘custos sociais’, a diminuir tanto quanto possível), quando essa ‘força’ se
manifesta politicamente, sob forma de greve ou de necessária concertação
sindical. Julgo que a discussão entre economistas, entre neoliberais e
keynesianos, consiste em manter a redução da moeda irredutivelmente (monetarismo) ou ter em conta os efeitos políticos na própria economia, que o motivo de ‘salário’
exibe: ele há-de ser tal que torne, não apenas possível a reprodução biológica
de quem trabalha e sem a qual não há economia pura e simplesmente, mas que a
torne gratificante, no sentido em que o que se chama dignidade humana faz parte dos direitos inerentes à nossa
condição. É porque justamente se trata de ir além da redução monetária e da maneira como capital e investimento são
tratados como a chave determinante do pensamento monetarista, que a ciência
económica deve compreender como condição sua que o mercado não é senão uma
estrutura da sociedade entre muitas outras e que a lógica sociológica global
deveria integrar as várias ciências sociais. Mas não é evidente ao fenomenólogo
como é que isto se fará: será possível um discurso sociológico global que se
sobreponha ao económico e, à maneira da prevalência das constituições, imponha
critérios visando estatísticas adequadas à tal saúde social? Tratar-se-ia de uma economia que visasse, como
condição democrática da sua cientificidade, a retenção de alguma igualdade
social, antes que as especulações
financeiras dêem cabo das economias.
[2] A chomskyana
ou gerativa não é fenomenologicamente científica, já que ignora a dupla
articulação da linguagem; é apenas uma gramática como as houve ao longo da
história greco-medieval-europeia, uma técnica de tradução a partir do inglês
como língua quase sem morfologia. Não me consta que ela tenha alguma descoberta
que se compare. Mas é certo que a linguística estrutural só trabalha numa
língua de cada vez, o que, sendo muito mais laborioso, é o preço da
cientificidade.[3] Mas sucede
provavelmente que os interesses espirituais ou pura e simplesmente religiosos
dos exegetas e historiadores destas coisas, ainda quando não crentes, impeçam
de aceitar os resultados. É sem dúvida das zonas textuais que mais resiste à
cientificidade. Tive em todo o caso a grande consolação de ver consagrado esse
trabalho quase postumamente por um grupo de exegetas de língua alemã que me
incluiram num texto publicado em 2009 com as 50 melhores exegeses bíblicas (por
cristãos). Thomas Staubli
(org.), Wer knackt den Code ? Meilensteine der Bibelforschung. 50
Porträts, Patmos, 2009,
Dusseldorf [Qui peut déchiffrer le code? Grandes pierres de la recherche
biblique. 50 portraits].