um
teste de fenomenologia sociológica
Algumas teses de fenomenologia das sociedades contemporâneas
O motivo de duplo laço da cena do mercado
A propriedade do dinheiro
Se as finanças perdem o ‘motor’ económico
1. Quando
escrevi, em 2007, sobre a economia como ciência terapêutica, ignorei as
finanças e quando escrevi, para o Expresso, sobre a especulação financeira, ignorei a minha fenomenologia dos duplos
laços. Aliás, no Jeu des Sciences, os duplos laços da economia eram entre as técnicas do engenheiro e o
mercado do economista, também sem isolar as finanças; desde novo eu sabia que
havia um instituto de ciências económicas e financeiras (hoje ISEG, das
finanças à gestão), sem entender bem a diferença: entre duas ciências? não são
a mesma? A crise incita-me a tratar da questão, nos limites simplistas duma
abordagem geral de leigo, é claro.
2. A questão – porque é que há crises financeiras?
– vale, a meus olhos, como um teste ao interesse que pode ter a minha proposta
duma fenomenologia geral em termos de duplos laços aplicada à complexidade sociológica inextricável
das sociedades contemporâneas, de que a economia é apenas uma componente; pode
esta fenomenologia ensinar algo que de outra maneira seja só a confusão de
argumentos que se sabe, cada um puxando a brasa à sua especialização e ninguém
tendo possibilidade de a globalizar suficientemente, justamente por ser
especialista? Por ora não sei a resposta (mas peneiras não me faltam): este
‘suspense’ faz parte do gozo intelectual de escrever para compreender. Creio
justificado o interesse duma fenomenologia dos duplos laços nos outros campos
de conhecimentos, tanto em física e química (mormente a questão do laboratório
e da centralidade das equações / medidas das suas variáveis), biologia,
linguística, antropologia e psicanálise, como aliás na maneira de estabelecer
correlações entre eles, o que também não é evidente hoje em dia: os cientistas por
estarem em geral bloqueados pelo respectivo paradigma em relação aos de
disciplinas vizinhas, os filósofos por dependerem do que os cientistas acham e
não terem recebido a liberdade de pensar as ciências além dos paradigmas
laboratoriais, liberdade essa que me veio, por um lado, de ter uma formação de base científica (engenheiro civil)
sem ter uma formação de base
filosófica e, por outro, de ter descoberto – através da problemática
estruturalista da linguística saussuriana[1]
– Derrida e Heidegger como permitindo abordar estas questões gerais suscitadas
pelas grandes descobertas científicas do século XX. Mas há que dizer que esta
fenomenologia com ciências deixa estas na autonomia dos respectivos paradigmas,
não sobrepõe argumentos mas coloca-os aonde as ciências não vão, além dos
paradigmas laboratoriais, onde se quedam porque é onde sabem. Vamos então à
questão, começando por três ou quatro prolegómenos recapitulativos de
fenomenologia sociológica.
Algumas teses de fenomenologia das sociedades contemporâneas
3. Uma tese sobre as sociedades contemporâneas
consiste em dizer que elas deixaram de ter a sua coesão enquanto sociedade em
lógicas dependentes das estruturas de parentesco, na Europa com uma classe
dominante aristocrática que transmite a propriedade e o respectivo poder
genealogicamente com as alianças matrimoniais e com um laço religioso
englobando-a com as classes produtivas, já que uma lenta revolução estabeleceu
três laços transversais aos
vários sectores de cada sociedade: o do mercado, o da regulação pelo Estado e o
da escola e da língua e dos médias de massa, desde os livros e os jornais até
aos de sons e imagens. Quando há crise, é nestes três laços que ela se manifesta.
4. Consequente desta, outra tese consiste em dizer
que acabaram as casas, unidades
sociais (mormente agrícolas e artesanais) em que os paradigmas dos usos dizem
respeito tanto à ordem do parentesco como à da actividade económica, esta
tendencialmente em autarcia, tal como as regiões em torno duma cidade (Lisboa
alimentada pelos “saloios”), havendo escola e mercado apenas em sectores
marginais urbanos. A revolução industrial, suscitada essencialmente pela
invenção da máquina a vapor durante o seu primeiro século e depois pela da
electricidade e máquinas com motor eléctrico (bem como do betão armado), criou
dois (relativamente) novos tipos de unidades sociais cindindo as antigas casas,
as instituições, em que se tem
um ‘emprego’ de trabalho especializado, e as famílias, multiplicando os prédios de apartamentos das
ditas classes médias. É nesta pertença a mais duma unidade social – família,
escola, emprego – contra a clausura das casas de antanho, multiplicação de
laços quotidianos com autoridades diferentes, que consiste a liberdade
específica do indivíduo moderno.
5. É também tese aqui, contra o hábito das
ciências das sociedades, que uma sociedade é composta, não de populações nem de
indivíduos as modernas, é composta das unidades em que estes são socializados
como indígenas pelos
paradigmas dos respectivos usos que aprenderam. As instituições organizam-se
por regra em sectores diversos com laços entre si (alimentação, saúde,
alojamento, construção, transportes, e por aí fora), mas as que dizem respeito
aos três laços transversais – escolas e médias; repartições de Estado administrativas,
judiciais e de segurança; bancos e seguros – criam laços que tendencialmente
atingem todos os sectores. O que aconteceu nos anos 60 e 70 do século passado,
como libertação de mulheres e jovens e de sexualidades proscritas, foi o
ultimar da quebra das ‘casas’, do domínio do ‘parentesco’ sobre o ‘económico’,
do patriarcado do ‘pai’ como ‘patrão’, a individualização que a escola e o
salário tinham trazido aos homens generalizou-se às mulheres[2].
Ao nível dos usos quotidianos deu-se uma ruptura entre os saberes de duas
gerações, a dos pais e a dos filhos: automóveis, electrodomésticos, televisão,
pílula feminina, todos com efeitos de libertação individual. Mas também, se
dantes enriquecer resultava ou de herança no parentesco ou de trabalho
empresarial na economia, agora esta dirige-se directamente aos indígenas,
suscitando o desejo de ser rico: à generosidade dos hippies da primeira geração libertada de jovens sucedeu a
dos yuppies dos anos 80.
6. Foi no início dos anos 70, se bem me lembro,
que se começou a falar de ‘multinacionais’, fenómeno que cresceu fortemente
depois, com o laço de mercado e em parte o dos médias (em inglês ou com
tradução) a ultrapassarem as fronteiras, o que as emigrações faziam havia
séculos (escravatura e criação das Américas), mas agora enlaçando também e
sobretudo as populações que não emigraram: cosmopolitismo – fim do domínio dos antepassados de parentesco e
do sagrado correlativo,
substituído este pela cultura
histórica (autores, invenções) e mediática – implica ambas as coisas, quer as
culturas dos que emigram, quer as dominâncias dos capitais e das mensagens
multinacionais sobre os nacionais, ou ‘sobrenacionais’ (‘sobre’ mais do que
‘inter’), que a reacção em geral dos que são invadidos em suas fronteiras é por
regra reacção de neo-colonizados: basta ver como todo o mundo asiático adoptou
a gravata europeia que ignoravam. Também este cosmopolitismo tem como
consequência a multiplicação de alianças entre Estados, nomeadamente a União
Europeia, a minorar a sua impotência sobre o além fronteiras, mas consequência
também que as guerras entre grandes potências se tornaram improváveis, elas
fazem-se “aos bocados”, regionais, como diz com humor lúcido Francisco de Roma.
O motivo de duplo laço da cena do mercado
7. Lembremos o motivo de duplo laço: trata-se duma unidade dupla que se move,
altera, composta de elementos
diversos ligados entre si de maneira a ser capaz de movimento numa cena de circulação
aleatória, a qual determina a ‘anatomia’ da unidade em duplo laço; por um lado,
laço motor repetitivo que dá a
energia do movimento, por outro, laço aparelho, com regras recebidas da cena, guiando os
movimentos da unidade face às outras que também circulam. O tráfego da estrada
com automóveis, motos e camiões, dá para visualizar. ‘Unidade dupla’ implica
que se trata de laços cuja anatomia é regida por duas leis indissociáveis (nem ‘motor’ nem ‘aparelho’ pré-existem por si
só, separados, apenas um com o
outro) que são também inconciliáveis (no caso dum automóvel, o ‘motor’, os cilindros regidos por uma lei
termodinâmica dos gases em explosão, são hermeticamente fechados para evitar
danos no tráfego). Os três laços transversais das sociedades contemporâneas
regulam as três lógicas mais gerais da circulação social: o mercado a dos bens,
a escola e médias a dos discursos e o Estado a da ordem e segurança do conjunto
(tanto unidades sociais como indígenas).
8. Trata-se agora de tentar caracterizar a cena
do mercado como laço que regula a
circulação dos bens: produzidos numa fábrica, por exemplo. As oficinas de
produção e os escritórios de planificação são um laço interno à fábrica, com
autonomia relativa ao mercado: a sua lei de produção de coisas úteis é de ordem
técnica, depende da figura do engenheiro. Mas a montante e a jusante este laço enlaça com o do mercado, quer nas
compras de máquinas e matérias primas, quer na venda dos produtos enquanto
mercadorias, segundo preços dependentes dos custos envolvidos na produção, dos
salários dos trabalhadores e dos lucros esperados (além dos empréstimos à
banca, impostos, etc.). Antes e depois do laço da produção (repetitiva: cadeias
de montagem, por exemplo) que é o ‘motor’ da empresa, o laço empresarial do
mercado regido pelo economista, está atento às oscilações da procura (joga com a publicidade) e possibilidades
de extensão da oferta a novas regiões, exportações quiçá, e por aí fora. Que
são indissociáveis, não dois laços mas um e duplo, salta à vista; a sua
inconciliabilidade é menos visível, mas sente-a o engenheiro nas exigências
constantes do economista de baixar custos e nas ameaças que elas representam
para a qualidade que ele, engenheiro, deve assegurar. Sentem-na também os
trabalhadores, já que os seus salários, que são a contrapartida do seu papel
imprescindível na produção, são vistos pelo economista como ‘custos’ a baixar.
Foi aqui que Ford percebeu que os seus trabalhadores também fazem parte do
mercado pelo lado das famílias e por isso da procura de carros: aumentar-lhes
os salários era aumentar também as vendas, desde que se enxergue mais o
mercado, além dos muros da fábrica: a inconciliabilidade jogando com a
indissociabilidade, questão de imaginação.
9. É o que temos que fazer também aqui, olhar a
cena do mercado como circulação das mercadorias produzidas aquém dele, em ordem
a serem compradas e saírem do mercado, para serem usadas. Também o mercado é um
duplo laço entre vendedores e compradores, moedas em troca de mercadorias, as
quais, uma vez compradas, saem do mercado, vão aos usos para que foram
fabricadas, quer em famílias, quer em outras instituições, que tanto podem ser
de duração mais ou menos longa, roupa ou máquina, como de consumir logo, se for
comida, por exemplo, enquanto que as moedas tornam o vendedor por sua vez
comprador de outra mercadoria, nunca saem do mercado, ainda quando depositadas
em bancos só valem como potencialidade de compra. As mercadorias são pois
passageiras enquanto tais, entram no mercado e saem, enquanto que a moeda permanece
no mercado, repete-se como o seu ‘motor’, já que sem ela não há movimento de troca: ela só vale em relação ao
mercado, constitui o laço que dá
o movimento com a energia dos desejos de compra e de venda. Este laço é
indissociável do outro, o das mercadorias e seus preços, que são elas que são
movidas, dumas mãos fabricantes para outras que as usam em suas unidades
locais: laço que é ‘aparelho’ que, com a troca de moedas, liga compradores e
vendedores o tempo duma dada venda, fornecendo uma língua que ambos têm que conhecer, a língua (económica)
dos preços correntes, este termo indicando que há uma oscilação maior ou menor
destes e que a necessidade de os conhecer é inerente aos interesses de ambos os
lados da venda / compra, que têm uma relação antagónica em relação ao preço
(que depende, é claro, da qualidade), isto é, à quantidade de moeda que o comprador
deixa de ter e que o vendedor passa a ter. Ainda quando se trate de uma
pechincha, a relação de ambos com a moeda (com o preço) é sempre inconciliável, poderia ser mais barato, acha o comprador, e
mais caro para o vendedor, mas só porque o mercado os interessa a ambos indissociavelmente: ninguém pode viver em autarcia numa sociedade de
grande especialização de trabalhos, tem sempre que comprar quase tudo aquilo
que usa e para isso tem que ter uma especialização do lado das vendas que lhe
garanta um salário.
A propriedade do dinheiro
10. [cito “As duas faces da moeda”] A tradição da
esquerda tem dificuldade em aceitar o dinheiro, mas tal como a electricidade na
dimensão técnica, é impensável a contemporaneidade na dimensão social sem ele,
já que dá uma liberdade elementar, a de escolher o que se quer e precisa,
dentro dos limites do orçamento familiar. Dos números a moeda recebe a razão de
calcular, de estabelecer preços para as trocas diárias, segundo custos e tempos
de trabalho. Esses números permitem uma ciência em que a moeda, a sua face
monetarista, reduz tudo o que
não é ela: de tudo o que seja mercadoria, só retém quantidades e preços, única
maneira de encontrar regras no complexo mundo das trocas; enquanto tal, a
economia não sabe nem de biologia nem de antropologia nem de politica, não sabe
de fome, de doença, de escola, nem de bem e mal. Mas a moeda tem outra face,
que a torna diferente dos números e das letras e das palavras e das músicas,
sistemas que se podem comparar com o seu. Estes sistemas, embora tenham
artistas que jogam melhor do que o comum das gentes, não têm donos, pertencem
aos usos de todos como queiram, são parte da liberdade de sermos humanos em
sociedade. Mas a moeda só pode funcionar como reguladora de trocas, uma das
partes de cada troca, a outra sendo uma mercadoria, só o pode fazer por ser
propriedade de quem a usa para
comprar e tornar-se propriedade de quem cede a mercadoria que vende. Não há
dinheiro sem dono, faz parte da lógica da moeda, da sua positividade, senão não
serve para trocar, não é moeda.
11. A propriedade do dinheiro, logicamente, é como
a de qualquer coisa ou edifício, é inerente a toda a unidade social que se
estabeleça, família ou empresa, mas só vale em relação ao mercado, a uma ida
possível a comprar algo para seu uso: numa ilha deserta ninguém é rico (mas
pode ler se tiver livros, cantar música ou fazer cálculos). Faz todavia parte
da lógica da tabuada que os números sejam sempre maiores do que os precedentes,
o que dá à moeda um papel malicioso, que é o de dinamizar a economia acicatando
desejos de ter maiores quantidades, sempre mais, sempre mais do que o vizinho,
o colega, o rival, o concorrente. E como ela funciona nos cálculos económicos reduzindo o que não é ela, pode neste acicatar desligar-se
de ser preço, de ser meio de troca, tornar-se especulação, com o seu factor narcísico inerente ao desejo de
posse, sem o qual não há moeda, como se disse. É aqui que a esquerda tem razão
no diagnóstico, o problema é que o remédio radical contra a propriedade, aonde
a revolução o levou a cabo, além das censuras ditatoriais, estancou o dinamismo
das economias. Ora, a lógica dum duplo laço, dum aparelho inconciliável com um
motor donde recebe o movimento, não pode ser a de cortar com ele, mas a da
regulação do movimento, no caso a regulação do mercado.
12. O que se chama pejorativamente ‘ganância’ é
pois uma componente intrínseca dos mercados, aquém da moral[3],
que encontra terreno fértil na respectiva componente financeira, necessária
nomeadamente para empréstimos de unidades sociais que não disponham de capital
para investimento da produção, edifícios, maquinaria, matéria prima, salários e
outras despesas antes da rotina de produção poder financiar-se com as vendas
feitas. Esta é a função elementar e essencial da banca, alugar dinheiro durante
um certo prazo, emprestá-lo para tornar possível a produção. Carecendo de
produção e portanto de mercadorias, em vez de vender (coisas), a banca aluga (dinheiro): é uma outra lógica, bem antiga aliás[4],
que se sobrepõe à do mercado, e que, pressupondo dinheiro já acumulado previamente,
permite ganhar dinheiro sem passar pelo trabalho de produção (nem de distribuição
comercial). Resultando da produção e dos lucros desta, as finanças são por
assim dizer subsidiárias do duplo laço técnica / economia, embora, é claro, do
lado desta. Mas sem produção! Essa é a diferença: sendo parte essencial do
mercado enquanto factor da economia, a banca (e as bolsas, etc., aqui limito-me
à banca pelo pouco que sei), as finanças não têm produção, são relativamente
autónomas em relação a esta, como a economia não é. E por aí oferecem às
economias tentações financeiras, que incidem justamente na relação
inconciliável entre lucros e salários, entre accionistas e trabalhadores,
contra estes, obviamente. Porque o que é menos óbvio mas mais democrático, é
que não há nunca ‘salários justos’ a não ser, como na fábrica francesa de
envelopes Pocheco do filme Amanhã, ‘justamente’ quando todo o lucro é investido, após ajustados os salários[5].
Isto é, quando a empresa é justa, salários solidários como solidário é o seu
funcionamento.
Se as finanças perdem o ‘motor’ económico
13. Ora bem, aqui o leigo chega aos limites do seu
saber e arrisca: se for verdade que o que está em questão na crise financeira
recente é a falta de relação dos capitais financeiros com o mercado propriamente
dito, o da economia de produção e consumo. Esta tem sempre limites, os da
procura que pode estabilizar-se ou baixar, a que se obvia estendendo as suas
redes a outras zonas e a outras produções; também as bolsas de acções jogam em
função da saúde económica das empresas respectivas, podendo sem dúvida
enganarem-se os jogadores e perderem por causa disso. As agências de ranking
foram criadas, parece, para obviarem bem ou mal (parece que se enganaram
redondamente no que esteve na vertigem da crise) à falta nas bolsas dum
referencial económico dos mercados, de línguas de preços. Mas a história das
“subprimes” parece ser típica duma ‘produção financeira’ sem relação com a
economia, apenas com dívidas mal paradas de trabalhadores de fracos salários.
Estes, por sua vez, futuros votantes em Trump por certo, eram já vítimas do
desacerto decisivo da teoria económica da escola de Chicago que convenceu
Reagan e Thatcher a seguirem politicas favorecendo a retribuição dos
accionistas em detrimento dos salários, isto é, a financeirizarem as economias,
perdendo o fito do mercado e, cúmulo das coisas, chegou-se a um ponto em que
toda a minha gente fala em “mercados” para designar esta bolha deles que, sem
mercadorias, não é nenhum mercado, basta que não tem a ver com nenhuma língua
económica de preços. É a esta ausência de relação ao verdadeiro mercado em que
se fazem trocas, à produção como seu motor nas empresas, que se chama especulação. [Esta palavra, de ‘espelho’ (speculum), significou o alvo duma crítica da filosofia
medieval, do seu jogo conceptual interno sem reenvio para as coisas, para a
dita realidade, jogo que se alimentava de si mesmo. Um aforismo crítico célebre,
que ilustra a posição nominalista dita “navalha de Occam”, dizia que “os entes
não devem ser multiplicados além do necessário”, esses ‘entes’ sendo
abstracções supostas reais; tal aforismo poderá ter alguma utilidade no que diz
respeito à tal engenharia financeira inventada, como as “subprimes” de má
memória]. A moeda do mercado só é motor deste porque desejada em termos de
preços, compras e vendas. Há dois outros sectores das economias modernas, as
terras e os trabalhadores, que são igualmente especulativos neste sentido, como
foram diagnosticados por Karl Polanyi no seu livro notável A grande
transformação. Nas origens politicas e económicas do nosso tempo (1944) de forma desconcertante à primeira vista.
O seu argumento é que nem as terras nem os humanos são feitos para serem
mercadorias, têm existência fundada e consistente previamente ao mercado. Assim
como a moeda também não foi feita para ser mercadoria de outras moedas nas
guerras de câmbio, nas especulações exclusivamente financeiras (os engenheiros
devem ter vergonha de ouvirem chamar a estas ‘engenharia financeira’!), também
não há critérios de mercado em relação a terras, sejam ou não de agricultura:
sabe-se bem como os terrenos favoráveis em meios urbanos ou turísticos sofrem
especulações desenfreadas, sem critérios de regulação que haveriam de ser
políticos, como o são as decisões dos salários: ou poder patronal tirano em
tempos de desemprego, ou greves, ou concertação de contratos; aqui, o
especulativo assinala-se nos salários milionários dos ‘bons’ gestores. Mas como
se justifica o argumento de Polanyi em relação à moeda, já que ela não é prévia
ao mercado? Justifica-se pelo lugar que ela tem neste: ligada à lista dos
preços, ela tem, no duplo laço que é o mercado, o papel de motor regulador das trocas: é isso que a impede de ser mercadoria. Na
especulação financeira, ela é jogada arbitrariamente (quero crer) sem relação
ao ‘real’ da economia: sem língua de preços, quer-se sempre mais, como era nos
saques (que a troca monetária substituiu). O que especulação aqui significa,
poderá ser dito assim: trate-se da terra, cuja fecundidade nos dá aquilo que
nos alimenta e das ameaças sobre o ambiente climático poluído, trate-se dos
trabalhadores assalariados, que são antes demais cidadãos, trate-se da moeda
como mecanismo de regulação dos mercados, da racionalidade possível das trocas,
nenhum destes três domínios, segundo Polanyi, deve ficar entregue ao que se
chama “leis do mercado”, mas ser submetidos a regulação política, pelos Estados
ou suas alianças nesse sentido.
[1] Na minha tese de
doutoramento (1989), com Luís Lindley Cintra, Mª Alzira Seixas, Vítor Aguiar e
Silva, Fernando Gil, António Marques e Malaca Casteleiro. Apadrinhada pelos
dois primeiros, doutorei-me em Linguística, porque não consegui arranjar um professor
de filosofia para a dirigir, como aliás F. Gil e A. Marques, os dois filósofos
do júri, não conseguiram arguir, a problemática pós-estruturalista era então
desconhecida em Portugal.
[2] Começou-se a falar de
‘género’ para as relações sociais entre masculino e feminino, que o termo
‘geral’, ‘género’ diferente de ‘espécie’, ‘general’, era até aí feudo patriarcal,
sem ‘generosidade’.
[3] Os espirituais preferem o
‘espírito de pobreza’; conceberam-se historicamente economias comunitárias
nessa base, em regra não duraram o teste das gerações sem se abastardarem
(frades pobres em ordens ricas): ela não é adequada às sociedades humanas, em
que os santos são excepção.
[4] Já no século VII antes da
nossa era, o livro bíblico do Deuteronómio (cap. 15) propunha medidas
de regulação jurídica dos empréstimos, protegendo os que não conseguiam saldar
as suas dívidas.
[5] 114 pessoas, dois terços
operários, fazem dois biliões de envelopes por ano, 22 milhões de euros por ano
de volume de negócios, crescimento de 3% por ano desde há 10 anos, salários de
1 a 4, a partir do salário mínimo aumentado de 15%, uma economia fortemente
ecológica.