1. É uma questão que parece
‘idealista’, no sentido filosófico do termo, e por isso incómoda ao
fenomenólogo. Mas não é fácil iludi-la: quando por exemplo António Vitorino
diz, no Público de 25 de
Março, que “a Europa tem que pôr as politicas onde estão os valores”, como
entender o sentido desta frase? Foi de facto Platão, o filósofo ‘fundador’ do
idealismo no pensamento ocidental, se se pode dizer assim, que definiu o bem, o
belo, o justo, a virtude, e os colocou como as “formas ideais” eternas que as
almas contemplaram antes de virem aos corpos e que permitiam conhecer o mundo,
em conhecimento indissociavelmente ético e intelectual: devia-se governar com
os olhos nelas. Depois o cristianismo foi tomado por esse paradigma, a que ajustou
a sua concepção dum criador do mundo a coincidir com a fonte desses ‘valores’.
Humanistas, as Luzes puseram como ideais humanos ou valores a liberdade,
igualdade e fraternidade, o progresso, democracia e justiça, a declaração dos
direitos dos cidadãos. Não são ainda hoje os nossos valores? Embora com o
‘progresso’ sujeito a reticências ecológicas.
2. Duma forma muito simplista, ponhamos a nossa
questão assim. Se vamos de carro numa viagem, precisamos, além do meio de
transporte e de quem o guie, de saber para onde vamos, o ‘sentido’ ou
‘orientação’ da viagem, que é fornecido ao motorista pelo viajante, que é pois
algo que não pertence ao carro (este pode ter muitos destinos) mas sem o quê
este não pode fazer nenhuma viagem. Ora bem, em qualquer percurso de carro
pôr-se-á alguma questão de ‘valores’? Essa pertencerá ao motorista: a
necessária atenção a evitar acidentes, a não atropelar ninguém.
3. Se tomarmos os processos sociais humanos muito
variados, desde os económicos e políticos aos cívicos e culturais e de lazer,
percebe-se que eles não se organizam sem finalidades, que guiam as decisões dos
percursos, à maneira metafórica dum destino, que lhes dão direcção, o sentido de cada movimento. É
essencialmente em linguagem que esse sentido se exprime. Mas as decisões destes
processos com os respectivos sentidos, visto que têm de confluir com uma
multidão de outros processos, precisam igualmente de ‘valores’, que são
colectivos e plurais, os quais jogam nomeadamente na atenção para evitar que os
mais fortes não atropelem os mais fracos, que as poluições não destruam as
condições de habitação dos seres vivos, que os conflitos não degenerem em
crimes ou em guerras, e por aí fora.
4. Pode-se dizer que é este motivo de valores que
traduzia a antiga palavra ideal, sem ter esta que ser contaminada pela noção ‘idealista’ de que se trate
duma causa metafísica, nem se trate duma questão de ‘mentalidades’, como se diz
muitas vezes. Precisa de atenção democrática e dos debates cívicos e políticos
que atendam às vicissitudes das decisões que se vão tendo de tomar, atenção às
pessoas e às coisas, ao que é terrestre, contra o que é hoje dominante, o
dinheiro como ‘valor’, o qual justamente não ‘vale’ nada por si, é puramente
‘idealista’, só vale em função das coisas terrestres. Quando se diz que a nossa
civilização é ‘materialista’, está-se profundamente enganado: se só o dinheiro,
abstracção de troca, é que vale, a 'especulação' financeira, como se diz, mostra o idealismo do sistema, donde os seus efeitos de crise a jogarem nos conflitos
humanos que em torno dele se geram.
5. Mas nunca me ocupei das questões éticas e ainda
menos de ética politica, donde o simplismo desta nota.