Bem haja! Maribel
que este textozinho me suscitou
1. A nossa noção vulgar de tempo é uma convenção
ligada aos relógios. Nos relógios de mostrador um ponteiro anda à volta de hora
em hora, outro de minuto em minuto e outro de 12 em 12 horas. Descrevem ciclos
os ponteiros, com os quais contamos unidades de tempos de forma linear, como se
o tempo fosse uma linha recta que vem desde o infinito, agora desde o tal big
Bang, até ao infinito. Mas essa linha também é espacial, como os três ciclos do
relógio.
2. Várias coisas se deduzem deste
estado de coisas. Uma delas é que não se pode contar o tempo senão em medidas
de espaço, em distâncias no mostrador do relógio, ou em ângulos, se se quiser,
geometria em todo o caso. Porque podemos medir uma distância espacial, com uma
fita métrica, por exemplo, um ângulo com um transferidor, a partir dum lugar
perto da distância a medir, com olhos e mãos. Mas não podemos afastarmo-nos do
tempo, estamos sempre em tal ou tal momento e medir o tempo seria a diferença
entre dois momentos, com as tais unidades convencionais, segundos e minutos:
ora o mensurador está no momento inicial e no final e em todos os momentos
intermédios, ele faz parte do que se está a medir, não se pode pôr a cabeça de
fora do tempo para o medir. O que leva a considerar a definição dele na Physica
de Aristóteles: “o tempo é o número do movimento segundo o anterior e o
posterior” (IV, II; 219
b 1), que diz que o tempo é a maneira
de numerar, medir, o movimento; é pois a maneira dos humanos medirem, calcularem
o movimento, não é algo ‘em si’, o tal contínuo linear entre dois infinitos, e
que é correlativo do ‘agora’ (nun) em que se mede, com antes e depois da consideração sobre o tempo, ou seja
sem se sair desse ‘depois do antes e antes do depois’ que é próprio de cada
momento dum movimento.
3. Sendo assim, cada coisa, viva ou
não, cada pessoa, está sempre em movimento (mesmo parada, pode sempre mover-se:
erosão das rochas, oxidação dos metais), tem o seu tempo: e é por causa deste
inúmeros tempos que temos necessidade de os medir e convencionar unidades de
medida gerais, como os relógios. Mas estes, nos diversos ciclos dos seus
ponteiros não fogem ao que estamos dizendo: o que se mede é o movimento deles,
a distância que percorrem entre dois momentos, truque que permite retirar não a
cabeça mas o relógio de fora do tempo.
4. Se a divisão em 24 horas é uma
convenção (egípcia, aprendi com o Público dos 25 anos), o seu conjunto, o dia, é o tempo do movimento da terra em
torno de si mesma, que chamamos com o mesmo nome do tempo que tem luz, o dia, o
qual só é parte do dia de 24h, o tempo sem luz é noite e a partição entre ambos
varia com o outro movimento da terra, o de translação em torno do sol, cujo
conjunto de dias chamamos ano, sem já ter em conta, excepto perto dos pólos, os
tempos de luz e os tempos sem ela. Esta bissemia do termo ‘dia’ diz bem a
diferença entre o tempo que se pode chamar ‘real’, o tempo do movimento das
‘coisas’ (res), oferecidas à
luz e retiradas da escuridão, e o tempo convencional dos relógios e
calendários.
5. Ser e Tempo (1297) é a tentativa filosófica de tematizar o
tempo dos humanos enquanto estruturando a sua ek-sistência, seres no mundo que, explicito eu, do mundo aprendem e se fazem
seres da e na sua tribo, ser dos seus tempos, que é suposto nascerem e no dia a
dia se alimentarem, terem o cuidado disso, por si e por outros com quem vivem,
e que – e é o que Heidegger tematiza – antecipam um dia que morrerão: esta antecipação
é parte essencial da sua temporalidade, tal como é a da sua aprendizagem que
Heidegger silencia mas pressupõe com o cuidado e as possibilidades abertas,
categorias igualmente temporais que as filosofias das almas imortais e dos
sujeitos opostos aos objectos sempre ignoraram: mas a ‘possibilidade’ ecoa à dunamis aristotélica, à capacidade (com força) de se
movimentar, de fazer obra (energeia). Em meados dos anos 30, Heidegger começa a falar de vez enquanto em
Ereignis (acontecimento em
alemão), termo que inclui o tempo – é óbvio – mas se pode considerar
corresponder ao encontro entre dois ou mais movimentos que os afecta enquanto
movimento justamente. Aparece pois um termo implicando a temporalidade e seres
(humanos, por suposto filosófico heideggeriano), dizendo a conjugação entre
eles de que Ser e Tempo não
soubera dizer nada de positivo. Uma outra temporalidade aparece no início dos
anos 40, meditando Aristóteles (a phusis e o movimento) e acrescentando-lhe Heraclito: “a phusis, o Ser traduz ele, gosta de se retirar”, este
retiro sendo da doação dos vivos; sem falar em nascimento como antes tematizara
a morte, é este que – de forma retirada, dissimulada, se dizer se ousa – vai
ser a novidade dos 20 anos por vir do pensamento heideggeriano. O admirável
desta conjugação dos dois pensadores gregos do ‘movimento’: este tem momentos
fortes de doação, em que um casal de vivos dão origem a um rebento mínimo que
crescerá, como tempo é claro, mas sendo para isso necessário que a força dessa
doação (archê da phusis) seja retirada, dissimulada, adequada à dimensão
mínima desse rebento, à sua temporalidade. Interpretando assim, já o grande
texto de 1962, Tempo e Ser,
está a pedir explicitação, que permitirá aproximar-se enfim de Aristóteles
ultrapassando-o radicalmente: se dissermos que o acto de amor que lança o
rebento para 9 meses de gravidez é um acontecimento, este que nasce para a sua
temporalidade – entre semente e morte futura – é doado por esse acontecimento como sendo simultaneamente
ser e tempo. Onde na Physica
aristotélica a ousia, enquanto
substância da mesma essência
de outros, se opunha aos ‘acidentes’ (termo equivalente a acontecimento), à
particular temporalidade de cada um, agora a mesma família (da mesma tribo) faz doação do filho enquanto vivo temporal
e retira-se gradualmente para lhe deixar as suas possibilidades de vivo temporal.
6. O Ereignis de 62 ocupa o lugar que até aí tinha o Ser,
doador retirado, na diferença ontológica, que se pode traduzir como ‘não
Acontecimento que faz doação de acontecimentos’. Estes acontecimentos, dissemos
atrás, são encontros entre dois ou mais movimentos que os afecta enquanto
movimentos. Se procurarmos aproximar o motivo de movimento do de acontecimento, podemos supor as rotinas de movimentos quase autónomos,
pequenas repetições que de facto nunca se repetem exactamente, pequeníssimos
acontecimentos em zoom de grande escala, em que movimento e acontecimento
parecem coincidir (em todo o movimento há sempre alguma alteridade, doutro
movimento), e depois diminuirmos a escala do zoom e darmos com um acontecimento
que vem alterar as rotinas e reorientá-las com fragor até que a rotina se
estabeleça. Por exemplo, a rotina em que se guia um carro e se conversa com o
parceiro do lado e a ameaça duma colisão que obriga a movimentos rápidos e
talvez não consiga evitar o acidente, a maca a caminho do hospital, até que
volte são mais tarde ao carro reparado; ou a rotina duma oficina de fábrica quebrada
com a introdução duma máquina que implica aprender a manejá-la, rever a equipa
que trabalha e passado um tempo a rotina que volta. Nestes exemplos se diz, tal
como no do nascimento, como as doações em suas formas diferentes de serem
acontecimentos jogam na oscilação temporal com as rotinas, estas provindo de Ereignis que serão as ‘espécies’ biológicas no nascer que
comunica o ‘mesmo’ da espécie (a essência aristotélica) a um indivíduo singular
e os ‘paradigmas’ dos usos sociais nos dois outros casos em que o que se
aprendeu foi para se tornar rotina, habilidade espontânea dum motorista ou dum
operário.
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