1. O demógrafo francês Emmanuel Todd é o autor de
textos notáveis tão iluminadores como objecto de polémica dos seus pares (ou
ímpares), nomeadamente O terceiro planeta (1983), publicado em português sob o título A diversidade do Mundo (I. Piaget), juntamente com um outro texto dele, A
infância do mundo. A sua tese é a
de que há uma correlação entre as estruturas familiares – morgadio (herança do
filho mais velho), igualdade entre irmãos, comunitarismo familiar (endogâmico)
– e a super-estrutura
ideológica das sociedades, quer religiosa quer política. Publicou vários livros, nomeadamente uma análise
comparativa dos casamentos mistos nos Estados Unidos, Inglaterra, França e
Alemanha que lhe permitiu mostrar como os casamentos mistos de autoctones,
respectivamente com os negros, os paquistaneses, os magrebinos e os turcos, são
claramente mais baixos do que quaisquer outros, sendo pois uma espécie de
‘ponto fixo’ do racismo de cada um[1].
Ora bem, Todd acaba de publicar Où
en sommes-nous? Une esquisse de l’histoire humaine, no Seuil, de que Le Monde publicou extractos no seu número de 1 de Setembro.
Pela primeira vez, leio uma história da escolaridade contemporânea, e mais
ainda, colocada face à da economia, o que permite perceber melhor o que se
chama ‘sociedade de conhecimento’ e também abre uma pista de compreensão da
subida dos populismos, que deduz-se que é um dos objectivos do livro mas que
não consta dos extractos.
Escolaridade e economia crescem juntas e interferem
2. Segundo os números que ele dá nos países mais
avançados, houve três fases na história da escolaridade moderna, a do ensino
primário para todos (ler, escrever e fazer contas) ao longo do século XIX, a do
secundário de massas e a do ensino superior. Foi na segunda fase que os
Americanos passaram de 10% em 1900 a 70% em 1940, bem à frente dos principais
países europeus, sem números nos extractos. A terceira fase diz respeito ao
acesso ao superior, onde os números americanos vão de 3 e 2 % (homens e
mulheres) em 1900, 7,5 h e 5 % m em 1940, 27 h e 22,5 % m em 1975, finalmente
30 % homens e 35 % mulheres em 2000, em França havendo uns 30 anos de atraso[2].
Além da ultrapassagem dos homens pelas mulheres que se tornou regra nos outros
países também, há um fenómeno por assim dizer inesperado: a evolução dos
números relativos ao ensino superior não foi a mesma do que fora no primário e
no secundário, onde tendeu a atingir toda a população, enquanto que o ensino
superior conheceu em todos estes países mais avançados uma estagnação, a
correspondente aos 30 % homens e 35 % mulheres em 2000, mas já em 1980 houvera
estagnação e até algum recuo.
3. “A questão que é posta é a dum limite à
elevação do nível educativo da humanidade”, escreve Todd. Enquanto que a escola
primária e o liceu representaram um progresso claro, que “tinha alimentado um
subconsciente social igualitário”, o aumento da população estudantil
universitária “rompeu a homogeneidade do corpo social”: “o tecto da educação superior
gerou, nos Estados Unidos, depois nos outros países, um subconsciente
desigualitário”. Todd recorre então às curvas de evolução do rendimento submetido
ao imposto do livro de Saez e Piketty para encontrar justamente em 1980, o ano
da eleição de Reagan, o ano em que “a liberação dos rendimentos dos mais ricos
escapa ao peso de qualquer racionalidade técnica ou económica; o
neo-liberalismo toma o comando, num clima de guerra social”. A tese é que “o
cultural, o ideológico e o politico precedem o económico”. “Este carácter de
lâmina de fundo do movimento desigualitário permite afirmar o primado duma
determinação pela educação e a ideologia e o carácter derivado da evolução
económica”.
4. Passar de ‘precedência’ à palavra
‘determinação’ aplicada a infra- e super-estruturas mostra o enviezamento do
raciocínio: o que Todd busca é ‘inverter’ Marx e a sua velha tese da determinação
em última instância das super-estruturas pela instância económica, tese
essa que ‘invertia’ Hegel; ora, a
escolaridade invadiu a economia de forma tal que a oposição entre tais
estruturas se torna caduca, bem como à sua reinversão toddiana. A proposta da
história da escolaridade em correlação com a dos PIB sugere-me outra reflexão,
já que a evolução da escolaridade fê-la penetrar na do PIB, para começar por
duas vias de escolaridade especializada, a saber a dos engenheiros e a dos
economistas e financeiros. O fordismo do princípio do século XX, a invenção da
montagem em série dos automóveis Ford, é já o indício de como os ‘patrões’ do
século XIX – que tinham legitimidade clássica de serem ‘pais’ (quando nas casas
de antanho a economia e o parentesco eram chefiadas pelo mesmo, o pai-patrão)
mas que incluía a competência que lhes vinha de conhecerem o ofício – foram
sendo substituídos por engenheiros cuja especialização eles, patrões, ignoravam.
O saber vindo da ciência por via da escola não era já ‘interno’ e para o voltar
a ser as grandes empresas vieram a ter que criar ateliers de investigação
própria. Os nomes de Keynes (com Roosevelt) e de Friedman possivelmente
indiciam algo de equivalente em termos de competência de economistas e
financeiros, o primeiro tendo tido um papel orientador nos célebres 30 anos gloriosos
a seguir à 2ª grande guerra e o último na inflexão neo-liberal que, pondo os
lucros das empresas à cabeça, as desligaram do campo politico compreendido nas
fronteiras dos estados-nação e lançaram as multinacionais (termo do início dos
anos 70, se bem me lembro) para a globalização e o crescimento dos países não
ocidentais, sobretudo asiáticos, fora o caso à parte do Japão.
5. Como é frequente, Todd resume a 2ª revolução
industrial pela “electricidade, automóvel e aviação”, esquecendo o betão armado
que tornou possível as grandes cidades e seus prédios de apartamentos para as
novas famílias das populações que tinham feito o liceu, as chamadas ‘classes
médias’, bem como ignora os seus médias devidos à escolaridade, revistas, rádio
e cinema, e depois televisão. Ora, se as suas curvas colocam a Europa avançada
com duas ou três dezenas de anos de atraso em relação à América, Todd que não
se esquecera de dizer que entre as duas guerras as universidades e investigação
científica que contavam eram sobretudo europeias (parece óbvio que os Americanos,
tal como os antigos Romanos em relação aos Gregos, são sobretudo engenheiros,
não tanto ‘pensadores’), não dá relevo nenhum às incidências dos médias (terão
curvas de crescimento a par da da escolaridade) sobre os estudantes liceais e
universitários e à contemporaneidade das revoltas juvenis e feministas dum lado
e doutro do Atlântico e até ao longínquo Japão. O livro de Luc Boltanski, Le
nouvel esprit du capialisme, de
1999, mostra como as empresas francesas se des-hierarquizaram estruturalmente
na sequência do Maio de 68, incidência da escolaridade e dos médias.
6. Ora bem, porque é que, tendo melhorado
fortemente os níveis de escolaridade, ainda que tendo em conta a estagnação do
processo no superior, o neo-liberalismo teve o vento em popa até provocar a
gravíssima crise de 2008 e ter em seguida continuado quase como se não tivesse
havido crise? Há provavelmente duas razões principais: por um lado, o
desenvolvimento dos meios electrónicos de cibernética (e a robotização nos
meios de fabrico e transporte) que permitiram acelerar tremendamente a
globalização multinacional, levando de vencida a cada vez mais fraca
resistência ‘política’ do estado-nação, e por outro lado, a fraqueza
ideológico-política deste praticamente soçobrou com o ‘fim do medo do comunismo’
das burguesias ocidentais a partir de 1989. Destes dois factores terá surgido o
‘pensamento único’ desvastador das classes médicas. Aliás, a cibernética das
chamadas redes sociais, tipo Facebook, mas já antes a Microsoft e a Google, dá
exemplos de novidade na história dos PIB, quando se vê engenheiros muito jovens
tornarem-se em poucos anos chefes de grandes empresas multimilionárias:
trata-se não de inventores de máquinas (hardware) mas das suas linguagens (soft), o que reenvia para a questão da escolaridade a
intervir estrondosamente na produção económica.
A critica do argumento de autoridade
7. Chego então ao ponto que me trouxe a questão de
E. Todd: como situar o populismo recente nesta problemática? Estes dados chegam
ou há que olhar de forma mais alargada à história da escolaridade? Recuemos à
Idade Média, onde nos séculos XII e XIII se deu algo de totalmente inédito na
história dos humanos[3]:
em vários lados, começando em Bolonha, comunidades de clérigos pegaram na
herança greco-romana e árabe para ensinar os seus alunos lendo e comentando os
textos recebidos. Estas universidades são a fonte histórica da
escolaridade europeia de que se falou acima: desprovidos de saber autónomo,
esses clérigos liam textos que discutiam, textos cuja posição era dela mesma a
duma autoridade em termos de
saber[4].
Ora, quando no século XVI se consumou a crise do magistério eclesiástico no
norte da Europa e “os mares nunca dantes navegados” abriram os caminhos
marítimos da globalização, essa abertura foi também a da ‘crítica’ dos argumentos
provindos da autoridade dos textos que se liam nas universidades, os quais ignoravam
quase tudo destas novidades em terras, gentes e hábitos: ao saber literário
é oposto o saber da experiência.
O alvo principal desta crítica são os textos de Aristóteles, que até aí englobavam
uma boa parte do saber que se ensinava. A introdução do ‘labor’ experimental no
saber filosófico pelos laboratórios científicos foi parte importante, marginal
às universidades em grande parte até às reformas destas no início do século
XIX, dessa critica, dessas Luzes a que Kant atribuiu o papel de tornar os
humanos adultos pela Razão que, na sua época, fecundou a revolução francesa.
Todos os humanos, em princípio, mas a tal estagnação é também a do
igualitarismo das Luzes que Todd deplora. É que ser adulto é pensar em
autonomia após se ter aprendido, o objectivo da aprendizagem é justamente a
autonomia, a liberdade do pensamento, da expressão, e o que a igualdade
pressuporia era um nivelamento das possibilidades desse pensar autónomo, que se
restringe para a maioria ao saber tribal e ao que é recebido dos médias, mas
também para os de nível universitário conhece as inevitáveis restrições da
respectiva especialização.
8. Quem é hoje depositário de saberes? Na maneira
como as nossas sociedades estão organizadas, a resposta parece ser esta: os
professores universitários, já que são eles que ensinam as novas gerações, que
ensinam inclusivamente os professores de liceu que vão ensinar os adolescentes.
Mas também os médias contribuem para os saberes, os livros antes de mais,
revistas e jornais, médias de voz e imagem, e há enfim as ditas redes sociais
entre computadores pessoais e telemóveis. As democracias organizam eleições
como processo de designação dos responsáveis de vários níveis da coisa pública,
no pressuposto de debates que esclareçam e permitam que se vote como adulto
autónomo informado. É certo que dos responsáveis que são eleitos são excluídos
professores, médicos, cientistas, engenheiros, etc., uma série grande de
lugares de eficiência social relevante mais ou menos circunscrita, que devem
ser nomeados mediante exames e concursos diversos. Ora, toda esta gente é
altamente especializada, em razão mesma da proficiência dos progressos dos
saberes, e em consequência não há nenhuma sede de saber de tipo ‘geral’ ou
‘universal’ a que se possa recorrer, fora das competências especializadas. Como
se tem visto na questão das alterações climáticas, será sempre o debate
entre especialistas o último recurso em termos de saber. Mas como é este acessível? Até há algum tempo, a
resposta consistia nas bibliotecas, os professores sendo não apenas autores de
livros mas também e sobretudo os cicerones das bibliotecas, que encaminhavam os
leitores. Era ainda o tempo dos argumentos, mais ou menos bem tratados, mas era
preciso ler e saber ler, ouvir e saber ouvir. As chamadas redes sociais vieram
alterar fortemente as coisas. Sem dúvida que já os médias dedicavam muito tempo
ao entretimento e ao divertimento, além dos argumentos, esses médias tinham
todavia os limites de as suas emissões serem unilaterais em relação aos seus
clientes: leitores, ouvintes ou espectadores não tinham voz nem mãos, limitados
a receber e a interpretar o recebido, ou a mudar de livro para música, ou a
mudar de canal, como sua ‘liberdade’. As redes sociais, que neste sentido não
são propriamente ‘médias’ mas ‘redes’, que excluem a unilateralidade e multiplicam
os pólos possíveis, criando circuitos diversos mas com tendência, parece, a funcionarem
em percursos fechados nos seus interesses. Elas têm uma acutilância: dão voz e
mãos-teclado a quem quer que seja. E é onde os argumentos e os saberes
desaparecem, submersos cada vez mais no mar das ‘opiniões’ e dos seus interesses.
Ora, como sabemos por experiência própria, é mais fácil ouvirmos a nossa voz do
que a voz alheia, raros são os que aliam inteligência com a atenção suficiente
ao próximo para dele aprender alguma coisa que valha como saber que oriente. O
cúmulo deste processo está por um lado no crescente abandono dos livros, da
maçada de os ler, e no outro extremo, no uso político do chamado twitter, que,
ao que se diz, só admite 140 caracteres:
deve ser a medida mínima para evitar qualquer argumento, a sua
substituição por pontos de exclamação. Foi nesta caricatura que desaguou a
‘crítica do argumento de autoridade’ em favor da autonomia do pensar, da
liberdade de expressão, agudizando esta até ao ponto do relativismo generalizado que não sabe já o que é saber. É
aonde o populismo, como demagogia, se tornou possível.
A réstia de esperança
9. Pessimismo? Foi em águas assim que a Filosofia
medrou nos tempos gregos e se fez a sua renovação europeia com a Física: foi a
multiplicação de manuscritos no século V a.C. em Atenas e de livros impressos
na Europa do Renascimento que originaram relativismos. É que essas
multiplicações de ‘médias’ provocaram cortes abruptos com o saber ancestral
aprendido, cortes esses que dão testemunho, quer o célebre “só sei que nada
sei” de Sócrates (que arrogância! tudo o que aprendeu não valia nada!), quer a
“dúvida metódica” de Descartes. A cibernética é uma mais valia tremenda de
possibilidades: o gosto de saber como necessidade, que é das coisas mais
fabulosas da experiência terrestre, mostrará, sabe-se lá quando, que há-de
haver por aí novas gentes a criar novos argumentos. Talvez vindos de fora dos
velhos paradigmas europeus refazer estes, de maneira inédita que sirva para as
muitas línguas e tribos que se estão a globalizar. Os Trumps grotescos só podem
ser um estímulo, o que, seja como for, não se quer.
[1] Le destin des immigrés.Assimilation et ségrégation dans les
démocraties occidentales, Seuil, 1997
[2] Em 2010, em França há mais de 50% de ‘superiores’, mas divididos ao
meio : os que têm o nível de licenciatura e os que não a têm [após
Bolonha, creio], o que mantém a desigualdade.
[3] Só tem como paralelo, bem
diferente, a maneira como a estrutura do mandarinato chinês permite compreender
os mais de três milénios do respectivo império e portanto a originalidade do
seu ‘comunismo capitalista’.
[4] Nos limites, é certo, da autoridade
do magistério eclesiástico, cuja inquisição veio a ser terrível.