1. Porque é que na escrita da Filosofia
com Ciências tive que começar pela Biologia e não o pude fazer
com a Física que, com a Química, veio apenas quando o quadro já estava
composto ? a resposta não pode consistir apenas em ser mais fácil na
Biologia, porque justamente não é verdade, a bioquímica da célula é bem mais
complicada do que a Física, só os físicos não acharão. Também não será por os
duplos laços serem mais visíveis na Biologia, já que eu sabia de todos desde o
início, só em relação à sociedade tive que reelaborar um pouco o dado inicial.
Creio que é o lugar de Illia Prigogine na composição dessa escrita que explica
a coisa, ele era indispensável, mas não tinha aberto uma brecha na Física ou na
Química mineral que desse para entrar, apenas na Bioquímica. Foi depois, quando
se veio a pôr a questão da produção de entropia de forma geral em Física Química,
e ver o que resultava, que se percebeu o escândalo.
2. É notável excepção creio, que o jovem
universitário belga de origem russa já pusesse uma questão filosófica de fundo
aos estudos de física que fazia: a desta não ser capaz de ter em conta a
irreversibilidade do tempo, do tempo histórico, tal qual ele faz parte das
outras ciências como que espontaneamente desde o século XIX. E terá percebido
precocemente que o busillis estava nas equações da física, digamos que eram
matemáticas demais, não chegavam à ‘realidade’ dos movimentos que os
laboratórios mediam (esses sim, irreversíveis!). Com essas equações em que ambos
os membros são equivalentes, tanto um móvel pode andar para a frente com a
velocidade v como para trás no
tempo, à maneira dum vídeo a voltar ao princípio, com tempos negativos, o que
não é a mesma coisa que temperaturas negativas, por exemplo, questão da
convenção das unidades, há um zero absoluto de temperatura (em ‘temperatura’
haverá ‘tempo’?). A Biologia e a História das sociedades humanas têm um vector
temporal essencial, o qual faltava em Física, meditava o jovem estudante que se
pôs a ler filósofos sobre o tempo, já que nem as acrobacias de Einstein, Bohr,
Heisenberg ou Schrœder, escapavam a esta reversibilidade ‘matemática’, não
atingiam a ‘física’ da Terra, por exemplo da Geologia.
3. Com efeito, a sua “produção de entropia” é
justamente a do tempo irreversível duma estabilidade instável, que ele aliás
nem sequer aceitava que pudesse ser reversível, já que me recusou a morte
adiada pela vida (esteve em Lisboa em Novembro de 1988), embora talvez não
tivesse compreendido bem o que eu lhe propus citando Derrida: isto é, julgo que
se pode dizer que Prigogine manteve a oposição entre a sua entropia e a de Clausius, como se se
tratassem de capítulos diferentes da física (embora seja claro que há nisto
coisas que eu ignoro). Ora, nas células é fundamental que elas se reproduzem
quando na sua fase de instabilidade instável, isto é enquanto vivas; o triunfo
da vida sobre a morte não é a abolição desta mas haver nascimentos prévios,
digamos assim: a irreversibilidade do tempo da vida não é a imortalidade,
mas a reprodução das células (mas
Prigogine nunca se interessou, nos livros de divulgação, pela dimensão
biológica da sua descoberta). É certo que eu nunca entendi claramente os
exemplos físicos ou matemáticos de entropia positiva, mas julgo que eram sempre
excepções; embora ele tivesse a ambição de reformular a física inteira, não me
parece que alguma vez lhe passasse pela cabeça a minha proposta de ‘entropia
produzida’ dos átomos e moléculas, que, essa sim, reformularia a física toda. Creio que ele ficou a meio
caminho da sua descoberta genial, como aliás parece significativo o seu último
texto de divulgação, O fim das certezas, dum relativismo confrangedor.
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/10/questao-prigoginiana-sobre-energia.html
4. Prigogine aderiu ao big Bang mas
propondo uma reformulação, uma vez que o modelo aceite pressupõe “uma
singularidade, um ponto sem extensão onde se encontra ‘concentrada’ a totalidade
da energia e da matéria do universo [...] a que as leis físicas não podem
aplicar-se” (Temps et éternité, p. 149); o sábio belga contrapõe “um Universo vazio, de curvatura nula”
(Minkowski), sem matéria, energia nem espaço-tempo, “flutuações quânticas do
vazio” instáveis, aparecendo e desaparecendo, uma espécie, diz ele, “de
mini buracos negros dissipativos” de que um, com uma massa superior 50 vezes à
massa de Planck, “conseguiu transformar a energia negativa do campo gravítico
em energia positiva de matéria [...] cuja curvatura do espaço-tempo atrai
materialização de outras partículas, etc”. Mas, em seguida adopta o modelo
corrente das partículas que irão tornar-se núcleos, átomos, até chegarem a
estrelas. Ora, neste ponto, não vejo como é que as suas categorias de produção
de entropia são viáveis, possam ter algum papel. Mas é claro que estou a
extrapolar, há ignorância demais nestas minhas considerações sobre o pensamento
dele.
5. Seja uma comparação herética, a
dessa nuvem big banguista de partículas com os começos da vida segundo Marcello
Barbieri (Teoria semântica da evolução, Fragmentos, 1985). Se bem entendi, o acento que ele põe nos açúcares
ribos (ribonucleicos) como capazes de sintetizarem outras proteínas e a sua
noção dum bilião de anos até haver células, num jogo interminável de moléculas
umas com as outras, permite ‘imaginar’ a origem da vida. Assim como os pássaros,
para fazerem ninhos, buscam materiais com dadas propriedades físico-químicas
que se adaptam à estrutura do ninho, isto é, não ‘fazem’ essas propriedades,
elas já lá estão nos constituintes do ninho, também os ribos têm já essas
propriedades de sintetizarem (a ‘vida’ não teve que inventar isso, nem as
enzimas, as moléculas capazes de fazerem membrana, etc.) e fazem-no sobre outras
proteínas que lhes passam ao lado dos oceanos. Faz-se e depois se desfará e
refaz-se parecido noutro lado, interminavelmente, até que um bilião de anos
depois acabe por haver células como ‘ninhos auto-construídos’, capazes de se
reproduzirem, com duplo laço, isto é, ADN a regular o ribo ARN, delimitar-lhe o
que ele tem de fazer como interessando à célula e impedindo de outras sínteses.
É claro que é difícil ver qualquer analogia entre os dois processos, evolução e
big Bang. O da vida é praticamente ‘impossível’, como atesta o bilião de anos,
mas é entropicamente positivo, é fisicamente possível, tem a hipótese de uma
irreversibilidade, já que a houve, sabe-se lá como, onde, quantas vezes, etc.
Sabemos porque deu resultados, a evolução da vida nas suas numerosas espécies.
6. Ora, a base do conhecimento de
Biologia não são os indivíduos vivos, ‘substanciais’, mas as suas espécies que
os reproduzem incessantemente, as quais não são ‘nada’ de substancial e só
existem nos indivíduos que se
reproduzem por regras científicas que obviamente lhes pré-existem, noutros
indivíduos, os progenitores. Por outro lado, os sistemas ecológicos que dão estes indivíduos em suas espécies e que são
condição de possibilidade delas, claro, não as determinam no sentido em que os cientistas (por razões
filosóficas que lhes pré-existem igualmente a eles) entendem a noção de
determinação: é a própria variedade das espécies que, ao dar crédito a uma
noção de doação, implica que
esta seja imotivada, já que se
se tratasse de ‘determinação’ as espécies seriam todas iguais! Pode-se
raciocinar semelhantemente para as ciências das Sociedades: são dadas pelo seu eco-sistema mas de forma imotivada, já que os seus usos diferem suficientemente para
não se entenderem os indivíduos estrangeiros entre si; também uma sociedade é substancialmente nada, só existe nas unidades locais dos seus
indivíduos ‘substanciais’, com regras prévias ao nascimento dos indivíduos.
Igualmente para as Linguísticas, basta aqui lembrar que foi Ferdinand de
Saussure quem nos ensinou que “na língua não há senão diferenças, sem termos
positivos”, isto é substanciais (sons e ideias): ‘diferenças’ entre sons não
são sonoras, são ‘nada’; as línguas são imotivadas, ensinou ele, arbitrárias, não existem senão nas
falas ‘substanciais’ em seus sons e sentidos. Nestes três tipos de ciências, as
regras (espécie, sociedade, língua) são prévias às coisas substanciais.
7. Voltemos à Física. As suas ‘espécies’ são o
quê? Os campos de moléculas e
de astros, campos de forças que retêm coisas ‘substanciais’, a saber núcleos
atómicos e electrões os primeiros e graves os segundos. Os campos são
diferenças de forças atractivas:
o sistema planetário é composto do sol e dos planetas, substanciais em suas
massas e forças de gravidade, mas ele próprio, enquanto sistema com
componentes, é um campo de forças de gravidade que não é ‘substancial’, as
forças equilibram-se entre elas, a sua soma anula-se, se dizer se pode. (Por
isso, sem tempo irreversível? Creio que sim, não se sabia como é que ele se compusera,
li algures que Newton atribuía a colocação dos planetas em suas órbitas ao
Criador, os Antigos gregos criam-no eterno).
8. Voltando à evolução no final do § 5. A explosão
do big Bang é o contrário dela, tendo embora irreversibilidade (importante, já
que nem Newton nem relatividade nem quântica a têm), esta é inteiramente
negativa, a sua entropia é a de Clausius que aprendemos no liceu, a morte
progressiva das coisas pela degradação da energia. Creio que justamente
Prigogine veio ter com a entropia como resposta à sua pergunta pela irreversibilidade
do tempo, porque foi só o que encontrou na Física, a Termodinâmica de Bolzmann.
Mas só encontrou entropia positiva na vida, no metabolismo químico das células, foi onde descobriu as
“estruturas dissipativas” que lhe valeram o prémio Nobel de Química em 1977. E
por isso a fenomenologia de que me reclamo se escreveu a partir da Biologia.
Ora bem, aonde é que o leigo, a olho nu, pode achar que há irreversibilidade
positiva, construtiva, na Física? Na formação das estrelas e dos outros astros, que supõem
campos que os retêm uns aos outros em galáxias, assim como as forças nucleares
e electromagnéticas permitem reter os átomos e moléculas dos graves de que
esses astros são constituídos.
9. E como se passa duma irreversibilidade de pura
degradação de energia, a do modelo aceite com a sua nuvem de partículas que se
expande, para a dos campos dos
astros e galáxias? É o mistério, para o leigo que sou. Na nuvem pós big Band,
onde haja protões e neutrões, eles estarão a distâncias ‘enormes’ uns dos
outros comparadas com as distancias ínfimas (em fermis) que têm num núcleo
atómico. Ora, a noção que Prigogine propõe dum mini buraco negro dissipativo
parece contraditória (a dissipação é o contrário do buraco negro, gravitação
que encerra em si tudo): haveria que pensar ao contrário a ‘dissipação’ do
buraco negro como ‘explosão’, bang! Mas como evitar a nuvem de partículas? O
problema epistemológico do big Bang é que ele e as partículas que saem dele
supõem uma concepção ‘substancialista’ da matéria, o que significa o zero
absoluto de campos de forças,
sejam quais forem. Ora, qual é a noção de ‘força’ em Física? as três forças
estruturantes do universo, gravitação, electromagnética e nuclear forte, são forças
atractivas de astros e graves, de
electrões e de protões e neutrões respectivamente. Como ‘aparecem’ elas às
‘partículas em bando’ para se formarem átomos, moléculas, graves, astros? Uma
hipótese de leigo seria juntar vários buracos negros ou flutuações energéticas
vazias a dissiparem-se simultaneamente por contágio mútuo e a gerarem assim os campos
das galáxias futuras em expansão:
vários bangs, não apenas um big. Mas sem que me pareça que se possa saber
laboratorialmente, cientificamente!, em que é que tais galáxias consistiam antes das estrelas. No princípio foram as galáxias
resultantes desses bangs, tantos
bangs quantas galáxias, eis a proposta do fenomenólogo.
10. Bem sei que sou leigo, mas isto é um blogue,
eu gosto de brincar à curiosidade. Estou à vontade, não sou capaz de fazer
nenhuma conta que tenha a ver com esta boca das galáxias. Mas quando se vê um
físico como Stephen Hawking a pôr a hipótese de ‘gravitões’, partículas que
transportam forças de gravidade, como se isto tivesse algo a ver com a descoberta
de Newton, algo a ver com o que os físicos sabem das forças de gravidade, do
que Feynman diz que eles não sabem delas, como Newton não soube, quando se vê estas enormidades em grandes
cabeças de físicos, porque carga de água é que os leigos não podem entrar na brincadeira,
sem outras pretensões que não seja brincar ao ‘jogo das ciências’? Faço filosofia
com ciências, estas na sua dimensão filosófica, que os
cientistas ignoram, ignoram até que essa ignorância é um erro capital da
disciplina: os campos de forças antes dos seus componentes substanciais, esses ‘campos’ que são nada de substancial, diferenças de forças dessas
componentes. Sem que haja diferenças cronológicas entre uns e outras, nem
ultra-milésimos de segundo.
11. Só mais um ponto. Como digo no texto do blogue
citado acima, foram Galileu e Newton que des-substancializaram a Física, um
privilegiando “diferenças e proporções” ou seja as medidas experimentais, o outro afastando as “qualidades”
dos Antigos, para reter também apenas quantidades (que se medem). Kant apanhou
a boleia des-substancializadora de Newton, Saussure, Heidegger e Derrida
herdaram deles também, embora sem o saberem. A Filosofia levou assim três
séculos para compreender a lição filosófica de Galileu e Newton e o erro que
ela própria depositou nas interpretações das ciências. É esse erro que se
tenta aqui reparar. E no que me
diz respeito, já que não sei de mais ninguém que navegue nestas águas, nada
teria sido possível sem a inteligência filosófica de Prigogine interrogando a ausência de
irreversibilidade no tempo dos físicos.
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