1. Comprei uma versão francesa do Contra
o método (1975, ed. Seuil, 1979)
há muitos anos e de vez em quanto lembrava-me da minha vontade de ler o texto,
com curiosidade pela maneira como ele tratava a relação de Galileu com
Copérnico mais do que pelo anarquismo que antecipava um pouco quixotesco. Com
efeito, para um filósofo das ciências as suas análises de história da ciência
são inexcedíveis, tantos são os aspectos a que dá importância. Nomeadamente,
tem em conta a atenção (quase impossível) ao que Galileu e os seus contemporâneos
não sabiam da física posterior: tendo morrido no ano em que nasceu Newton, ele
ignorava-o, claro, mas é a nós que é difícil ignorá-lo, embora uma análise
minuciosa dos textos (à maneira do Barthes de S/Z e de Derrida) tenha justamente essa vantagem de
nos aproximar dessas ‘ignorâncias’ dos seus autores, embora pedindo um
conhecimento histórico razoável dos contextos. Ora, apesar de estar nas antípodas
destas maneiras de ler os textos, Feyerabend puxa o seu empirismo ao máximo
para descortinar os variados aspectos da maneira como Galileu agiu em relação a
Copérnico, sem método, claro. Não sendo fácil para mim dar uma ideia do livro,
cito o resumo que ele faz dos 6 capítulos em que se ocupa destes dois
astrónomos da Renascença.
2. “Resumo o conteúdo dos seis
últimos capítulos. Quando a ‘ideia pitagórica’ do movimento da Terra foi
ressuscitada por Copérnico, ela encontrou dificuldades que excediam mesmo as
dificuldades encontradas pela astronomia ptolomaica da época. Em termos estrictos,
dever-se-ia considerá-la como refutada. Galileu, que estava convencido da
verdade do sistema coperniciano, e que não partilhava a crença totalmente
espalhada, mas de maneira nenhuma universal, muma experiência estável, procurou
novos tipos de factos para podendo validar Copérnico e no entanto podendo ser
aceites por todos. Esses factos, obteve-os de duas maneiras diferentes.
Primeiro, pela invenção do seu telescópio que transformou o núcleo sensorial da experiência quotidiana e substituiu-o por fenómenos problemáticos
inexplicados; e em seguida pelo seu princípio de relatividade e a sua
dinâmica que transformaram as componentes
conceptuais da experiência. Nem
os fenómenos telescópicos nem as ideias novas sobre o movimento eram aceitáveis
para o senso comum (ou para os aristotelicianos). Alem disso, podia-se
facilmente demonstrar que as teorias associadas eram falsas. No entanto, estas
teoria falsas, estes fenómenos inaceitáveis foram deformados por Galileu e
transformados em validações poderosas de Copérnico. Todo o rico reservatório de
experiência quotidiana e de intuição dos seus leitores intervinha no
raciocínio, mas os factos que eles eram convidados a recordar eram arranjados
duma maneira nova: faziam-se aproximações, omitiam-se efeitos conhecidos, desenhavam-se
linhas conceptuais diferentes, de maneira que aparecia um novo género de
experiência, praticamente
fabricado em todas as suas peças. Esta nova experiência era de seguida apoiada
insinuando ao leitor que ela lhe era familiar desde sempre; em breve ela era
aceite como verdade de evangelho, ainda que as suas componentes conceptuais fossem
incomparavelmente mais especulativas do que as dos senso comum. Podemos prtanto
dizer que a ciência de Galileu repousa sobre uma metafísica ilustrada. Esta deformação permitiu a Galileu avançar, mas
ela impediu quase todos os outros de o seguir no seu esforço para fundar sobre
a sua ‘démarche’ uma filosofia critica (ainda hoje se põe o acento nas suas
matemáticas, ou nas suas pretensas experiências, ou sobre os seus frequentes
apelos à ‘verdade’, enquanto que a sua táctica de propaganda é inteiramente
negligenciada). A minha opinião é que a contribuição de Galileu foi deixar as
teorias refutadas sustentarem-se mutuamente, e construir assim uma nova imagem
do mundo, ligada fracamente (se alguma vez o foi!) à cosmologia anterior
(experiência quotidiana incluída); ele estabeleceu conexões com truques com os
elementos perceptivos dessa cosmologia, elementos que só hoje puderam ser
substituídos por teorias boas (óptica fisiológica, teoria do conteúdo); sempre
que possível, substituiu factos antigos por um novo tipo de experiência, que
ele inventou muito simplesmente para validar Copérnico. Lembremos de passagem
que o procedimento de Galileu reduziu consideravelmente o campo da mecânica: a
dinâmica aristotélica era uma teoria geral da mudança, compreendendo a
locomoção, a mudança qualitativa, a geração e a corrupção; a dinâmica de Galileu
e dos seus sucessores só trata da locomoção, todo o outro aspecto de movimento
sendo posto de lado com, em nota apenas, essa promessa (vinda de Demócrito) que
a locomoção será eventualmente capaz de incluir todos os movimentos. Assim uma
teoria empírica global do movimento[1]
é substituída por uma teoria bem mais restrita, a que se acrescenta uma
metafísica do movimento: exactamente como uma experiência ‘empírica’ é
substituída por uma experiência que contém elementos especulativos. Creio qe
foi esse o método efectivamente seguido por Galileu. Procedendo assim, ele fez
prova dum estilo, dum sentido de humor, duma ‘souplesse’ e duma elegância,
assim como duma consciência das fraquezas felizes do pensamento humano, não
igualados na história das ciências. Há ali uma fonte quase inesgotável de
matéria para a especulação metodológica e, coisa bem mais importante ainda,
para a redescoberta destes traços pelos quais o conhecimento não apenas nos
informa, mas também nos alegra” (pp. 175-7).
3. Sabe-se que Galileu não conseguiu
demonstrar o heliocentrismo, nem Copérnico nem Kepler, apenas Newton o fez[2],
cruzando as leis deste último que Galileu não considerou. Onde ele ‘inaugurou’
a Física europeia foi no Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas
novas ciências, mormente dando
conta do primeiro relato que tenhamos duma experiência laboratorial, com o
célebre balde com água para pesar o tempo. É certo que não li os últimos dois
ou três capítulos em debate com Imre Lakatos, mas que me lembre não encontrei
não só nenhuma referência significativa a esse texto de Galileu como também não
ao lugar do laboratório na ciência, o que aliás é costume dos filósofos das
ciências. Ora, esse texto era bem mais difícil para argumentar ‘contra o
método’, mas ainda bem que temos este que é extremamente elucidativo, quer da
relação Copérnico Galileu, quer da noção de ‘método’ das filosofias das
ciências, quer das possibilidades da de Feyerabend. Com efeito, a sua ginástica
intelectual é fabulosa, ele joga como bom empirista ‘americano’ a partir da
distinção entre ‘teoria’ e ‘factos’ como exteriores uma aos outros, mas
consegue aproximar-se da recusa dela (p. 67). Por exemplo, o paradigma de Kuhn
inclui as duas instâncias, a teoria comandando a experiência, consegue ultrapassar
as problemáticas da percepção, que têm uma grande importância em Feyerabend. E
interessaram-me ao recordar o que ele chama a teoria aristotélica da percepção.
A sua “concepção de conjunto [geocentrismo e teoria do conhecimento sensível]
define o movimento como transição duma forma [eidos, species] entre o agente e o paciente, transição que termina quando o paciente
possui exactamente a mesma forma que caracterizava o agente no princípio da
interacção. A percepção, em consequência, é um processo no decorrer do qual a
forma do objecto percebido penetra naquele que percebe, com precisamente esta
mesma forma que caracteriza o objecto, de maneira que aquele que percebe, num
sentido, é afectado das propriedades do objecto” (p. 159). Saltei na cadeira ao
ler isto que soube noutros tempos e me esquecera: desde que se passe da
percepção para o movimento da aprendizagem, encontra-se nada mais nada menos do
que a teoria dos grafos de Changeux[3]
Grande Aristóteles! Sem nada a ver com a “óptica fisiológica” que Feyerabend
considera algures substituir o “realismo ingénuo” do Estagirita (ibidem), “hoje
considerado como falso” (p. 161). Repetindo os gestos de aprender a guiar um
automóvel, eles inscrevem-se cerebralmente, o que se chama ‘percepção’ fazendo
parte do conjunto dos gestos, sem necessitar de nenhuma ‘óptica’!
4. Não posso deixar de citar o
retrato que Feyerbend traça da “ciência do século XX que, ao contrário dos seus
predecessores imediatos, abandonou qualquer pretensão filosófica, e tornou-se
um ‘negócio’ poderoso, que informa a mentalidade dos que a praticam. Um salário
elevado, boas relações com o patrão e os colegas na sua ‘unidade’, são o que
visam principalmente as formigas humanas que são excelentes a encontrar a solução
de problemas minúsculos, mas não podem comprrender nada do que transcende o seu
domínio de competência. As considerações humanistas são reduzidas ao mínimo [“o
desejo de aligeirar o sofrimento tem pouco preço na investigação”, citação de
1961], assim como qualquer forma de progredir que ultrapasse os melhoramentos locais [...] Que alguém
dê um grande passo em frente – e a profissão devota-se a transformar-se em
máfia para submeter os outros pela força” (pp. 206-7). Felizmente que o alvor
da ciência devido a Mariano Gago não é ainda compatível com este estado de
coisas.
5. Tendo em conta a consideração
feita acima – Galileu não inaugurou nenhuma ciência nem nenhum método
científico no texto sobre o heliocentrismo – é difícil perceber o porquê desta
escolha do exemplo de Feyerabend, a não ser uma concepção ‘filosófica’ de
ciência, o que se pode chamar um empirismo desatado em que tudo vale e nada se
distingue. Nomeadamente, a ignorância do papel decisivo do laboratório (é ele que ‘decide’ da ciência),
que a experiência da queda da bolinha num plano inclinado ilustra como o
primeiro relato laboratorial de ordem histórica, é obviamente sintomática e
deita por terra toda a argumentação ‘contra o método’, já que não se sabe onde
é que este pode ser procurado. O que faz o laboratório é uma redução do contexto dos fenómenos da realidade habitual,
de maneira a poder isolar condições de determinação que permitam detectar causas e efeitos. A maioria
das razões aduzidas por Feyerabend desvanece-se, as percepções e as
considerações sobre o ‘estilo’ de Galileu não têm cabimento adentro do
laboratório, apenas no diálogo consequente entre cientistas e leitores.
Tratando-se de física, acresce a matemática e as medidas a que Feyerabend não
presta nenhuma atenção, é o mínimo que se pode dizer. Ora, as equações da
física – que foram inventadas por físicos, não por matemáticos – coordenam-se
intrinsecamente com os resultados experimentais, cujas medidas vão ocupar o
lugar das variáveis dessas
equações. É neste ponto que teoria e experiência são indissociáveis uma da
outra, equação e variáveis fazem uma unidade, embora haja que acrescentar que
são também inconciliáveis, a experiência é uma objecção à teoria. O que significa que é a equação que tem
o lugar de teoria, o que se chama habitualmente assim não sendo senão o
discurso de origem filosófico-científica em linguagem conceptual que interpreta
a equação e sem o qual não se sabe o que esta significa. A comprovar esta
afirmação, as diversas técnicas científicas procedem a partir das equações
comprovadas e escolhem as dimensões do que há de científico nos artefactos
usando-as. Mas também os mesmos resultados podem variar de teoria explicativa
sem que a cientificidade laboratorial seja afectada.
6. Donde se conclui que não se podem
extrapolar sem mais os resultados laboratoriais para fora do laboratório, é
essa extrapolação que está na origem do execrável determinismo cientista,
contra toda a evidência que é a própria necessidade do laboratório. Pelo
contrário, tal como um automóvel é laboratorialmente feito segundo regras muito
precisas, essas mesmas regras estão ao serviço do aleatório do tráfego. Como
tenho explicado vezes sem conta neste blogue a utilidade duma Filosofia com Ciências.
[1] Pretender
que “Aristóteles é um empírico” (p. 160) é não ter compreendido o papel da Physica comandando as várias ciências
http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2012/02/version1.html.
[2] Não deixa
de ser notável o tempo que levou: Copérnico morreu em 1543, praticamente um século
antes de Galileu, que nasceu em 1564, vinte anos de intervalo sem contar com os
tempos de aprendizagens. Entre Copérnico e a demonstração do heliocentrismo
passou quase um século e meio!
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