1. O livro chama-se Sapiens. Une briève histoire de l’humanité, versão francesa da versão inglesa do original
hebreu do historiador israelita Yuval Noah Harari (2012) e tem quase 500
páginas que se lêem muito bem, com bons exemplos em seus contextos muitos dos
quais ignorados do grande público, bons contastes entre épocas diferentes para
sublinhar parecenças ou diferenças entre épocas largas de história, ou seja,
aprende-se muito e mesmo as irritações filosóficas que tive aqui e ali acabaram
por me agradar, como direi a propósito do ‘buraco’ anunciado pelo título. A
linguagem é clara, apesar do empirismo radical e das lacunas devidas à
‘brevidade’ duma história da humanidade, que me lembre o nome de Platão nunca
aparece, e na parte final da ‘crendice’ nos projectos dos biólogos e
informáticos igualmente empiristas radicais, que só sabem, uns de bioquímica e
outros de sílica e digitalização. O livro consta de quatro partes: a revolução cognitiva, a
revolução agrícola, a unificação da humanidade e a revolução científica.
2. A revolução cognitiva conta como as várias outras espécies homo, neandertal, erecto e outros, se extinguiram há
cerca de 30000 anos, com a possibilidade de que o nosso sapiens tenha contribuído para isso. Entre os anos 70000 e
30000, já com fogo e utensílios vários bem anteriores, a revolução cognitiva é
atribuída à invenção das línguas, de que Harari destaca três vantagens: poder
falar de coisas que aconteceram longe, no espaço e no tempo; permitir conversar
de tudo e de nada, isto é, ser um laço social, tribal; capacidade de ficção, de
poder falar de coisas que não existem, lendas, mitos, religiões. É nesta
terceira que o empirismo radical se anuncia: porquê decide o historiador que
essas coisas não existem? A partir do seu ateísmo? Este faz parte da
metodologia do historiador? Não creio que historiadores ou antropólogos
encontrem alguma vez indígenas que digam que aquilo em que acreditam existe ou
não à maneira dos ocidentais; se vasculharem bem, o que encontrarão
provavelmente sempre é que eles acreditam nessas narrativas e nesses rituais
porque os aprenderam dos seus antepassados, os quais também aprenderam de
outros que aprenderam, sem se encontrar nunca nenhuma ‘origem’ de mitos; tal
como nós aprendemos a falar sem saber gramática ou aprendemos na escola que a
terra é que gira em torno de si mesma e o sol está como que parado num dos
focos das elipses das trajectórias dos planetas, a grande maioria de nós não
sabendo demonstrar essa crença aprendida; além disso, encontrarão que, quer a
língua em que conversam, quer os rituais e mitos que jogam em festas, guerras,
nascimentos e funerais, são laços que integram todos os que são da tribo e
excluem os que não são. Ou seja, a aprendizagem como mecanismo de reprodução
social é totalmente ignorada nas cinco centenas de páginas de descrição
histórica. Com uma consequência
impressionante, à vista da imensa bibliografia, livros e artigos de
investigação, quase sempre anglo-saxónica, é certo: o capítulo que segue esta
tripla caracterização da linguagem, intitulado “a lenda de Peugeot”, explica
que ‘Peugeot’ não existe, é uma lenda, como o Estado moderno, a Igreja
medieval, a cidade antiga, a tribo arcaica ou o sistema judiciário não existem,
nada disso se vê, apalpa ou cheira: tratando-se de aglomerados acima de 150
indivíduos, são produtos imaginários, só ‘existem’ sob forma de mitos contados
de boca em boca. “Nenhuma destas coisas existe fora das histórias que pessoas
inventam e contam umas às outras; não há deuses no universo, nem nações,
dinheiro, direitos humanos, nem leis nem justiça fora da imaginação comum dos
seres humanos”. “Peugeot é uma criação da nossa imaginação colectiva. Não se a
pode mostrar apontando com o dedo; não é um objecto material; [...] existe como
ficção jurídica do tipo ‘sociedades anónimas de responsabilidade limitada’.
Empirismo nominalista, à maneira de Occam – “só existem os singulares”, a
relação de ‘pai’ só existe como ‘nome mental’[1]
– ou de Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, só existem homens e
mulheres”. O que é surpreendente é que os nomes das línguas não sejam
suficientes para que algo que liga
humanos possa ‘existir’ sem ser ficção; o imaginário é uma noção alheia ao
‘colectivo’, releva da subjectividade individual, ao invés das palavras, que
são iguais para todos os falantes e também estruturam o psiquismo de cada um
deles.
3.
A revolução agrícola é
introduzida com o seguinte título: “a maior fraude da história”. Ao espanto
inicial, sobrevem a explicação: a vida dos colectores caçadores na selva era
muito melhor do que a dos camponeses, o que lembra o que contava Pierre
Clastres algures em La société contre l’État, de indígenas do Brasil que receberam machados
metálicos, dez vezes mais eficazes do que os seus de pedra, e que em vez de
cortarem dez vezes mais no mesmo tempo, cortaram a quantidade habitual em dez
vezes menos tempo, ganhando tempo para se enfeitarem e divertirem, ou a
caracterização por Marshall Sahlins das sociedades arcaicas como sociedades
de abundância. Nesta lógica,
Harari dará sempre lugar na sua síntese histórica aos seus aspectos mais
terríficos: as escravaturas, quer as antigas quer sobretudo as de africanos na
Europa e nas Américas, a dizimação (literal, reduzidos a 10%) dos indígenas
americanos nos primeiros 100 anos, o proletariado inglês dos começos da
industrialização do século XIX, mas também os animais que são hoje em dia
tratados de forma crudelíssima em vista da nossa alimentação. Aqui, não posso
senão tirar-lhe o chapéu! Terá direito a um capítulo final inédito: enquanto
historiador, interroga-se sobre a felicidade dos humanos e o sentido da vida nesta
época da história.
4. A unificação da humanidade tem uma tese que me pareceu original: a de que
foram os impérios que conduziram a história para a unificação actual, além da
moeda e do mercado (com um excelente resumo do mecanismo da moeda e da
confiança bancária) e das religiões. O “papel histórico crucial da religião foi
o de dar uma legitimidade sobre-humana às frágeis estruturas sociais”, quando
se tratou de crenças universais e missionárias. Além do que se chama
habitualmente ‘religião’, Harari prolonga a noção às grandes ideologias
modernas: liberalismo, comunismo, capitalismo, nacionalismo, nazismo, distinguindo
religiões teístas e religiões humanistas e nestas incluindo o budismo (sem deuses).
5.
A revolução científica leva-nos ao extraordinário buraco deste empirismo
de sociedades à base de “imaginários comuns”, que foi o que me atraiu para
escrever este texto. O autor começa por contrastar a ciência moderna (com um
belo capítulo sobre a invenção das estatísticas) que começa pela ignorância de que os humanos não conhecem, as respostas às
questões mais importantes, enquanto que, segundo ele, “as tradições
pré-modernas do saber como o Islão, o cristianismo, o budismo e o confucionismo
[que] afirmavam que já se sabia tudo o que era importante saber sobre o mundo”.
Esta frase, com um conteúdo que aparece outras vezes, diz a ignorância do historiador: a filosofia não aparece nestas
“tradições pré-modernas do saber”, como se vê quando algumas páginas adiante se
põe a questão “porquê a Europa?”. A questão está longe de ser nova. Por
exemplo, o historiador Eric Jones, O milagre europeu, Gradiva, compara a China, a Índia, o Islão
otomano e a Europa, que terão um equivalente estádio de civilização em 1400,
com alguns argumentos comparativos interessantes – a não existência de impérios
na Europa como os outros, os quais limitavam os ganhos dos seus mercadores, as
cidades livres que estiveram na origem do comércio intra-europeu, a planície
que vai da França aos Urais coberta de floresta – mas termina por não encontrar
argumento histórico que explique que, 400 anos mais tarde, a Europa irrompa
como civilização tecnológica e capitalista, e por resignar-se ao ‘milagre’.
Aqui esta ‘ignorância’ que desembocou em ciência, como que ‘inventada’ pelos
cientistas sem antecessores, explica-se pela aliança com os ‘impérios’
marítimos em que se ‘conquistam’ territórios e saberes geográficos, zoológicos
e botânicos sobre eles. Mas quando chega a 1800, aos comboios a vapor e a
tecnologia que vem com eles, à questão de saber porque é que a China e a Índia
não foram capazes de construir logo máquinas a vapor como as europeias,
encontra a seguinte explicação: “nem Chineses nem Persas tinham falta de
invenções técnicas como as máquinas a vapor (que podiam ser livremente copiadas
ou compradas); o que lhes faltava, eram os valores, os mitos, o aparelho
judiciário e as estruturas sócio-políticas, cuja formação e maturação levaram
séculos no Ocidente e que era impossível de copiar e de interiorizar
rapidamente. [...] desde os alvores dos tempos modernos que a Europa
desenvolvera a ciência moderna e o capitalismo, que os Europeus tinham ganho o
hábito de pensar e de se conduzir de maneira científica e capitalista antes
mesmo de gozarem duma vantagem técnica significativa”. O texto dá a ver que
Harari manifestamente só conhece a ‘ciência’ de longe, caracterizando-a pelo
“lugar central da observação e da matemática”: ora, esta disciplina de cálculo
exacto só ganhou este nome no século XIX, nos clássicos era chamada geometria, que já Platão considerava aliada da filosofia na
Academia; quanto à ‘observação’ é o método próprio das ciências aristotélicas,
que o que ignoravam era a experimentação e a sua mensuração laboratorial, a
ciência inventada no século XVII. A grande diferença entre a Europa que
renasceu entre 1450 e 1520 e todas as outras grandes civilizações, foi que só
ela teve antes de se formular como civilização, recebeu um berço cultural vindo da Antiguidade e da discussão medieval de
textos filosóficos, lógicos, jurídicos, de medicina, além de teologia.
6. Eis o buraco: para Harari, por certo que a metafísica releva
do imaginário, do que não existe, mas também coloca “os valores e os mitos” com
“o aparelho judiciário” sem mencionar o direito romano. O que ele ignora, tal
como Eric Jones e provavelmente a historiografia anglo-saxónica que ele cita
abundantemente em notas de pé de página, não é apenas a filosofia, misturada ao
cristianismo medieval: ignora as universidades medievais, a invenção da
imprensa e o comércio dos livros, a Enciclopédia e as universidades e colégios! Nada disto faz parte da história que ele conta,
muito menos históricas do que os
livros e as escolas são as palavras que se ensinam e aprendem, veja-se ou não o
que elas dizem! Ora é neste buraco que tenho trabalhado, como mostro sobretudo
no e.livro Da Natureza à Técnica (construção, desconstrução e reconstrução), edição de autor na Leya. Não lhe passa pela cabeça
que a escrita alfabética, a invenção socrática da definição de essências [que
claro que não ‘existem’ à mão de semear] (e da ‘ignorância’: “sei que nada sei”
é o que lança a filosofia que tornou possível os laboratórios científicos!) e
da argumentação lógica por Aristóteles, em seguida a da geometria por Euclides,
que tudo isso – e também a alma imortal que também não ‘existe’, mas foi
extremamente eficaz para induzir o
individualismo ocidental, ignorado pelas outras civilizações – fizesse parte do
que Newton, citando um medieval, chamava os gigantes aos ombros dos quais ele
se sentava. Ou seja, a sua concepção da ficção de coisas que não existem como o
mais importante da “revolução cognitiva”, e provavelmente o papel do “imaginário
comum” a sobrepor-se à existência da companhia Peugeot – de quem todos os que
nela trabalham e lhe compram carros falam constantemente, sem necessidade de
nenhum impossível, por definição, imaginário comum a milhões de pessoas – é que
o impede de ‘ver’ o buraco da escrita que existe transmitindo-se por
aprendizagem através de escolas e de livros. Apetece pensar que se trata dum exemplo (inesperado para mim) do que Heidegger
chamou ontoteologia: este senhor lê ‘vendo e mexendo’ nas coisas lidas,
discernindo nesse referente real o que existe e o que não existe, como um ‘sujeito’
diante de objectos. Para um ‘ateu’, deveria ser terrível ganhar consciência
dessa sua posição herdeira da teologia.
7. Mas que esta brincadeira não afaste leitores:
vale muito a pena lê-lo, aprende-se imenso.