1.
As inscrições
linguísticas são o quê ? Parecem ser da ordem da sensibilidade, já que se
vêem ou ouvem. Mas se fôr numa língua que não conhecemos, em sueco por exemplo
falado ou escrito alfabeticamente, percebemos que, sendo necessários, nesse
caso não bastam o ver e o ouvir para ler ou entender. Derrida pegou no célebre
aforismo de Saussure, « na língua não há senão diferenças, sem termos
positivos », na distinção que ele propõs entre os sons ouvidos e os significantes,
e aplicou-lhe a redução fenomenológica entre o empírico, o que aparece no mundo e o seu aparecer fenomenal, propondo que são os
sons empíricos que aparecem, que se ouvem, e que o significante, o parecer,
consiste nas diferenças entre eles : as palavras que se entendem. O mesmo
se pode dizer dos riscos empíricos que se vêem num papel ou num ecrã, de que as
diferenças são os significantes, as palavras que se lêem. Então, os sons nas
vibrações do ar e os riscos no papel são a matéria de empréstimo sem a qual não há inscrições e
estas, relevando da língua, são as diferenças entre sons e entre riscos que se repetem igualmente, qualquer que seja a
voz que diz os sons, qualquer que seja a letra da mão e caneta ou da impressora
tipográfica. No que à linguagem duplamente articulada, oral ou em textos
alfabéticos, diz respeito, são estas diferenças estruturadas em línguas, em
sistemas linguísticos variados, que são inscritos em vozes ou riscos e por eles
reproduzidos. Estas diferenças entre coisas sensíveis não são elas mesmas
sensíveis, mas também não são puramente inteligíveis, já que ‘entre’ sensíveis.
É por isso que a linguagem é o que resiste à oposição entre o sensível e o
inteligível que herdámos dos Gregos, a oposição alma / corpo e obrigou a Europa
a uma ‘ideia’, uma representação do ‘objecto’ que o corpo vê na alma ou
consciência do sujeito. O que se desconstroi aqui é a oposição entre o
inteligível e o sensível, entre a alma e o corpo, entre o sujeito (e as suas
mentalidades) e o objecto (e as suas representações no sujeito). Porque só há
sujeitos porque aprenderam, por que de fora foram inscritos das mesmas
inscrições do seu mundo tribal. Era bom que quem trabalha em ciências sociais e
humanas assim com em filosofia tradicional soubesse que sempre que escreve a palavra
‘representação’ está a aceitar a alma e o corpo, ainda que ache que não.
2. A linguagem, como aliás a música e a
matemática e as imagens do cinema, é feita de diferenças que criam o seu
próprio espaço (o destas linhas que se estão lendo) no espaço prévio do papel
ou do ecrã, como criam o seu tempo : cada frase que se lê só tem sentido
por reter as anteriores já lidas e criar suspense sobre as que falta ler. Foi a
esta maneira de introduzir o tempo, o sentido temporal do verbo diferir, na palavra
diferença, que o não contém, que Derrida chamou ‘différance’, colocando um ‘a’
no lugar do ‘e’, jogando também com o facto de em francês ‘en’ e ‘an’ se lerem
da mesma maneira e portanto só se poder dar pelo seu neologismo na leitura e
não na audição oral. Uma diferença que se lê e não se ouve dá a entender que o
privilégio tradicional do pensamento sobre a linguagem e da fala sobre a
escrita é questionável : a esse privilégio chamou logocentrismo, ninguém lhe escapa, ele vem-nos
do que aprendemos no liceu e nas nossas leituras sem darmos por ela. Há um
outro jogo com a palavra francesa ‘différent’, ela também se diz da mesma
maneira que ‘différend’, o que permitiu a Derrida sublinhar que a linguagem é
sempre diferendo
com outrem, ainda que diálogo, já que de outrem a aprendemos e para nos
entendermos (ou entrarmos em conflito) com outrm a usamos no dia a dia :
ela é relação estrutural ao outro. E para a aprendermos, é preciso, como se
disse atrás, que ela se ‘inscreva’ em nós, nos neurónios cerebrais, isto é, que
ela seja escrita
antes de ser linguagem oral e como sua condição. Pode-se dizer que o
logocentrismo que Derrida nos revelou é também a incapacidade da tradição
filosófica para pensar a aprendizagem.
3. Esta linguagem de diferenças (diferanças),
não sendo sons nem ideias, nem sensível nem inteligível, não é substancialmente
nada, é ‘nada’ que só pode aparecer numa matéria de empréstimo, sonora ou
gráfica (ou táctil, no Braille), em sons ou desenhos (de letras). O
logocentrismo crê que já havia sons (a, e, i, o, u, etc) e ideias e que quem
‘inventou’ a linguagem só teve que unis uns aos outros ; Saussure, o
linguista suiço que descobriu as ‘diferenças’, sublinhou que, pelo contrário,
foram as línguas que inventaram os sons e os sentidos, disse que, em vez de
convencionais, resultarem de ‘convenções’ (de gente ainda não falante ?),
elas são ‘arbitrárias’, ou melhor, imotivadas : diferentes entre si de maneira
tal que os respectivos falantes são estrangeiros uns para os outros, nenhuma
língua tem razões fora dela para ser como é, embora sejam todas condicionadas
pelas fisiologias da fonação, audição e cerebral. O que define em comum os
quatro tipos de inscrições que analisámos, e será verdade ainda dos caracteres
chineses (ver http://chinespensasemalfabeto.blogspot.pt/2011/10/normal-0-21-false-false-false-pt-x-none_8863.html)[1], que interrogaremos adiante, é
serem descartáveis das respectivas matérias de empréstimo mas exigindo sempre
que o sejam para uma outra ; mesmo as pinturas em tintas quimicamente
complexas para coloridos tão variáveis, ne medida em que podem ser deslocadas
por fotografia e reconhecível noutro lado : ‘isto é a Mona Lisa de
Leonardo da Vinci’. Sáo pois todas susceptíveis de redução da respectiva
matéria de empréstimo para se ter o seu ‘nada’ de diferenças feito entre sons,
riscos, côres. Não o papel ou a ela, o piano ou a flauta, todos sem dúvida
necessários, mas as vozes, os sons soprados ou tangidos, os riscos e suas
côres, que são empiricamente reduzidos para se ter a estrutura diferencial
temporal que em
sons e traços se reproduz[2].
O que chamaremos cena de inscrição é feito deste ‘nada’ espácio-temporal e dos
seus efeitos na cena da habitação : instituições e usos de inscrição,
escolas, igrejas, laboratórios científicos, médias. Grande paradoxo da história
das sociedades ocidentais : esses ‘nada’ tiveram efeitos ‘substanciais’
nas transformações dessas sociedades, como tentaremos evocar no 3º texto deste
livrinho, assim como os terão tido na conservação da sociedade chinesa de que
trataremos em seguida.
4. O que disse do tempo da linguagem duplamente
articulada é válido também da matemática, da música, do cinema, cada inscrição
cria o seu espaço tempo, ambos sucessivos, sequenciais, mas sem coincidência,
como a metáfora tradicional da ‘linha’ para dizer o tempo sugere. Enquanto que
a sucessão espacial salta à vista das ‘linhas’, o tempo é bem mais retorcido,
já que implica as retenções na memória do que já se ouviu ou leu e a abertura
ao suspense do que falta vir a completar o que se está ouvindo ou lendo,
problema a resolver, acordes a inovar que se acordem com os já ouvidos, e por
aí fora : se deixa de haver um mínimo de ‘suspense’, deixa-se de seguir,
como nas conversas enfadonhas, nos discursos políticos de ‘cassete’. Não
‘linear’, a temporalidade das inscrições (e não só, também o que se chama
‘acção’ ou ‘construção’) é feita desta espécie de ginástica mental de reter e
anticipar o que falta, o que impede de perceber uma qualquer assistência como
‘passiva’ : escutar e ler é tanto agir como compreender uma demonstração
matemática ou emocionar-se num filme. Ainda aqui há que recorrer ao motivo da
aprendizagem : não temos palavras nossas nem notas musicais ou números ou
figuras, que tudo nos veio da tribo ou da escola ou dos médias : é onde
reside o grande enigma
das coisas humanas, que sejamos inscritos, e portanto receptivos, passivos, antes de sermos ‘eu’, e dessa
passividade resultar fazemos activamente o que nos é mais caro, mais próprio de
nós, íntimo, criativo, genial até. Aquilo que nos é mais ‘próprio’, como se
diz, resulta de uma apropriação do que é comum à nossa tribo, ao nosso mundo :
por isso se fala de ‘propriedade privada’, e é o que cada um de nós é, o nosso enigma
espiritual.
[1] http://chinespensasemalfabeto.blogspot.pt/2011/10/normal-0-21-false-false-false-pt-x-none_8863.html
[2] Bem mais difícil seria
dizer em que é que consiste a redução no que diz respeito ao teatro, ópera ou
dança, que diferenças se inscrevem duma mesma ‘peça’ feita ou dançada por
actores, cantores, dançarinos e companhias diferentes, os seus gestos sendo
parte da cena em que tais diferenças se inscrevem nos ensaios, mais difícil
ainda em época de grande inovação nas encenações.
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