1. Em continuação do texto anterior
sobre a descoberta de Heidegger, sabendo-se que Derrida passou por este, além
de ter também passado por Husserl, Saussure e Freud, a questão põe-se de saber
qual a ‘diferença’ entre ambos, entre a diferença ontológica dum e a différance do outro.
Diz Derrida na conferência de Janeiro de 1968 na Sorbonne sobre a différance (a que assisti sem ter percebido praticamente
nada, mas que comentei frequentemente nas minhas aulas práticas de Filosofia da
Linguagem) que esta precede (“(é) mais ‘velha’ do que) a diferença ontológica
heideggeriana (ed. fr., p. 23): como assim?
2. Heidegger afasta-se do seu mestre
Husserl por considerar a sua intencionalidade filosófica arrimada ao objecto e portanto
à definição filosófica, o seu Dasein sendo “ser no mundo”, exterioridade que cuida do mundo e das suas coisas
com outros humanos antes de,
filósofo, percepcionar objectos definidos, separados desse mundo em
que ele é. Os humanos são antes dos filósofos, é lição de Ser e Tempo. E essas coisas do mundo, os entes em geral (os Dasein também? nunca o diz, que eu saiba), são doados
pelo Ser como entes temporais,
doação que se retira, dissimula, apaga, para que eles sejam (II Heidegger). A diferença ontológica é entre
esses entes, fenómenos que
aparecem, e o Ser, nada de
ente, que os dá sem aparecer e implica retorno ao logos, arredada a husserliana consideração ante-predicativa da percepção antes
da fala, as intuições sensíveis prévias às intuições categoriais em seus juízos
predicativos. Em 1962, é o Acontecimento (Ereignis) que lhes dá tempo
e ser: a diferença ontológica
seria então entre o Acontecimento doador retirado e os acontecimentos dos entes
fenoménicos. Ora bem, se
Heidegger rompeu com Husserl por este ter colocado a filosofia – a definição
dos entes e das suas qualidades – antes dos humanos, ao inverter essa relação
não deixou todavia, apesar das suas leituras de Heraclito e Parménides, de
colocar o seu pensamento sempre ao nível dos ‘entes’ e da sua doação, das
coisas em geral, humanos e vivos incluídos. Como sempre fez a filosofia até ele, desde Platão e Aristóteles pelo menos, com a importância crucial do eidos, e a maior parte dos filósofos continuam
a fazer depois dele (lendo-o ou não), aonde quer que se ocupem das questões da
percepção ou doutras faculdades dos sujeitos.
3. O espaço e sobretudo o tempo, categorias que as
filosofias europeias herdaram de Galileu e de Newton, são categorias de que
relevam os entes, os quais como que banham neles (como se eles fossem prévios
às coisas, aos seus lugares e movimentos). Incluídos os humanos, os entes são
neles mesmos ainda, ‘substanciais’ desde Aristóteles, como que impenetráveis
uns aos outros: poder-se-ia dizer que são como vizinhos de relações cortadas,
que não se falam nem sabem do que uns e outros fazem, à maneira quiçá dos
‘indivíduos’ das sociologias e economias europeias; quando por vezes alguém vem
dizer que os humanos não são ilhas, confessa-se que é assim que se vê e se
pensa o indivíduo. O Dasein de
Heidegger não escapa completamente a esta matriz ontoteológica (Criador /
criatura, sujeito / objecto) que parte do ente humano que é o próprio filósofo
(à prova, ele não soube o que fazer do Mitsein), ainda que tenha sido ele quem a desenhou na sua
busca pelo Ser, no-la denunciou, lúcido nas suas leituras da história das
palavras filosóficas vindas da
Grécia.
4. Ora, a différance gramatológica tira as consequências dessa
denúncia ao deslocar a diferença fenomenológica de Husserl – que reduz a coisa que ‘aparece empiricamente’ para não reter senão o seu ser ‘aparecer fenomenal’, estrutural, diferencial – para a
diferença linguística saussuriana entre os sons empíricos ouvidos e o seu
ser-ouvido, este (‘aparecer’) sendo a diferença entre os sons (que ‘aparecem’),
fazendo assim jus ao aforismo saussuriano “na língua não há senão diferenças,
sem termos positivos”. a) A diferença entre sons (palavras, fonemas) é
teoricamente prévia aos sons empíricos, é ela que se inscreve no bebé para que este venha a dizer palavras em sua voz empírica, sonora
(a tese da gramatologia: a escrita como origem da fala, que tantos
escandalizou). b) Como os vivos que transmitem a sua ‘espécie’ – genes
‘diferenciais’ – gerando outros vivos ‘substanciais’ ou o marceneiro faz uma mesa ‘substancial’ pensada
‘diferencialmente’ com a sua arte, ferramentas e madeira prévias: a différance como relação estrutural ao outro. c) Também ela
espacializa e temporaliza, dá o espaço (o lugar) e o tempo da voz, do vivo que
nasce, da mesa, tratando-se sempre de relações de entes a outros entes, singulares
da mesma língua ou espécie ou arte (a, b e c em De la grammatologie, p. 69, 88). Vai pois aquém do ente, vai esmiuçar
aquém do Dasein e da diferença
ontológica, ao como da sua ‘doação’ retirada.
5. Esta différance é diferença que se repete, escrita que estrutura, institui, é ela que está
na origem dos singulares mas vinda de outros singulares, donde que seja a repetição
que é originária. Derrida radicalizou a desconstrução da ontoteologia que Heidegger
encetou: aonde o lugar do deus criador foi, de Descartes a Husserl, ocupado
pelo humano (pensador), Ser e Tempo touxe-o para o mundo mas ainda à maneira dum ‘autor de si’, se dizer se
pode, dum pensador que pensa, isto se as palavras históricas não puseram já
esse lugar de autor parcialmente em questão, desontoteologizando como a
temporalidade de Ser e Tempo pedia.
Derrida permitiu pôr os antepassados – progenitores e tantos mestres de tanto
que se aprendeu, os quais tiveram também muitos mestres, e assim sucessivamente
para trás – como doadores fenomenológicos, doação agora ao nível do jogo dos entes e não já do Ser /
Acontecimento, a diferença
ontológica deixando o seu papel ontoteológico de permitir a oposição
transcendência / imanência. Exit a ontologia, eis enfim o ser no mundo, com a aprendizagem a vir
ao lugar filosófico e científico (nas humanidades) de origem do futuro que repete o passado ancestral. Disse ele em entrevista, da
primeira vez que veio a Lisboa em 1983, que a repetição lhe dava segurança face
ao futuro.
6. Para voltar ao último parágrafo do texto
anterior, é este motivo filosófico da différance que me deixa céptico sobre a nuvem de partículas
entre o big Bang e as estrelas, mas também sobre o ‘ponto’ sem
espaço-tempo-matéria (que explode) que este pressupõe. Mas é um verdadeiro
cepticismo, que não tem alternativa a propor. Não há, que eu saiba, nenhuma
experiência em aceleradores de partículas de nuvens destas capazes de gerarem
átomos, ou seja o mínimo de matéria. O que significa que o big Bang não passa
de cálculos e especulação filosófica, não é nenhuma ‘verdade científica’ que se
nos imponha aos leigos, nada como Copérnico, Galileu, Kepler e Newton nos
ensinaram o heliocentrismo contra os nossos olhos e o último a enigmática força
da gravidade agindo a distância. Claro que é também ignorância minha: como, por
exemplo, tratar um raio de luz e os seus fotões ou uma corrente eléctrica num cabo de cobre e os seus electrões,
em termos de différance?