quarta-feira, 11 de março de 2015

O sonho do califado




1. O que os diversos fundamentalismos religiosos que se manifestam no nosso mundo actual – extrema direita americana evangelista, integrismos católico, judaico e islâmico – têm em comum é a recusa global dos excessos libertários, mormente em matéria de costumes sexuais, que as televisões exibem como depravação do mundo ocidental desenvolvido. Uma questão prévia ao 7 de janeiro é a de saber porque é que apenas o mundo árabe muçulmano tem fornecido a forma terrorista-bomba que nos assombra desde o 11 de Setembro, que imola igualmente os que a provocam juntamente com as vítimas inocentes indiscriminadas, o horror ético de ‘darem a vida’ para matar criminosamente. Não tenho resposta para ela, nunca estudei o Alcorão nem a história que ele iniciou, apenas uma sugestão arriscada que permite gizar a noção de Califado, recentemente reclamada como meta politica pelos guerrilheiros da Síria e Iraque.
2. Semelhante à Cristandade medieval como forma religiosa unificando várias sociedades, o Califado difere dela não apenas por não ter raízes romanas mas também por representar então o auge da civilização muçulmana sem rivais à sua altura, já que a Cristandade era apenas um início, que aliás beneficiou da cultura árabe. Durante os seus Séculos de Ouro, esta ignorou os bárbaros europeus, até estes aparecerem a barrar-lhes os caminhos dos negócios e sobretudo quando, já modernos, manifestaram uma capacidade tecnológica que eles ignoravam e muito os surpreendeu. Diferença também na organização antropológica, que Germaine Tillion chamou “o harém e os primos”, visando as comunidades familiares endogâmicas (Emmanuel Todd), com prioridade dada ao casamento entre primos de primeiro grau, o que corresponde a criar conjuntos vastos sob a alçada dum patriarca poderoso, que têm manifestado uma dificuldade política em se erigir um Estado ocidental, oscilando entre formas de liderança ditatorial ou de fraternidades islãmicas. Como se fosse o monoteísmo corânico (e o seu profeta) quem ocupasse o lugar da unificação social, o que fará com que o fantasma do Pai seja muito mais vigoroso, como as mulheres muçulmanas sabem sem dúvida e tornará mais difícil a laicidade e mesmo o regime democrático de discussão e eleições. Também lhes será mais difícil criar a escola à maneira ocidental naquilo que tenha a ver com formas de vida e de crença, embora muitos magrebinos sejam bons alunos em França, melhores do que os portugueses (ainda E. Todd).
3. Reclamar o Califado como vasta unidade politico-religiosa, exprimiria uma homogeneidade de costumes muçulmanos e sonharia integrar nela as técnicas ocidentais (sem saberem que estas são parte essencial da desconstrução dessa homogeneidade, como sucedeu à Europa), excluindo as relações com o Ocidente desmoralizado e ateu; mas exprimiria também um ressentimento histórico, o dos ‘homens’ muçulmanos face aos europeus que conseguiram desenvolver-se mais do que eles. A pulsão agressiva que vitima também os seus portadores teria aí raízes antropológicas e históricas, a que a grande maioria da população muçulmana é obviamente alheia, querendo uma vida melhor, a que vêem nos écrans.
4. Fica a questão de saber se o 7 de Janeiro releva primordialmente da liberdade de expressão, como se tem dito. Claro que do ponto de vista desta é impossível não admirar a coragem temerária de Charb e dos seus companheiros, bem como a resposta impressionante das multidões francesas. Não se tratou da forma terrorista que implica alvos de massa, inocentes por definição, como nas torres de Nova Iorque e seus aviões, nos metros de Madrid e de Londres, mas dum atentado visando tais e tais personagens, que aliás se sabiam ameaçadas e ripostavam a essa ameaça corajosamente, com armas desiguais, mas ambas capazes de fazerem mossa. Não pesa ao gosto que se possa ter pelo seu humor considerar que politicamente Charlie Hebdo é anarquista, no sentido do final do século XIX. E é o que põe um problema de responsabilidade politica que a sua redacção ignorou: a de que, sob ameaça embora, as suas caricaturas são armas de acicatar o terrorismo a que fazem guerra na comunidade dividida, vão além dos seus 30 mil leitores, acicatar a impotência dos jovens muçulmanos, negar a integração como cidadãos que busca a grande maioria dos imigrantes, filhos e netos na Europa ocidental, acicatar também o medo do terrorista que possa estar sentado ao meu lado no metro.

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