1. O que os diversos fundamentalismos
religiosos que se manifestam no nosso mundo actual – extrema direita americana
evangelista, integrismos católico, judaico e islâmico – têm em comum é a
recusa global dos excessos libertários, mormente em matéria de costumes
sexuais, que as televisões exibem como depravação do mundo ocidental desenvolvido. Uma questão prévia ao 7 de janeiro é a de saber
porque é que apenas o mundo árabe muçulmano tem fornecido a forma
terrorista-bomba que nos assombra desde o 11 de Setembro, que imola igualmente
os que a provocam juntamente com as vítimas inocentes indiscriminadas, o horror
ético de ‘darem a vida’ para matar criminosamente. Não tenho resposta para ela,
nunca estudei o Alcorão nem a história que ele iniciou, apenas uma sugestão
arriscada que permite gizar a noção de Califado, recentemente reclamada como
meta politica pelos guerrilheiros da Síria e Iraque.
2. Semelhante à Cristandade medieval
como forma religiosa unificando várias sociedades, o Califado difere dela não
apenas por não ter raízes romanas mas também por representar então o auge da
civilização muçulmana sem rivais à sua altura, já que a Cristandade era apenas
um início, que aliás beneficiou da cultura árabe. Durante os seus Séculos de
Ouro, esta ignorou os bárbaros europeus, até estes aparecerem a barrar-lhes os
caminhos dos negócios e sobretudo quando, já modernos, manifestaram uma
capacidade tecnológica que eles ignoravam e muito os surpreendeu. Diferença
também na organização antropológica, que Germaine Tillion chamou “o harém e os
primos”, visando as comunidades familiares endogâmicas (Emmanuel Todd), com
prioridade dada ao casamento entre primos de primeiro grau, o que corresponde a
criar conjuntos vastos sob a alçada dum patriarca poderoso, que têm manifestado
uma dificuldade política em se erigir um Estado ocidental, oscilando entre
formas de liderança ditatorial ou de fraternidades islãmicas. Como se fosse o
monoteísmo corânico (e o seu profeta) quem ocupasse o lugar da unificação social,
o que fará com que o fantasma do Pai seja muito mais vigoroso, como as mulheres
muçulmanas sabem sem dúvida e tornará mais difícil a laicidade e mesmo o regime
democrático de discussão e eleições. Também lhes será mais difícil criar a
escola à maneira ocidental naquilo que tenha a ver com formas de vida e de crença,
embora muitos magrebinos sejam bons alunos em França, melhores do que os
portugueses (ainda E. Todd).
3. Reclamar o Califado como vasta
unidade politico-religiosa, exprimiria uma homogeneidade de costumes muçulmanos
e sonharia integrar nela as técnicas ocidentais (sem saberem que estas são
parte essencial da desconstrução dessa homogeneidade, como sucedeu à Europa),
excluindo as relações com o Ocidente desmoralizado e ateu; mas exprimiria
também um ressentimento histórico, o dos ‘homens’ muçulmanos face aos europeus
que conseguiram desenvolver-se mais do que eles. A pulsão agressiva que vitima
também os seus portadores teria aí raízes antropológicas e históricas, a que a
grande maioria da população muçulmana é obviamente alheia, querendo uma vida
melhor, a que vêem nos écrans.
4. Fica a questão de saber se o 7 de
Janeiro releva primordialmente da liberdade de expressão, como se tem dito. Claro que do ponto de vista
desta é impossível não admirar a coragem temerária de Charb e dos seus
companheiros, bem como a resposta impressionante das multidões francesas. Não
se tratou da forma terrorista que implica alvos de massa, inocentes por
definição, como nas torres de Nova Iorque e seus aviões, nos metros de Madrid e
de Londres, mas dum atentado visando tais e tais personagens, que aliás se
sabiam ameaçadas e ripostavam a essa ameaça corajosamente, com armas desiguais,
mas ambas capazes de fazerem mossa. Não pesa ao gosto que se possa ter pelo seu
humor considerar que politicamente Charlie Hebdo é anarquista, no sentido do
final do século XIX. E é o que põe um problema de responsabilidade politica que a sua redacção ignorou: a de que, sob ameaça
embora, as suas caricaturas são armas de acicatar o terrorismo a que fazem
guerra na comunidade dividida, vão além dos seus 30 mil leitores, acicatar a
impotência dos jovens muçulmanos, negar a integração como cidadãos que busca a
grande maioria dos imigrantes, filhos e netos na Europa ocidental, acicatar também
o medo do terrorista que possa estar sentado ao meu lado no metro.
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