NO PARADIGMA DA BIOLOGIA FALTA O SER NO MUNDO
(debate com Teresa Avelar e António Damásio)
UM PRECONCEITO FILOSÓFICO NO PARADIGMA DAS BIOLOGIAS
A) Selecção natural e lei da
selva (diálogo com Teresa Avelar)
A lei da selva comanda as
anatomias animais
Passar do ‘ambiente’ à cena
ecológica
B) Cérebro, mente e mundo :
dar o braço a torcer, mas... (diálogo com António Damásio)
Na Neurologia como na
Biologia
Nós, animais, somos seres
no mundo
Onde há neurónios, há mente
O cérebro é um órgão
biológico e social
A questão do filósofo: o que
é o humano?
Conclusão fenomenológica:
compreensão e linguagem relevam de evoluções diferentes
Resumo
Trata-se
de questionar o paradigma biológico a partir da fenomenologia biológica (Belo,
2007): o privilégio dos genes como determinantes do todo do organismo animal, e
deste sobre o chamado ambiente, a que contraponho o conceito de cena
ecológica, ou seja uma biologia de seres
no mundo. Numa 2ª parte, será a neurobiologia de Damásio que será
objecto do mesmo questionar, do cérebro como 'produzindo' a mente e a consciência,
propondo que o cérebro é um órgão biológico e social e que compreensão e
linguagem relevam de evoluções diferentes.
1. Trata-se aqui de um pequeno ensaio do que se pode chamar fenomenologia
biológica, fazendo parte duma aliança da filosofia com ciências, da fenomenologia (começada por
Husserl e continuada pelas dissidências que foram Heidegger e Derrida) com as
principais descobertas científicas do século XX, a saber: a teoria do átomo e
da molécula, a biologia molecular, a correlação entre interdito do incesto e
exogamia, a dupla articulação da linguagem e a segunda tópica da teoria
psicanalítica das pulsões.
2. O projecto de conhecimento das ciências europeias, os seus conceitos
e métodos, foram historicamente herdados da filosofia grega, Sócrates, Platão e
Aristóteles, inventores da definição e da argumentação sobre as essências intemporais,
os seres concretos analisados abstraídos das suas circunstâncias, arrancados do
seu contexto. As narrativas e os discursos quotidianos dizem sempre respeito a
singulares concretos em contextos determinados, a definição deu origem a um
tipo de texto gnosiológico – filosofia, lógica e ciências – tendente a um saber
geral, universal. As ciências europeias, por sua vez, inventaram o laboratório (Galileu, Newton, etc), em que
se medem e avaliam movimentos, reelaborando em consequência as definições herdadas da
filosofia na formulação das suas teorias: definições e argumentos dum lado face a experiências
que lhes põem objecções do outro.
3.
Ora, o primeiro grande tratado de Física moderna, publicado por Newton em 1687,
chamava-se Princípios matemáticos de filosofia natural: o que para nós é ‘ciência’ era
para o autor ‘filosofia’. Já Galileu dissera que gastara mais anos a estudar
filosofia do que meses em matemática pura. O que significa que, longe
ainda do seu futuro alcance técnico, sabendo-se que a ‘ciência’ era um discurso
específico, era no entanto considerada ainda um ramo da filosofia consagrado à
natureza. Só um século depois de Newton é que a distinção entre os dois tipos
de texto se marcou teoricamente: foi o trabalho de Kant que assumiu a novidade
newtoniana e a incorporou na sua filosofia, separando as águas e
permitindo que, ao longo do século XIX e anunciados pela primeira grande filosofia
incorporando a história, a de Hegel, se desenvolvessem vários tipos de ciência,
quase todos tendo como esteio o tempo histórico: biologia, paleontologia e
evolução, linguística das línguas indo-europeias, filologia crítica e edição
dos textos antigos, economia, antropologia dos povos pré-históricos, história
propriamente dita, e por aí fora. E assim como Kant fez uma teoria filosófica
que continha as descobertas ‘críticas’ de Newton, também o sistema hegeliano
implicava na sua lógica as ciências do seu tempo na sua dimensão filosófica,
que Kant todavia ‘suspendera’. De maneira diferente pois, ambos estes
pensadores da transição entre a época clássica e a modernidade pensaram a
filosofia ainda com as ciências; ao mesmo tempo que Kant contribuíu para separar as ciências
da filosofia e deixar-lhes um espaço de inovação mais liberto de preocupações
metafísicas, consoante a constante reclamação ‘positivista’ dos sábios.
4. Mas não era
possível impedir que perdurassem preconceitos filosóficos nas evidências não
questionadas desses sábios, uma boa parte das dificuldades das grandes
descobertas científicas implicando um verdadeiro trabalho filosófico da parte
deles contra preconceitos tradicionais, trabalho critico esse constitutivo do
que Kuhn chamou revolução dos paradigmas. Após o grande desenvolvimento científico
dos dois últimos séculos, encontramo-nos na situação oposta, que dá a perceber
que a suspensão kantiana da dimensão filosófica das ciências deixou de ser
fecunda: diante da imensa fragmentarização dos saberes científicos em
especialidades infindas, a crescente reclamação de interdisciplinaridade
estimula a recuperar essa dimensão filosófica nas novas ciências e a formular
uma fenomenologia, uma descrição dos fenómenos em que as principais descobertas
científicas tenham também um lugar filosófico. É que é fácil de dizer como a filosofia europeia,
construída, tanto a dita racionalista como a dita empirista, em torno do
‘sujeito’ ou da ‘consciência’, que substituíram a ‘alma’ na sua dupla oposição,
tanto ao corpo como ao mundo dito exterior, essa filosofia estava (está ainda
em muitos discursos) carente das dimensões dos humanos que assim estavam
excluídas: a um tal sujeito sem corpo nem sociedade nem linguagem nem sexualidade
submetida à lei era necessário recorrer às respectivas ciências, biologia, antropologia,
linguística, psicanálise, para se poder fazer uma abordagem fenomenológica dos
humanos, em prol duma articulação dos saberes, de uma tentativa de os unificar
por dentro deles, digamos, unificação filosófica dos saberes científicos, revelando uma mesma
fenomenologia
nas grandes descobertas científicas do século XX. A esta tentativa chamei filosofia
com ciências ou fenomenologia reformulada. Assim se me vou
ocupar aqui de biologia, é porque esta filosofia de que me reclamo foi
elaborada lendo livros de biologia e neurologia, além de outras ciências.
5. Digamos que há quatro grandes domínios ‘históricos’ da realidade de que
se ocupam as ciências. 1) o domínio da gravitação: a história da formação dos
astros, os seus fenómenos caracterizando-se pelos núcleos atómicos de protões e
neutrões; 2) o domínio da alimentação: a evolução dos vivos, caracterizados pelo ADN; 3)
o domínio da habitação: a história das sociedades humanas, caracterizadas pelas unidades locais
de habitação e os paradigmas dos seus usos; 4) o domínio da inscrição: a história (ocidental) dos
textos literários, filosóficos e científicos, caracterizados pelo alfabeto.
6. Acontece que estas quatro ‘histórias’ foram todas passíveis de inúmeras
contingências e frequentes convergências, como T. Avelar
mostra ser verdade da evolução, que contesta a existência persistente do pressuposto
finalista em muitos biólogos, o qual é obviamente de origem filosófica. Essa
leitura levou-me a debruçar-me sobre um outro pressuposto filosófico (também de cariz antropocêntrico)
ignorado dos biólogos, que ela própria partilha (cf § 18). Ora, o a todos os títulos notável Livro da
Consciência de
A. Damásio
mostra que a neurologia actual também partilha desse pressuposto filosófico da
restante biologia, sendo-lhe proposto em diálogo o motivo heideggeriano de ser
no mundo para
ajudar a uma melhor fenomenologia destas questões. Parece com efeito que aí
reside uma grande dificuldade, lugar de tantos diálogos de surdos, já que este
tipo de pressupostos corresponde a evidências não questionadas, que fazem parte
da própria maneira de colocar as questões, daquilo a que Althusser chamou “filosofia
espontânea dos sábios”. Esses pressupostos ou preconceitos foram herdados pelas
ciências do seu passado filosófico sem que os cientistas o saibam, receberam-nos
- ‘sujeito / objecto’ e respectiva ‘representação’, para assinalar o mais
insidioso -, recebemo-los no liceu, nas aulas de ciências e outras, não só nas
de filosofia propriamente dita. Ora, acontece que Heidegger e Derrida nos
permitiram tornear tais pressupostos, como também as próprias grandes
descobertas científicas necessitam dessa crítica para se articularem umas com
as outras, se unificarem. É por isso que alguém trabalhando em filosofia pode ousar entrar em
questões de especialistas sem o ser, a partir da sua outra especialidade (tendo
obtido todavia uma licenciatura em engenharia civil na sua juventude).
II –– UM
PRECONCEITO FILOSÓFICO NO PARADIGMA DAS BIOLOGIAS
A) Selecção natural e lei da
selva (diálogo com Teresa Avelar)
7.
Gostei muito da clareza argumentativa do livro de Teresa Avelar (T. A.), da sua
tese sobre o papel quer da contingência quer das convergências frequentes na
evolução dos vivos, do carácter único e irrepetível desta. Bate-se assim contra
os criacionismos anacrónicos, mas também contra o que diz ser um preconceito
antropocêntrico de muitos biólogos evolucionistas, que colocam os humanos como
‘cúmulo da evolução’ dos animais. Já o filósofo Deleuze tinha nos anos 70
proposto substituir o esquema clássico da árvore genealógica hierárquica pelo
do rizoma,
como T. A. fala de arbusto. Assim como na história dos humanos há progressos
(tecnológicos nomeadamente) sem progressismo, também a evolução se fez e se
faz sem evolucionismo.
A lei da selva comanda as
anatomias animais
8.
Como é costume entre os biólogos, T. A. fala da “selecção natural" como um
mecanismo, como se tivesse peças ou elementos diversos e uma fonte energética,
o que manifestamente não é o caso. Digamos que se trata duma lógica imanente aos processos biológicos e
ecológicos, uma selecção relativa às interacções entre organismos, que estes
sim, podem ser ditos mecanismos. Há aliás quem ache que a selecção natural é
uma explicação que se pode dizer tautológica: ela selecciona os que sobrevivem
como aqueles que se mostraram capazes de sobreviver. A sua grande importância
científica reside na imanência (biológica) da sua lógica, na rejeição crítica
de pressupostos finalistas de ordem metafísica, filosófica ou teológica: ela
‘obriga’ o biólogo (ainda que seja crente!) a argumentar estritamente em termos
de mecanismos de ordem biológica. E um dos grandes interesses do texto de T. A.
é o de mostrar, com exemplos variados, que não é só o chamado criacionismo que
é rejeitado, mas também a tendência, que se pode chamar ‘finalismo humanista’,
de muitos biólogos e divulgadores da teoria da evolução, o pressuposto antropocêntrico
de que a evolução se destinou a fazer aparecer a espécie dos humanos.
9.
A caracterização inadequada mas reiterada da selecção natural como mecanismo
incita a procurar saber se haverá algo como uma lei fenomenológica a que obedeçam os mecanismos
biológicos, que possa esclarecer melhor sobre o que é que se exerce a selecção
natural. Ela andará em torno da questão crucial de todos os vivos, que implica
a relação do organismo com o que está fora dele mas lhe é necessário, a saber a
questão da alimentação através de outros organismos. Ora, à excepção da água, todas as moléculas que
constituem as células contêm átomos de carbono. Poucos existindo à partida na
água onde se gerou a vida, e o número de vivos tendo vindo sempre a crescer,
isto só foi possível através da fotossíntese que os vai buscar ao CO2
da atmosfera para constituírem as moléculas das células das plantas, aonde os
herbívoros os vão buscar e os carnívoros depois a estes, segundo o chamado ciclo
do carbono
(parecido com o da água). É este ciclo que implica o que se deve chamar
literalmente lei da selva: os animais só sobrevivem comendo outros vivos, sejam
plantas sejam animais. O que é assim um mundo de imensa contingência.
10.
Qual é o interesse desta lei? Sem que eu saiba dizer como é que ela pode
interessar as plantas, todos os animais minimamente extensos são estruturados
segundo ela: deverão ter uma anatomia capaz de ‘caçar’ e de digerir plantas ou
animais e capaz de fugir a ser caçado. Nos animais melhor conhecidos por um leigo em biologia,
distinguem-se, além do esqueleto e da sexualidade, dois grandes tipos de
sistemas de órgãos: a) os que têm a ver com a digestão dos alimentos e com a circulação do
sangue em equilíbrio homeostático que leva as moléculas digeridas e o oxigénio
da respiração a todas as suas células, para que estas operem o seu metabolismo;
b) os que têm a ver com a caça e a fuga, sistema neuronal (órgãos de percepção
do exterior e interior, cérebro, nervos) e muscular da mobilidade. Se tomarmos
o exemplo dum mecanismo, um automóvel, percebe-se alguma analogia conceptual:
além dos cilindros do motor que transformam a energia, todos os órgãos do
automóvel são calculados para circularem nas estradas, virarem à direita ou à
esquerda, travarem, recuarem, acelerarem, etc., em função de situações regidas
pela lei do tráfego, que não diz respeito só ao ‘meu’ automóvel mas a todos os que circulam e
tem essencialmente a ver com situações aleatórias.
Esta lei determina todos os projectos laboratoriais dos engenheiros das
fábricas de automóveis e tem como consequência lógica que todas as regras científicas (físicas e químicas)
que jogam nas peças da máquina estão ao serviço duma condução essencialmente aleatória. O mesmo se passa com a lei da
selva, obviamente mais complexa: ela determina todos os órgãos da anatomia
dos animais minimamente extensos, e as regras bioquímicas, anatómicas e
histológicas da constituição dos organismos respondem igualmente ao aleatório
das situações de caça e de fuga.
Passar do ‘ambiente’ à cena
ecológica
11.
Todos os biólogos sabem isto, que eu deduzi do que li em livros de divulgação,
e se digo ‘deduzi’, é por não o ter encontrado explicitado, ainda que sem a
designação que lhe dei (a expressão ‘lei da selva’ é antiga, mas só se usa
metaforicamente), não encontrei nunca esta explicitação da economia da alimentação.
Espanta-me que na literatura de divulgação biológica que li esta economia
estrutural da biologia animal nunca tenha sido aflorada: tratar-se-á de outro
preconceito filosófico que fará parte da teoria do paradigma dominante da biologia actual. Ele
assinala-se no próprio texto de T. A., quando falando do “ambiente”, diz que
este “inclui não só factores como temperatura, humidade, etc., mas outros
organismos: predadores, presas, parasitas, etc.” (p. 32). Se se disser que a
‘temperatura’ e a ‘humidade’, o clima em geral, assim como a mineralogia do
ecossistema, são exemplos normais de ‘ambiente’ no que este tem de exterior ou
de ‘inerte’ em relação ao processo da reprodução das espécies, de não controlável
por estas, percebe-se claramente que ‘predadores’ e ‘presas’ correspondem a uma
categoria completamente diferente: todos os organismos animais são predadores e
podem ser presas! É a lei da selva que claramente escapa a T. A., o que mostra
que há que trabalhar este conceito de ambiente, substituí-lo, por exemplo, pelo
de cena ecológica.
12.
Com que vantagem? A de mudar o olhar sobre o que fazem as ciências e sobre o
papel estrutural do laboratório nelas: o que justifica a necessidade deste é a
redução de factores aleatórios da cena para a criação de condições de determinação que
permitam constatar ‘causas e efeitos’ de tipo científico, digamos de forma
simplista. Mas há um segundo tempo, o da restituição do fenómeno observado à
cena ecológica,
em que importa ter esta em conta como referência teórica, a cena onde plantas e
animais de espécies muito diferentes se reproduzem em concorrência necessária
(ou aliança, caso das plantas e insectos de que T. A. fala, p. 72-4), segundo
uma lei – que também não é um ‘mecanismo’ mas que rege a estrutura dos mecanismos
– que me parece ser o grande factor da evolução. A selecção natural continua a
ser uma descoberta histórica inestimável enquanto lógica imanente da evolução
para recusar explicações extrínsecas aos mecanismos biológicos, sempre útil
nestes tempos de criacionismos anacrónicos mas militantes nas Américas.
13.
O que me escandaliza na literatura bio e neurológica que li e em tantas
referências que se lêem por todo o lado, é, nunca por nunca ser, ter encontrado
teorizada a transição da biologia das células à anatomia. Julgo poder deduzir da
literatura biológica que li, que, à excepção das glândulas endócrinas e
equivalentes, as células especializadas , além de se reproduzirem, não fazem
mais nada senão reconstituírem algumas das suas proteínas, moléculas muito
extensas e por isso frágeis, sempre ameaçadas de se desintegrarem em componentes
mais estáveis e que é necessário repor para que as células possam fazer o seu
trabalho especializado no seu tecido e órgão. Ou seja as ‘funções’ do ADN são,
desde os unicelulares, internas à própria célula de acordo com a sua
especialização anatómica nos organismos. Ora, é ao nível da boa anatomia
clássica que se processam os comportamentos na cena ecológica, segundo os seus
aleatórios, os quais comportamentos dependem do conjunto do organismo regulado
cerebralmente e, nos humanos, dos usos que se aprenderam, linguagem incluída,
os quais, ser no mundo, são abertos a várias possibilidades. Os biólogos
moleculares entusiasmaram-se com a descoberta dos genes e desataram a sugerir
determinismos sobre tudo e mais alguma coisa (inteligência, homossexualidade,
que sei eu).
Conclusão fenomenológica: uma
biologia de seres no mundo
14.
A grande mutação filosófica que aqui me guia foi devida ao filósofo M.
Heidegger que propôs em Ser e Tempo, que os humanos, em vez de
‘alma e corpo’, espíritos, mentes, sujeitos, consciências, são seres no
mundo,
ek-sistentes fora deles. O que a biologia comprova: tudo em nós vem de fora, as
moléculas de que somos feitos vieram de comermos outros vivos, e também as
coisas que pensamos vêm de termos aprendido a falar e a pensar com os outros, o
que sabemos fazer com mais ou menos habilidade (comer à mesa, lavar os dentes,
trabalhar num computador) aprendemos ‘no mundo’ fora de nós, vendo os outros
fazerem. É a sociedade, que já existe quando nascemos, que nos ‘faz doação’,
complementando a ‘doação’ da espécie humana na cena ecológica. Somos antes de
mais seres tribais (família e amigos), é a escola, os livros e os médias que
nos fazem cosmopolitas. Voltaremos adiante à questão.
15. O novo paradigma
que aqui se propõe considera a cena ecológica como prévia a cada
organismo animal para poder dar conta de cada espécie e da descrição da
anatomia e dos genes de cada organismo: tal como o engenheiro de automóveis
experimenta peças em seu laboratório com os olhos teóricos postos na estrada
onde ele vai circular, também as descobertas laboratoriais de relações de
causalidade entre elementos duma dada anatomia ou fisiologia animal são para
serem teorizadas com o olhar sobre a cena ecológica e a sua lei da selva. O extremo oposto
encontrei-o num autor em voga nos anos 80 e 90, F. Varela,
que propôs o conceito de auto-poiético. Tudo se explicaria a partir da lógica
interna do organismo (autopoiético: faz-se a si próprio), tudo o que tem a ver
com o ‘fora’ dessa lógica seria segundo. Aqui, é de ‘fora’, da cena
ecológica, que vem o autopoiético, embora esse ‘vir de fora’ seja apagado como
condição da autonomia do organismo (e é por isso que os empiristas não dão por
ela). Sucede exactamente o mesmo connosco: tudo, desde o óvulo fecundado, nos
vem de fora (alimentação e aprendizagem) mas de maneira a que esse vir de fora
seja não consciente, apagado (os sonhos lembram algo desse apagado reelaborado):
tudo o que nos é ‘próprio’, foi-nos doado por outros, desde as moléculas das
nossas células. A concepção antropocêntrica aqui criticada surgiu para
substituir o teocentrismo medieval; a filosofia europeia do sec. XVII (Descartes
é o mais conhecido, mas os seus críticos empiristas também incluídos)
elaborou-a como interioridade, ‘eu que pensa’, depois ‘sujeito’, ‘consciência’,
‘homem’, etc., em oposição à exterioridade, o ‘objecto’, o mundo, o dito ‘ambiente’.
Preconceito filosófico de cariz antropocêntrico: como se pensa o humano, também
cada animal. A isto Heidegger contrapôs o humano como ser no mundo, que eu generalizo, com as
devidas diferenças, aos animais em geral. Nos textos de 2007 e 2009, proponho
que o Ereignis de 1962 permite interpretar o motivo de espécie biológica (no seio do de cena ecológica)
como o que faz doação dos acontecimentos dizendo respeito aos indivíduos dessa espécie. A
argumentação não pode ser aqui resumida, mas ela esclarece a maneira como
Heidegger ultrapassou a oposição aristotélica entre ousia e acidentes, entre ser e tempo.
B) Cérebro, mente e mundo :
dar o braço a torcer, mas... (diálogo com António Damásio)
Na Neurologia como na
Biologia
16.
O mesmo preconceito se encontra nos paradigmas de Neurologia, como tentei
ilustrar no meu texto de 2007, num capítulo (11. 30-46) que articula O Homem
neuronal de
J.-P. Changeux com O
erro de Descartes de A. Damásio (A. D.),
um oferecendo, na sua teoria dos grafos, uma bela base para a abordagem da
memória e o outro, na sua teoria do papel das emoções nas decisões, aquilo a
que chamei uma neurologia do acontecimento. O recente livro de A. D., O livro da
consciência, é
deslumbrante para quem tem a paixão de compreender e sabe como estas questões
estão ainda longe de esclarecimentos completos. Ele tem a bela ousadia de
colocar a questão da emergência da mente, consciência e Eu (self) nos sistemas neuronais, a
partir dos protozoários eucariotas como a ameba até aos humanos, com a ambição
de alcançar a globalidade do que está em jogo, apesar de saber das lacunas e
enigmas que persistem.
17.
Mas no entanto as suas hipóteses de trabalho, sem as quais o projecto seria
impossível, manifestadas nas nomeações escolhidas para as várias instâncias e
etapas cerebrais, são, dum ponto de vista fenomenológico, inadequadas à
excelência do trabalho descritivo, não tanto no detalhe (que o leitor leigo não
sabe avaliar, em que confia) mas nas articulações teóricas. Ora, essa inadequação
releva do preconceito filosófico de que foi questão no diálogo com T. A. É o
sentimento agudo desse desfasamento – entre a audácia conseguida do neurólogo
no laboratório e o ‘handicap’ (fenomenológico) da teoria que assombra a
performance – que me move a escrita, que buscaria abrir um horizonte que possa
porventura tornar mais fecunda ainda esta espantosa aventura em neurologia.
Claro que não é o investigador notável que é António Damásio que está aqui em
questão (antes pelo contrário, é a sua clareza de apresentação, que voltou à
estaca zero da neurologia, começando tudo pelo princípio, que permite esta
tentativa de desenhar o preconceito filosófico) mas toda a literatura biológica
e neurológica que pude ler. Com efeito, uma parte importante da apreciação
crítica a fazer-lhe reenvia para o capítulo anterior, ao diálogo com T. A.,
escrito aliás antes da leitura do Livro da Consciência, assim como parece óbvio que a
bibliografia que cita o confirma neste preconceito filosófico herdado da
filosofia greco-cristã-europeia, do que Heidegger chamou ontoteologia. Será possível discutir sem
diálogo de surdos, de forma a que seja frutífero para a neurobiologia? Não é
seguro, já que quando investigadores em biologia como em linguística (o
cartesianismo de Chomsky, por exemplo), história ou antropologia, e sem dúvida
também em filosofia, andam já há muito em questões destas, vão-se sedimentando
evidências antigas que jogam nas descobertas que se fazem, nos argumentos que
se constroem. Mas como A. D. mostrou já que está atento a implicações
filosóficas possíveis no domínio em que trabalha, Descartes e Spinoza aparecem
em títulos dos seus livros, seria difícil encontrar um melhor neurólogo para
este diálogo (além de falar português). Assim esteja eu à altura.
Nós, animais, somos seres
no mundo
18.
Esta afirmação central de fenomenologia biológica foi descrita a partir do § 7,
fazendo-se a distinção entre dois sistemas, o da alimentação e o da mobilidade
destinado antes de mais à caça e à fuga a ser caçado (§ 8). Creio que eles são
relativamente autónomos um do outro, com dois órgãos apenas a pertencerem a ambos
os sistemas: a boca e o cérebro. Aquela destacou-se da sua função essencial de
preensão de animais ou plantas com os primatas, cujas mãos libertas se encarregaram
da preensão (Leroi-Gourhain
ensinou como tal libertação na marcha bípede foi decisiva para o aumento da
capacidade do crânio), mas com a aquisição da fala a boca voltou a ter um papel
preponderante no sistema da mobilidade. Quanto ao cérebro, a sua dupla função
em cada um dos dois sistemas – que não poderá ser ‘separada’, julgo – não só se
manteve como conheceu desenvolvimentos muito grandes com as invenções de usos
técnicos e das respectivas receitas faladas: dum ponto de vista biológico,
haverá que sublinhar o que julgo ser a relativa estabilidade do sistema da
alimentação dos humanos em contraste com as alterações do sistema da
mobilidade, fortemente empenhada nos novos usos sociais. Estes, a linguagem
incluída, são sem dúvida a grande manifestação do ser no mundo segundo Heidegger, o cuidado na
habitação. E de tal maneira se tornou importante para os cérebros humanos, que
as filosofias e as ciências privilegiaram a actividade intelectual, artística e
espiritual: é desse privilégio que resulta o preconceito filosófico que na
Neurologia tenderá a fazer do sistema neuronal humano um modelo laboratorial de
que se procuram os antecedentes na evolução das espécies. Em A. D., é
claramente afirmada a escolha do paradigma psicológico de William James, como
Changeux, no Homem neuronal, privilegiava os filósofos empiristas do século XVIII.
A. D. tem no entanto mais nítida percepção de que o cérebro pertence essencialmente
ao sistema da alimentação, afirmando expressamente que a regulação da
homeostasia do sangue é a grande função cerebral (p. 79-85), embora o uso duma metafórica
de gestão económica – “gestão vital”, “valor biológico” – assinale, à maneira
dum sintoma, a ausência duma descrição da economia anatómica em termos da cena
ecológica e da sua lei da selva. Esta noção ‘idealista’ de ‘valor’ contrasta
com o grande rigor ‘materialista’ das suas descrições que seguem sempre a via
anatómica, embora não contando com o ‘mundo’, com a cena ecológica, como factor
de análise. É assim que o seu conceito mais forte parece ser o de ‘construção’,
de que o actor principal é o
‘cérebro’, que ‘constrói’ a mente, a consciência e o Eu (Self). Ora, a sua dupla pertença aos
dois sistemas deveria levar a caracterizá-lo como um órgão simultaneamente
biológico e social, o que diz a diferença maior desta proposta fenomenológica, a crítica do
preconceito filosófico: o organismo é visto apenas nele, a cena ecológica (o
mundo) não passa dum mero ‘ambiente’ sem incidência biológica significativa
nessa ‘construção’.
Onde há neurónios, há mente
19.
Para se entender a dupla função do cérebro enquanto regulador vital dum organismo
no mundo da cena ecológica, há que começar por indagar da especificidade dos
neurónios enquanto células: pelas suas muitas ‘sinapses’, eles agarram-se (aptô) uns com (sun) os outros em redes. O filósofo
Derrida escreveu que “a auto-afectação é uma estrutura universal da
experiência. Qualquer vivo é capaz de auto-afectação. E só um ser capaz de se
auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral. [...] Esta possibilidade
– outro nome da ‘vida’ – é uma estrutura geral articulada pela história da vida
e dando lugar a operações complexas e hierarquizadas”. Esta capacidade do ser vivo
permite caracterizar os neurónios como as células que afectam e são afectadas
umas pelas as outras, formando uma grande rede de auto-afectação, e também
de hetero-afectação por outros vivos na cena ecológica, como presas possíveis, predadores
de que se foge, eventuais aliados. As várias referências de A. D. aos “córtices
sensoriais iniciais” (p. 377-8) e “primários” sublinham o carácter ‘inicial’
desta hetero-afectação, assim como o esquema da p. 381: “o neurónio NEU
apercebe-se do objecto OB e informa o neurónio ZADIG, o qual impulsiona a fibra
muscular MUSC e provoca o movimento” e segue pela evolução acima, num processo
que ‘começa’ pelo encontro entre o neurónio e a cena ecológica (aonde se encontra
o ‘objecto’, termo filosófico aqui tão feio).
20.
O livro termina, no seu último apêndice, por evocar a questão da equivalência
entre estados mentais e estados cerebrais (ou neuronais), que diz ser uma
hipótese útil e não uma certeza, sendo “improvável que alguma vez venhamos a
conhecer todos os fenómenos neuronais associados a um estado mental, mesmo
sendo este simples”, desejando que venham a ser “encarados como as duas
faces do mesmo processo” (p. 385, eu subl.). Eis o ponto em que o fenomenólogo gostaria de dar uma
ajuda ao neurólogo: é que a sua demonstração convenceu-o do bem fundado da
expressão sublinhada. É aonde se dá o braço a torcer. Nos textos referidos de
2007 (11.44-6) e 2009 (§§ 100-101), foi recusada a noção de ‘mente’ por razões
de ordem filosófica: a diferença cérebro / mente seria (e é-o certamente em
muitos textos) um resto da oposição corpo / alma. Propunha então substituí-la
pela diferença entre os fenómenos cerebrais nos neurónios e os discursos e usos
sociais correspondentes no mundo, os métodos de abordagem de uns e de outros
sendo irredutíveis, relevando de ciências diferentes. A argumentação (2007,
6.3-11) fora conduzida sobre uma leitura de O sono e o sonho do neurólogo M. Jouvet,
onde se contrasta claramente os sucessos neurológicos dizendo respeito aos mecanismos
do sono e o insucesso flagrante relativo ao sonho (é preciso de cada vez
acordar o paciente e indagar ‘subjectivamente’: estava a sonhar?), como testemunha
o desalento das últimas páginas do livro. O sono ao neurólogo e suas
aparelhagens, o sonho ao psicanalista que o recolhe do discurso do sonhador,
carregado de ‘subjectividade’, como se diz. Aliás, as várias psicologias e
linguísticas também estudam fenómenos cerebrais, quer discursivos quer
comportamentais. Ora bem, a definição de mente de A. D. levou-me a compreender
esta duma forma muito estimulante: “as imagens – visuais, auditivas ou
quaisquer outras – encontram-se disponíveis directamente mas apenas para o dono da mente em que ocorrem.
São privadas e inobserváveis por terceiros” (p. 97, o autor sublinhou). Os
termos ‘imagem’ e ‘dono’ serão discutidos (§§ 22 e 24), mas vê-se claramente o
que é designado como mente: a auto-afectação do ‘dono’ do cérebro pelas ocorrências
electro-químicas dos seus padrões neuronais. Esta seria uma maneira de entender
a mente como uma das ‘faces’ do cérebro: a auto-afectação numa zona onde só nós
é que sabemos, onde a aparelhagem neurológica, que se ocupa da outra ‘face’,
não pode chegar. Esta diferença entre cérebro
(circuito neuronal de sinapses) e mente ou consciência só do próprio
(auto-afectação do circuito, sua introspecção) é o ponto de irredutibilidade
entre as duas metodologias, da neurologia e das psicologias,
digamos. Exemplo geral muito simples: o médico tem sempre que perguntar se
‘doi’, só o doente é que sabe (é ‘doer’ que dá a etimologia de ‘doente’!)
21. Só que a mente,
sendo assim definida pela internalidade da rede neuronal, é correlativa de
qualquer rede mínima, desde as primeiras espécies dispondo de neurónios; não é
portanto ‘construída’ pelo cérebro: como A. D. diz, ela é uma “das duas faces
do mesmo processo”. E a dizer verdade, mente e consciência parecem ser dois
nomes para a mesma ‘face’ do processo, a face internal a que só o próprio tem
acesso, já que a noção de auto-afectação também é correlativa de ‘consciência
de si e de outrem’, embora em graus diversos. Enquanto que um cão manifesta a
sua abanando a cauda para os donos e ladrando para os desconhecidos, o que é
que pode ser a mente ou a consciência dum mosquito, o que sabe ele de si? Ele
fareja o sangue do meu braço como apetecível para a sua auto-reprodução e vem
pousar-se nele, mas a ameaça da minha mão o esmagar fá-lo partir rapidamente, contendo
a pulsão da fome para salvar a vida. Saberes elementares, certamente, aqueles que lhe são
necessários, de que os seus neurónios o auto-afectam. A descrição das diversas
etapas da evolução deveria adjectivar mente e consciência, como se fez para o
‘eu’, recorrendo, por exemplo, às respectivas proezas no mundo, correlativas de
ganhos anatómicos.
O cérebro é um órgão
biológico e social
22.
Haverá ‘imagens’ na mente? (§ 20). O termo tem o inconveniente (mas qualquer
outro o terá) de fazer pensar que a mente ‘vê’ ou ‘ouve’ imagens tal como os
olhos e os ouvidos, quando parece mais claro que se tratará da correlação entre
ocorrências electro-químicas cerebrais: por exemplo, as dos córtices
associativos e as da “actividade perto dos pontos onde os sinais sensoriais
entram no córtex” (p. 191). Só se ‘veria’ com o cérebro mas nos olhos, na sua região próxima,
como parece que é neles que se sonha. Só se ‘ouviria’ com o cérebro mas nos ouvidos. Ora bem, a diferença
entre as ‘imagens’ a que estamos habituados e as que nunca antes tínhamos visto
põe a questão decisiva da memória, correlativa do ser no mundo. A concepção dela como
‘armazém’ parece-me inadequada, assim como a de ‘mapa’ de imagens, que serve,
parece, para corresponder à de padrão neuronal electro-químico, tal como
observado nas novas maquinarias com ecrãs, aquilo a que a tradição chamava
‘fluxo nervoso’, que se acende e se apaga, sem estabilidade. Ora, J.-P.
Changeux foi buscar à matemática o conceito de grafo, que inclui a noção de
gravação, de escrita que perdura, e que seria uma solução extremamente elegante
da questão da memória. Esta é uma estabilidade apagada, que está lá mas
esquecida, vem (sou-venir, diz-se em francês) por ‘associação de ideias’ com as do
fluxo nervoso, e apenas por pequenos pacotes de ‘recordações’. Como correlacionar
estes dois motivos, grafo e fluxo? Pela metáfora duma senda aberta numa floresta,
um caminho que se abre dificilmente mas se reforça à medida que é pisado:
também assim seriam os grafos derivados da aprendizagem, fluxos estabilizando
lentamente sinapses na floresta neuronal que serão seguidas depois por novos
fluxos que são assim reconhecidos. De facto, é fácil ter a experiência de que só se
conhece o que se reconhece: ao chegar a uma cidade asiática fica-se perdido,
assim como o não-melómano que se habituou a ouvir algumas poucas músicas
clássicas, consegue apreciá-las, enquanto que se distrai irremediavelmente a
ouvir peças desconhecidas. Não há ‘primeira vez’ nestas coisas, a memória não é
um acrescento, tal como a mente, ela é parte integrante da estrutura do neuronal
no mundo: qualquer pequeno núcleo de neurónios, como o do mosquito, só tem
eficácia para a auto-reprodução do organismo se for capaz de ‘reagir’ ao mundo.
A aprendizagem só tendo sentido por criar memória, ele terá que ter grafos de
aprendizagem, embora seja muito difícil saber como, mas que não podem ser
inatos, como outros o são (“as vastas redes de disposições que operam os nossos
mecanismos básicos de gestão vital”, p. 173). Ora, na página 172 o autor tinha
dado um exemplo de impacto impreciso (não ‘mapas’, na sua terminologia) de algo
que implica em todo o caso aprendizagem de movimentos. Pode-se pôr a questão de
saber se as “disposições não conscientes” (não teriam ‘mente’?) que foram
“educadas” (p. 332) não terão sido ‘conscientes’ durante a sua aprendizagem e
esquecidas depois, recobertos os seus grafos em seguida por outros mais fortes
(por regra, esquecemos os primeiros anos da nossa infância, mas há quem consiga
retomar recordações muito antigas). Isso iria aliás ao encontro de Freud, em
que a ‘força’ (do interdito do incesto) implica recalcamento.
23.
Este motivo da diferença entre grafo e fluxo permite elucidar fenomenologicamente
uma outra questão decisiva, a da formação do Eu que A. D. supõe ‘criado’ pelo
cérebro. Começo com um exemplo simples: o sotaque duma voz transmontana implica
que ela foi aprendida da sua tribo, é social, mas os seus próximos
reconhecem-na ao telefone como a voz de Fulano (‘sou eu’), como individual. A
voz tem componentes sociais e individuais indissociáveis, foi recebida
(passiva) e é pessoal (activa). O mesmo se passa com qualquer aprendizagem: aprender
é sempre aprender (passivo) a fazer (activo), e o que aprendemos são os usos sociais da nossa
tribo, num primeiro tempo eles são-nos estranhos, vindos de fora, grafados
ganham habilidade, tornam-se espontâneos, do próprio, segundo o esquema admirável dum mecanismo de simulação
com poupança de energia e que pode ser reactivado em caso de emergência que
Damásio apresentou em O erro de Descartes. São estes usos que fazem o Eu,
mas não ‘no’ ou ‘com’ o cérebro, formulações que deixariam este ‘passivo’ em
sua rede neuronal: o cérebro grafado pelos usos do mundo é o Eu. Seja um exemplo com os
números. Os nomes destes, além dos 10 primeiros, ‘um’, ‘dois’, ‘dez’, ‘cem’,
‘mil’ e vários sufixos (-ze, -enta, -entos), são compostos a partir uns dos
outros: 37 supõe 3x10+7. Se todos os números tivessem um nome próprio como têm
‘um’, ‘dois’, ‘três’, ‘dez’ (por exemplo, os da tabela periódica: ‘sódio’ em
vez de 11, ‘cálcio’ em vez de 20, ‘ferro’ em vez de 25, ‘cobre’ em vez de 29,
etc.), era impossível fazer contas com eles. O que significa que, ao
aprendermos a fazer contas, a lógica social deles ‘pensa’ no nosso ‘pensar’,
o que veio de fora pensa no nosso dentro (Belo, 2007, 11.34-5). Com as línguas
e suas regras estritas (fonológicas, sintácticas, semânticas, textuais)
passa-se o mesmo em mais complicado: estas regras de ‘comunicação’, como se diz,
são necessárias para que os outros nos entendam, mas estão prodigiosamente ao
serviço do aleatório de qualquer conversa ou escrita (como um automóvel e um organismo animal,
§ 5). O cérebro é o órgão biológico e social de seres no mundo, deste todo a que chamamos Eu
justamente para o destacar do mundo (coisa de que japoneses e chineses, cujas
línguas ignoravam o pronome, não pareciam sentir a falta). Mas os usos e a
língua deste mundo tribal inscrevem-se, grafam-se nos neurónios, o que faz com
que a consciência que estes têm de si é de mundo que é feita, tribais que somos:
o nosso mundo no coração do nosso Eu.
A questão do filósofo: o que
é o humano?
24.
Quanto ao termo ‘dono’ (§ 20), a questão complica-se com a multiplicação de
instâncias: o cérebro, a mente, a consciência, a memória, o eu, o organismo, o
corpo. Eu diria em vez de ‘dono’: o animal no seu mundo. Como pensá-lo sem homúnculo,
sem mente oposta a cérebro? Há que ter em conta que a rede
neuronal que os neurólogos nos revelam é composta de células, de material
bioquímico por onde passam correntes de electricidade iónica. É deste material que é feita a
nossa subjectividade, desde os órgãos de percepção aos nervos dos músculos do
movimento. Seja o exemplo das nossas palavras que se transformam em
electricidade por meio de um telefone e voltam a palavras sonoras por outro
telefone. Ou o que escrevo num teclado, vira electricidade, sofre transformações
segundo o programa de software e o operador e volta ao ecrã do computador. A
corrente eléctrica é o mesmo do que as palavras mas num outro suporte, estas aliás
inacessíveis sem os ‘transformadores’, telefone, teclado e ecrã. Ora, no que
diz respeito ao nosso cérebro, os transformadores para os outros são os ouvidos
e a fonação, os quais para cada um de nós não são necessários: sabemos o que
pensamos nas nossas mentes ao mesmo tempo em que o pensamos, pensar é ser-se
auto-afectado pelo que se pensa (grande liberdade nossa, já que, sendo ‘mente’,
podemos mentir aos outros, só nós é que sabemos), tal e qual como se é
auto-afectado pelo que se diz a outrem. Ora, a noção de hetero-afectação nos
olhos, ouvidos, pele, etc., que se torna auto-afectação (vemos e ouvimos o
outro que nos fala), implica que a relação entre ambas não se perca quando
‘pensamos’ mentalmente no que vimos, ouvimos, sentimos na pele (é nestes órgãos
sensoriais que há ‘imagens’, sons, sensações, segundo a minha interpretação da
p. 191 de A. D., como há aliás também palavras abstractas, frases lidas ou
ouvidas, o ouvir-se dizer, o saber-se a fazer). É a condição necessária para
que os ‘conteúdos’ da consciência, as ‘imagens’ de A. D., a outra face da
electro-química, sejam pensamento do mundo, a partir do que se aprendeu, é esta
a condição para se evitar o dualismo mente / mundo, desiderato essencial da
fenomenologia desde Husserl, para se ter consciência das próprias coisas (e não de ‘representações’, como
se diz habitualmente). Resumindo e concluindo, o neuronal é o ‘cabo químico
eléctrico’ entre órgãos periféricos e órgãos de mobilidade com actividade
variada segundo os usos sociais, cabo-rede bem mais complexo do que o hardware
dos computadores, já que é software que se grafa para se tornar parte do hardware.
25. O que há de
deslumbrante na descrição de A. D., é permitir perceber algo do funcionamento
extremamente complexo desta subjectividade neuronal no mundo e da sua reserva
mental, inacessível a estranhos, ainda que amantes. Sem dúvida que o filósofo
fica despojado de parte da sua capacidade de falar disto, já que não é
neurólogo, mas eu encontrei aqui uma nova e fascinante resposta a uma das mais
velhas questões da filosofia: quem somos nós? Bem haja, Damásio!
Conclusão fenomenológica:
compreensão e linguagem relevam de evoluções diferentes
26.
A boca é o grande órgão de preensão de presas, como é claramente
visível nos peixes e nos répteis, nos seus ataques sobre elas. Muitas espécies
são capazes de estratégias que implicam reter a fome para esperar e só atacar
no momento propício: digamos que são capazes de com-preensão, de juntar (com-) gestos e momentos em vista da
actividade de -preensão. Mas todos são lançados para as suas presas por pulsões hormonais, afectados pelo seu mundo (também pelo
medo de serem caçados, busca de parceiros, etc.). Eis o que nos permite
alçarmo-nos ao Ser e Tempo de Heidegger que caracteriza os humanos como seres no
mundo por uma
tripla dimensão existenciária: 1) o estar situado, projectado no mundo (Befindlichkeit), 2) a compreensão e 3) o
discurso que interpreta 1) e 2). Se dissermos que 1) corresponde à
hetero-afectação emocional, percebe-se que ela e a compreensão, manifestada
esta no saber-fazer dos usos tribais, representam nos humanos a herança
filogenética de mamíferos primatas, a que corresponderá um grande eixo cerebral ligando os periféricos órgãos
de visão às igualmente periféricas mãos, libertadas da marcha para manipularem.
Quanto ao discurso, ele herda de outra linha filogenética, linguística esta,
independente da
primeira (Vygotsky) já que
variável com os povos: ela grafa-se por regra no hemisfério esquerdo apenas
(áreas de Broca e Wernicke), correspondendo ao eixo cerebral que liga os
ouvidos à fonação. Ou seja, o cérebro dos mamíferos (e portanto o dos
humanos) não foi inventado para pensar, mas para com-preender
certas actividades de caça e de defesa, sós ou colectivamente. Mas se nos bebés (área de
investigação do psicólogo Vygotsky) estes dois eixos começam a estruturar-se no
cérebro com autonomia relativa (ver e mexer antes de falar), em breve a
preponderância da linguagem no aprender dos usos faz o verbal predominar na
compreensão, o que não deixa de dificultar as análises neurológicas, já que
chamamos ‘pensar’ ao conjunto de (2) e (3), compreensão discursiva, a que O erro de Descartes já acrescentara a emoção (1).
27.
Como joga este ganhar de preponderância? Com a língua, recebemos as palavras e
os saberes dos outros, recebemos esta possibilidade inaudita de tornar
‘presentes’ coisas que estão fora da vista, de contar histórias do passado ou projectar actividades
para o futuro. Ora, à medida que o Eu vai falando, vai encontrando nessa
memória recebida do seu mundo um verdadeiro repositório de saber socialmente
acumulado que lhe alçará a inteligência duma forma muito mais acelerada do que
se o seu cérebro tivesse que descobrir tudo sozinho, tivesse que construir
sozinho o Eu.
28.
O título inglês do livro, Self comes to mind, prefere ‘mente’ onde o título
português prefere ‘consciência’. Se os dois termos designam o mesmo, pode ser
preferível guardar ‘consciência’ em vez de ‘mente’. Este termo é facilmente
oponível a cérebro como alma a corpo, dualismo a que obviamente A. D. procura
escapar, e creio que consegue, a ‘mente’ presta-se a ser ‘outra coisa’ além do
cérebro. Enquanto que o outro termo, que conota hoje a consciência de si, o saber (scire) con-sigo,
diz o ‘verbo’ dos neurónios, a função deles, o seu saber a respeito de si e
(sobretudo) do mundo, tal como quando se diz ‘vejo esta casa’, ‘ouço esta
canção’, ‘sinto a tua mão’, tudo formas de saber. ‘Consciência’ diz portanto
tanto a passividade do ‘eu’ face ao mundo como a actividade do ‘eu’ que sabe, e diz ainda o
que, de si e do mundo, só ele sabe; o ‘con-’ dirá a indissociabilidade do passivo
e do activo neste ‘saber’. Derrida, num livro em que lê Husserl, diz que “a voz
é a consciência”
(1967b, p. 89), que esta é o ser-se auto-afectado pela sua voz, e mais adiante
que “o ouvir-se falar [ou seja a consciência] não é a interioridade dum dentro
fechado sobre si, é a abertura irredutível [do fora] no dentro, o olho e o
mundo na palavra (parole)” (idem, p. 96).
29. O que permite
uma última consideração sobre o ‘sujeito do pensamento’ : entre cérebro, mente,
consciência e eu, quem pensa? Ninguém diz ‘o meu cérebro pensa que...’, dizemos
‘eu penso que...’, ou ‘Fulano pensa que...’. Quando usamos o plural, dizendo
‘pensamos que...’, referimo-nos a um grupo, um ‘nós’ em redor do ‘eu’ que fala.
Mas como o pensamento ou a fala são sempre, em certo sentido, uma maneira de
tomar distância em relação aos outros, o ‘nós’ raramente dirá a verdade da
aprendizagem, a saber, que os outros, pois que deles aprendemos, ‘pensam’
também no que ‘eu penso’. Haveria nesta omissão um outro “erro de Descartes”,
mais do que ‘penso, logo existo’ – fórmula certa enquanto consciência do
pensante enquanto tal, em sua mente a que só ele tem acesso (como estou feliz
por essa afirmação repetida de Damásio) –, haveria porventura que dizer
qualquer coisa como ‘penso, logo sou da minha tribo que me deu o pensar’. Seria
essa a afirmação da criança que começa a aprender a falar, mas é justamente
esta afirmação que se torna ‘inconsciente’, recoberta pelas aprendizagens posteriores,
em que o ‘Eu’ será por vezes levado a uma certa rebeldia contra a lei da sua
tribo (como Freud nos ensinou). Foi assim a rebeldia de Descartes, ela espelha
o forte acento individualista da civilização europeia (ignorado das grandes
civilizações asiáticas), cunhado pela alma que o cristianismo herdou de Platão.
É desta rebeldia que Damásio, honra lhe seja, fez a teoria neuronal, desta
‘verdade de Descartes’ que Heidegger questionou. Indivíduo e sociedade não se
opõem, Descartes e Heidegger são heranças a acolher em conjunto.
CHANGEUX, Jean-Pierre, L'homme neuronal, Paris,
Fayard, 1983
DAMÁSIO, António, L'erreur de Descartes, La raison des émotions, Paris, Odile
Jacob, 1995
LEROY-GOURHAN, André, O Gesto e a Palavra. 1 - Técnica e linguagem, Lisboa, ed.
70, [1964]
JOUVET, Michel, Le sommeil et le rêve, Paris, Odile Jacob, 1992