1. É o que explica o texto do Público de 2 de
Abril, “Trinta e nove anos da Constituição de 1976: entre a tradição socialista e a deriva liberal”, assinado por Francisco Alves Rito, mestre em Direito Constitucional
(UL). Pela primeira vez vejo alguém abordar uma questão que me preocupa há bastante tempo: a do controle
do capital electrónico sem pátria por via politica, pelos Estados. Esta crise
desmedida que, vinda da banca dos Estados Unidos, caiu sobre a Europa e
condenou ao empobrecimento acelerado, sob o nome de austeridade (palavra de que
gosto) os países que andavam a querer crescer à custa do crédito, condenação
essa feita em nome das dívidas a capitais preguiçosos que andam à caça de
presas incautas, como os vampiros do Zeca Afonso, mas não castigam os ‘incautos’,
antes o povo miúdo, como de costume.
2. Primeira
citação: “no texto original da Constituição de 1976
[...] é afirmada ‘a decisão do povo português de defender a independência
nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os
princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de direito
democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da
vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre,
mais justo e mais fraterno’ ”. Segunda: “a crise económica e financeira, que
ainda estamos a viver, constitui um ataque sem precedentes à legitimidade
material do nosso direito constitucional, colocando em xeque a sua autoridade
moral (como a define Luís Pedro Pereira Coutinho)”, jovem professor de Direito
da U. Lisboa. A primeira permite-lhe comentar como a direita vem pretendendo
rever a Constituição em termos liberais quando a crise actual mostra que, pelo
contrário, a revisão deverá ser feita em ordem ao social; ao que eu
acrescentaria uma observação: ‘sociedade socialista’ não é hoje mais do que
‘sociedade social democrata’, isto é, dotada dum sólido Estado social que
proteja os cidadãos mais vulneráveis, justamente os que foram vítimas da austeridade
empobrecedora de quem já era bastante pobre. A segunda citação põe a questão de
fundo, a da defesa, face aos ataques financeiros “sem precedentes”, vinda da
“autoridade moral” da Constituição, que ainda de alguma coisa nos valeu, como o
autor refere, mas, terceira citação: “a verdade é que, na vastidão dos seus 32
mil vocábulos, a CRP não encontrou respostas para a generalidade dos
problemas supervenientes, suscitados por uma nova realidade político-económica
ultraliberalizada pela financeirização extrema da economia; não assegurou o
primado da política sobre a economia [artigo 80.º alínea a)], princípio basilar
que deveria ter a força jurídica das normas preceptivas, de aplicabilidade
directa e eficácia imediata, e, com esta fraqueza, meteu o lobo de Wall Street
dentro do galinheiro dos direitos fundamentais, tanto dos sociais como dos de
liberdade”.
3. Quarta citação. “Ao demitir-se de ter mão na
economia, [...] o direito constitucional — o nosso, assim como o do mundo dito
"ocidental", em geral — perdeu a guerra às externalidades,
designadamente o combate ao desemprego e a batalha pela afirmação plena e
universal da dignidade da pessoa humana. Chegámos ao ponto de, perante um
desemprego real da ordem dos 30%, não percebermos que o problema, embora
mascarado pela crise, é estrutural e não meramente conjuntural (eu subl). As taxas de desemprego socialmente aceitáveis e economicamente
suportáveis são coisa do passado, mas entretanto continuamos a procurar mecanismos
para aumentar o horário de trabalho e o período de vida activa, não querendo
ver que a solução necessária e adequada é outra, que passa pela valorização do
trabalho e pela sua justa repartição como factor principal, nos nossos dias, da
redistribuição da riqueza”. Foi aqui que rejubilei!
4. Se, por um lado, pensarmos que o Direito
foi, durante os tempos da consolidação da revolução industrial, a disciplina
científica capaz de se focar sobre a globalidade de cada sociedade moderna e
que as constituições exibem como ocupou esse lugar e, por outro, que a Economia
veio substituí-lo como o discurso global que hoje ela é de facto, a
globalização dando-lhe uma eficácia de ‘números científicos’ que a faz
intimidar qualquer outro discurso, desvalorizado enquanto ‘moral’ ou
‘humanista’, percebe-se que há um confronto entre o global das economias e o
local de cada Estado e sua população e constituição, que faz destes parte fraca, complexa em suas regras e conflitos, face
àquela, aos seus números e à rapidez electrónica com que eles se movem
eficazmente. Ora, a economia dependendo muito do sistema bancário e este duma
dimensão de ‘confiança’ (‘crédito’ implica ‘crença’) que as crises põem à prova
de maneira vertiginosa e irrecuperável (como mostra o triste caso do BES),
parece incapaz, enquanto ciência social do mercado, de conseguir que os
mercados nacionais de compra e venda de mercadorias sejam relativamente imunes
às especulações financeiras vadias.
5. O que Francisco Alves Rito explicitou foi
como o papel do direito constitucional continua a ser fundamental e que para
isso tem que ser reformulado em ordem à mudança estrutural que provém da
tecnologia e que provavelmente vai implicar menos tempo de trabalho e mais
tempo de actividades livres, quiçá solidárias. Ora, isso só será possível com a
revisão dos critérios da distribuição da riqueza: sendo esta produzida por
máquinas e outros inventos de ordem científica que são produto da história do
saber humano, este por sua vez relevando da aventura dos sábios europeus, do
‘universal’ e do ‘humanista’, isto é de todos, antes da sua apropriação
empresarial. Ou seja as populações e o seu direito a viver, à habitação na
Terra (Heidegger), têm preponderância sobre os lucros do capital, os quais
aliás também necessitam do poder de compra, dos salários e pensões dessas populações,
como os economistas nos ensinam.
6. Última citação: “é certo que o novo
paradigma constitucional, de efectiva regulação económica, face ao fenómeno da
globalização, depende de uma nova ordem internacional e desde logo europeia,
que passa por uma nova concepção de Estado, assente nas pessoas, que implica
novos modelos de organização do trabalho e de fruição social e cultural do
exponencial aumento da capacidade tecnológica e produtiva, mas não é menos
verdade que apenas o direito constitucionaal comparado é insuficiente para
avaliar da aptidão de qualquer lei fundamental”. Interdisciplinaridade entre
Economia e Direito, portanto. Mas também que as coisas andem já pelos conflitos
e tentativas de solução, de que o caso da Grécia e das instâncias
‘comunitárias’ da Europa é um exemplo que parece mal encaminhado, mas precisará
com certeza duma solução adequada à população grega. Já Mª de Lourdes
Pintasilgo clamava por “um novo paradigma”.
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