Fotão, electrão
e “o
resto da Física” (Feynman)
1. O livro foi traduzido em português há 12
anos mas só dei por ele este verão, numa feira do livro: QED. A
estranha teoria da luz e da matéria [1985], que tem
uma veia pedagógica equivalente às Seis lições de física fundamental, que tanto me encantou. Tratou-se agora de quatro conferências em fim
de vida (estamos no seu centenário, morreu há 30 anos) sobre a QED, a
electrodinâmica quântica, que diz ser a mais bela e correcta teoria de toda a física
(mas é suspeito, é um dos seus criadores). O que ele consegue é dar uma panorâmica que se entende grosso modo da estranha mecânica quântica, que coloca as
partículas nos seus lugares – foi sem dúvida a minha grande surpresa – e permite
uma ideia de conjunto ao leigo verdadeiramente notável. E fez-me outro favor:
colocou essas coisas que explicou em três grandes regiões, a dos electrões (com
a notável junção dos fotões que dá à luz e à óptica um papel primacial
inesperado na lógica da matéria), a do núcleo dos átomos e a da força da
gravidade, o que coincide com a minha proposta de forças atractivas em duplos laços, a saber: a que liga protões e neutrões nos
núcleos dos átomos, a que liga electrões nas moléculas, desde o átomo até aos
sólidos, líquidos e gasosos, a que liga estes graves em astros e os astros
entre si. O livro trata apenas da segunda e brevemente da primeira na última
conferência e da terceira nas duas últimas páginas.
2. Começarei por lembrar rapidamente
a minha proposta para depois poder ver o que lhe sucede face ao que compreendi
da teoria de Feynman. É claro que esta pretensão pode parecer ridícula, mas o
próprio autor lhe abre a porta: “esta estrutura de amplitudes não levanta dúvidas
experimentais: podem ter todas as
preocupações filosóficas que quiserem quanto ao significado das amplitudes (se,
de facto, representarem alguma coisa) mas porque a física é uma ciência
experimental e o quadro teórico
concorda com a experiência, isso é suficientemente bom para nós” (p. 169, subl.
Feynman), diz na abertura do 4º capítulo, “pontas soltas”. Também é suficiente
para mim, que ao fenomenólogo não cientista o laboratório é interdito e só pode
ser aceite, tratando-se apenas de interrogar filosoficamente (com ciências) os significados dos conceitos, vistos de
fora do laboratório.
3. Quando o motivo derridiano de duplo
laço me apareceu como
fenomenológico, isto é, como dando conta dos fenómenos de cinco ciências
principais (e das máquinas), foi a consideração de que, no campo tradicional de
fenómenos de cada uma dessas ciências, fora descoberto no século XX algo de
‘não fenoménico’: se o fenómeno é o que se manifesta, em cada ciência havia
algo de retirado do campo
fenomenal (o núcleo dos átomos, o ADN, o interdito do incesto em Antropologia,
os fonemas ou letras em Linguística e o inconsciente na Psicanálise). Em
Física. a força da gravidade dominava o campo dos astros e dos graves e as
moléculas da Química não foram então tidas em conta (tal como a anatomia em
Biologia), só o foram anos mais tarde com os manuais da minha amiga Carmo
Mateus e da Rosário Martins, mas
protões e neutrões do núcleo são retirados pela força nuclear (forte), quer do alcance da gravidade, quer das
transformações químicas. O que significa que nessa primeira abordagem só havia
o que Feynman excluiu da sua argumentação como sendo “o resto da Física”. O
desenvolvimento das leituras e da escrita multiplicou os duplos laços, o
primeiro consistindo no do átomo, entre o núcleo retirado e os seus electrôes,
um laço relevando da força nuclear e o outro da força electromagnética que liga
os electrões ao núcleo, as duas forças dos físicos que postulei como forças
atractivas à maneira da da
gravidade, sabendo embora que as forças electromagnéticas repelem também
partículas da mesma carga. Mas estas forças electromagnéticas têm um papel
fulcral em Química, o de ligarem electrões de dois ou mais átomos para formarem
moléculas e darem origem a graves com três possibilidades terrestres normais, sólidos, líquidos e gases,
consoante a pressão e a temperatura, e a partir deles a 3ª força dos físicos, a
da gravidade – na minha interpretação limitada justamente às dimensões macroscópicas dos tradicionalmente chamados
‘graves’ –, fabricar os astros[1].
Mas estes duplos laços dos graves e dos astros supõem sempre o da força nuclear
que retém protões e neutrões de transformações químicas e de cederem à
gravidade[2],
assegurando assim a impenetrabilidade da matéria. Se for o caso de as
partículas que se desintegram de protões e neutrões (quarks e companhia) também
forem renitentes à química e à gravidade, teríamos que fotões e electrões
seriam as únicas partículas a lhes cederem, o que me parece adequar-se bem à
teoria de Feynman.
4. O livro é deslumbrante. Para quem
tinha uma ideia vaga da Mecânica quântica e das suas múltiplas e inexplicáveis
partículas ao invés de toda a matéria, Feynman consegue propor um panorama que
cria a sensação de compreensão do conjunto surpreendente, consegue o que um
octogenário não esperava já em sua vida: fosse ou não esse o seu objectivo, arrumou-me
as partículas quânticas nos seus lugares. Do que compreendi e que Feynman nunca
propõe assim: haverá quatro tipo de partículas essenciais na estruturação da
matéria, as que já conhecíamos, fotões e as três dos átomos, o que dá as duas
nucleares inseparáveis, por assim dizer, e o par inesperado fotões / electrões,
que já vinha do efeito fotoeléctrico, um dos quatro famosos textos de Einstein
em 1905, aquele que lhe valeu o Nobel em 1921, mas que aqui revela uma
universalidade insuspeitada (por mim, o par) na estruturação de toda a matéria
além dos núcleos atómicos. Quem diria? A luz e a electricidade, o que há na
nossa experiência de menos material, menos ainda que os gases! Todas as outras
partículas, se bem percebi (haverá uma ou outra excepção?), quarks e companhia,
que tanta confusão fazem ao leigo, resultam da desintegração de protões e neutrões
em condições muito elevadas de pressão e temperatura, que não conhecem os
“átomos mornos” (Prigogine) da Terra. Sem saber a intervenção dessas variadas
partículas filhas das nucleares nas tecnologias que a Mecânica quântica tornou
possível, fico com a sensação de terem sobretudo um interesse especulativo, que
se poderia com propriedade chamar ‘metafísico’ (e não ‘metaphysico’, de
ascendência aristotélica): a busca incessante do ínfimo das coisas.
5. As duas primeiras conferências só
se ocupam de fotões, vidros e espelhos. O determinismo é excluído na base: se a
luz incide perpendicular a um vidro, os fotões atravessam-no mas alguns
reflectem-se: quantos? Só se pode calcular a sua probabilidade, segundo a
espessura do vidro, como as coisas se passam não se sabe. Feynman poupa-nos as
equações e substitui os números complexos (com parcela em i) respectivos por setas que dizem
o percurso do fotão : o quadrado do comprimento da seta é a probabilidade
e a sua direcção o tempo do percurso, com dois sentidos possíveis (fotão que
atravessa o vidro, que reflecte e volta atrás). Estas setas somam-se, multiplicam-se,
contraiem-se e rodam. Estas setas são
“amplitudes de probabilidade de um acontecimento” (p. 68) e dão-nos uma
simulação dos cálculos sobre os percursos dos fotões e mais tarde dos electrões,
cujas amplitudes são também as de se acopularem com um um fotão. A complexidade
das experiências laboratoriais e dos ‘verdadeiros’ cálculos são-nos poupados,
teremos apenas que ‘acreditar’ nas setas e acompanhar com cuidado os vários
casos de percursos que se vão complicando ao longo das conferências. Todo este
jogo de setas é dito ‘teoria’, mas ao aceitarmos o seu pacto que permite
entender o panorama, ao oferecer a nossa credibilidade a Feynman, fica uma
inquietação: trata-se de ‘teoria’ ou de um relatório da experimentação laboratorial
num certo código, metodologicamente muito fecundo?
6. Ora, é nesta inquietação que se
instalam as minhas dúvidas fenomenológicas, ridículas sem dúvida para qualquer
outro leitor feliz do texto. Os duplos laços postulam que as três forças
fundamentais dos físicos (há uma quarta, nuclear fraca, não estrutural) são
todas atractivas, com um efeito de retenção do que elas abarcam. Ora, como já era o caso nas Seis
lições, elas são tratadas como
“interacções” entre partículas, com excepção da força da gravidade. Sejam duas
citações. “Havia o problema do que mantinha os neutrões e os protões juntos
dentro do núcleo. Percebeu-se imediatamente que não poderia ser a troca de
fotões, porque as forças que conservavam o núcleo íntegro eram muito mais fortes”
(p. 177). E 20 páginas à frente, ao terminar do livro: “na matéria [fora dos
núcleos atómicos], quase todas as forças eléctricas são gastas a manter os
electrões próximos do núcleo do seu átomo[3],
criando uma mistura muito equilibrada de cargas positivas e negativas que se
anulam. Mas, no que respeita à gravidade, a única força é a atracção, que se
mantém somando e somando [setas], à medida que vão aparecendo mais átomos, até
que finalmente, quando chegamos às grandes massas pesadas que somos, nós
podemos começar a medir os efeitos da gravidade, nos planetas, em nós, etc.”
(p. 197)[4].
Nestas duas citações trata-se das três forças fundamentais: há “forças que
conservam o núcleo íntegro”, assim como “forças eléctricas gastas a manter os
electrões próximos do núcleo do seu átomo”, “mas no que respeita à gravidade, a
única força é a atracção”, o que implica que não é o caso nas electromagnéticas
do átomo, apesar de “conservarem” os electrões ligados ao núcleo e obviamente
entre si: não se pode dizer que a força predominante é uma força electromagnética
de atracção entre electrões e núcleo? E o mesmo raciocínio valerá para a força
nuclear: manter protões e neutrões juntos não implica uma atracção entre eles?
Porque me interessa este ponto é fácil de perceber: são os duplos laços que o
exigem, e se a exigência fenomenológica deles vem também das outras ciências, é
certo porém que o motivo de força de atracção vem da própria Física, para grande espanto de
Newton que a descobriu, sendo que. “até agora, a gravidade não é compreensível
com base em outros fenómenos” (p. 38)[5].
7. Antes de prosseguir, um esclarecimento
importante sobre o motivo de duplo laço (lien em
francês de Derrida, bind em inglês de Bateson), que
não é nada de fenomenal, verificável experimentalmente, mas um motivo
gramatológico (como trace, diférance ou suplemento), que talvez seja melhor
percebido como dupla ligação: trata-se em fenómenos – sejam físicos,
biológicos, linguísticos ou sociais – do que liga os elementos de que são
compostos, fazendo deles uma unidade com um duplo funcionamento que permite que
esse fenómeno se mova ou seja movido. O exemplo simples dos cilindros do motor
de explosão e do resto do aparelho mostra que se trata de duas ligações entre
peças, sem que o engenheiro mecânico ‘veja’ ou ‘mexa’ nessas ligações que estruturam
o carro que ele constrói. Também na anatomia dum mamífero as duas ligações não
são ‘órgãos’ feitos de células. Acontece todavia que em Física há as três
forças fundamentais e seus campos que permitem detectar as duplas ligações, mas
também essas forças são caso de polémica, desde Newton que não conseguiu
‘imaginar’ (fingo) a força de
atracção que descobriu e calculou.
8. Voltando à segunda citação do § 6,
o percurso de Feynman é o de ir subindo numa escalada de átomos até chegar aos
graves e aos astros que a gravidade afecta, atrai. Nessa subida não conta com
ela, como antes não contou também, com as forças nucleares e electromagnéticas
das duas citações. Já fiz essa critica em relação a átomos de água e a cargas
eléctricas nas Seis lições
(nota 5): tal como aqui as partículas, fotão e electrão, a ‘substância‘ tem o
privilégio sobre as forças e os campos, que não têm praticamente nenhum papel
nas quatro conferências. Ora bem, também se poderia pensar em fazer o percurso
inverso, em vez de partir do ínfimo descoberto recentemente, as partículas,
para a terra e os astros, seguindo o percurso histórico das descobertas
físicas, da terra para o ínfimo, este escrutinado nos laboratórios. É sem
dúvida o laboratorial que comanda a escalada das escalas, já Newton estudou o
movimento a partir da força mecânica sobre a ‘substância’ experimentada,
provavelmente a sua dificuldade em relação à atracção lhe venha da visão de
força da sua mecânica. Se partisse da Terra como um astro, o que sucederia?
Teria que colocar que tudo o que nela há de graves é reunido pela sua força de
gravidade. Continuaria a não saber imaginar esta, mas saberia de antemão que
ela não era como as outras forças mecânicas, guinchos ou alavancas, que dela
dependem como se depende dum ‘princípio’, dum laço ou ligação que permite
movimentos no seu seio. Ora, o que a teoria quântica permite é justamente ter
acesso ao outro laço ou ligação, aquela que garante a inércia que torna
possível que os graves se deixem mover.
9. Compreende-se que eu tenha ficado
tão contente por Feyman me deixar a gravidade e o núcleo do átomo fora da sua
bela demonstração, como a confirmação que seria possível esperar dum físico da
minha proposta dos duplos laços. Quanto ao núcleo e à desintegração de protões e neutrões em quarks, gluões
e companhia, toda essa cacafonia quântica que só embaraçava o leigo, fica-se a
saber que ela corresponde a estádios explosivos de desintegração de protões e
neutrões que sõ se dão a conhecer a altíssimas temperaturas, que não afectam a
nossa visão habitual do mundo. Enquanto que fotões juntam-se a electrões numa
dança de acopulamentos (termo de conotação erótica!) que, juntamente com os
núcleos atómicos torna possível toda a Química, cujo papel é justamente o de produzir graves que oferece à força da gravidade como fruto de
cópulas sem fim. O papel da luz,
dos fotões, nesta fábrica química da matéria fascinou-me[6],
eu nunca tinha dado importância à óptica! Ora, fotões e electrões são as únicas
partículas simples, que não se desintegram (será por isso que podem copular).
Pegar pelas duas pontas – de baixo para cima para quem vem do laboratório, de
cima para baixo para quem vem da fenomenologia terrestre e considera a ‘unidade’
da Terra como duradoura – é o que fazem os duplos laços. Eles são extra-laboratoriais,
como aliás as estranhas forças de atracção. O que uns e outras permitem
entender: o laço da Terra joga com os de cada grave que ele conserva nela e
joga duplamente com os laços do Sol e dos outros planetas do sistema, que assim
é conservado desde que há observações astronómicas, apesar da expansão do
universo que hoje se sabe; cada grave tem laço que o atrai para a Terra
duplamente com o que liga as suas moléculas como grave; cada molécula liga os
seus átomos entre si e liga-se às outras moléculas do seu grave; cada átomo,
por sua vez é ligado aos outros com quem faz molécula e ao seu núcleo.
Finalmente, impenetrável quimicamente e sem poderem ser atraídas as suas
partículas para fora do núcleo pela gravidade, parecerá que o laço que conserva
este na sua impenetrabilidade se fará entre a força nuclear e a série dos
outros laços que vai até aos
graves que a Terra guarda.
A produção celular de entropia segundo Prigogine
10. “A mecânica quântica explica
[...] a razão pela qual um átomo de oxigénio combina com dois átomos de
hidrogénio para formar água, etc. Portanto, a mecânica quântica forneceu a
teoria que está por detrás da química. Logo, a química fundamental é, de facto,
física” (pp. 39-40) e mais adiante: “os biólogos tentam interpretar o mais que
podem da vida usando a química, mas a teoria por detrás da química é a
electrodinâmica quântica” (p. 42), donde que também a biologia fundamental será
igualmente física, e Feynman chega a dizê-lo algures, identificando bioquímica
e biologia, mas aqui mostra a sua liberdade intelectual ao moderar essa
conclusão pela atribuição aos biólogos de “tentarem interpretar o mais que
podem da vida”, deixando assim o espaço para o que me vai interessar nesta
segunda parte: o que falta em Feynman, além desta questão dos campos e da
irredutibilidade dos laboratórios (Newton errado, no mesmo texto da nota 5),
pode ser esclarecido por esta comparação entre Física e Biologia. Acontece que
Prigogine, um químico que também foi Nobel como Feynman, se interessou pela
bioquímica do metabolismo celular e induziu dele, sem fazer intervir categorias
biológicas, uma categoria física nova por inversão doutra clássica: a de produção
de entropia (positiva), em contraste
com a entropia (negativa) como degradação energética da Termodinâmica do século
XIX (Clausius). Essa nova categoria permitiu-lhe compreender o que chamou estruturas
dissipativas como explicação do
conjunto de reacções químicas do metabolismo da célula: trata-se duma
estabilidade (estrutural) que tem uma base instável (dissipativa), supondo uma
alimentação exterior ao sistema. Foi algo de fulcral para a proposta dos duplos
laços da Filosofia com
Ciências[7].
Ora, é relativamente claro que todos os fenómenos da vida, implicando doenças e
mortalidade, como os fenómenos sociais implicando crises e transições de
gerações, são fenómenos instáveis estruturalmente, relevam de estruturas
dissipativas, o que me permitiu generalizar a categoria prigoginiana, inclusive
ao campo da Física. O que aliás, é compatível com a perspectiva de
probabilidades e de acontecimentos de que Feynman se reclama como o que se pode
saber dos “percursos de fotões e electrões”.
11. O que há então que tentar fazer é
confrontar átomos e moléculas com células como estruturas dissipativas. O que
há de acontecimentos, acopulamentos, entre fotões e electrões em ordem a
reacções químicas, dar-se-á sempre em condições de pressão e temperatura, por
certo, mas também de proximidade propícia entre moléculas que venham a dar
origem a novas moléculas. É provável que esta proximidade entre moléculas seja
habitualmente com um dos parceiros em estado líquido ou gasoso; de qualquer
forma, a gravidade terá um papel indirecto na propiciação dessa proximidade. Se
for assim, há sem dúvida limitações mais ou menos fortes das condições para
tais reacções químicas. O que é que permite que estas se dêem? Que os átomos
que trocam electrões – um de oxigénio e dois de hidrogénio, por exemplo, para
se obter uma molécula de água que permanecerá seja como gelo, com água ou como vapor
– garantam que permanecem átomos de oxigénio e de hidrogénio na nova molécula
de água, o que dependerá essencialmente dos respectivos núcleos (que, no caso
do oxigénio, mantenham também os electrões que não se trocam). O papel do
núcleo atómico, se se permite ao leigo, será então duplo: por um lado,
resistir, guardar a impenetrabilidade do átomo, por outro, deixá-lo oferecer-se
à troca química de electrões que produz a nova molécula. Como, tratando-se de
graves com muitos milhões de moléculas, todos os átomos jogam por igual nessa
reacção, e a força da gravidade intervém na propiciação da proximidade, parece
claro que as três forças, os três laços, jogam um papel aqui, e não apenas
electrões e fotões. Mais: parece-me claro também – mas quem sou eu? – que a
força da gravidade terrestre, a força do conjunto de todos os graves que é a
Terra, tem como correlato a força nuclear de cada átomo que garante a
impenetrabilidade de todos e cada um dos átomos. Porque o jogo de acopulamentos
entre fotões e electrões, sujeito a probabilidades é certo, não se faz motu
propriu, é isso a inércia, o não
ter movimento próprio, ser movido, deixar-se mover por atracção
electromagnética, sem se mover por si. O que daria que estes fenómenos implicam
não apenas os laços locais, das moléculas que trocam e das novas que resultam,
mas outros laços de graves da Terra, os que condicionam a pressão e temperatura
na zona dessa troca química (como aliás se está vendo na crise das alterações
climáticas, com efeitos múltiplos de razões diversas). Temos então que ver como
se passam as coisas nos vivos que se movem por si próprios.
12. Se se olha para a célula,
damo-nos conta dum metabolismo incessante de reacções químicas múltiplas e
jogando com moléculas muito mais complexas do que as dos graves minerais
inertes. A célula viva está sempre a mexer, mas para isso tem que ser
alimentada de fora, pelo sangue nos vertebrados, o que permite diagnosticar a
sua dupla ligação: o laço interno à membrana celular que engloba o metabolismo
e o laço necessário ao sangue como condição sine qua non desse mesmo metabolismo. Parece óbvio que seja a
maior complexidade das moléculas orgânicas – de átomos de carbono, oxigénio,
azoto, hidrogénio, fósforo, por vezes enxofre – que, razão de ser da diferença
para com os graves inertes, seja também a da complexidade do metabolismo como
actividade própria da célula. Evoquemos brevemente como é que isto começou.
“Teve início, conta o bioquímico italiano Marcello Barbieri (Teoria
semântica da evolução) em 1953 um
verdadeiro novo campo de investigações quando Stanley Miller submeteu uma
mistura de metano, amoníaco, água e hidrogénio a descargas eléctricas durante
uma semana e obteve aminoácidos” (p. 95). O autor pôde postular um jogo de
moléculas se agregando e se desfazendo que terá chegado um bilião de anos mais
tarde às primeiras células (3 biliões de anos antes da explosão de fósseis de
organismos no Câmbrico, há 600 milhões de anos). As primeiras moléculas tinham
propriedades que as tornavam capazes de participar na estrutura das futuras
células, tal como pedrinhas, penas e lama servem para se fazerem ninhos de
aves, só que aqui os ninhos serão auto-construídos e os materiais estão dispersos.
Se bem percebi a demonstração razoavelmente complicada para o leigo de Barbieri,
mais do que no ADN, é no que ele chama o ribótipo que está o segredo da
actividade celular: são ribossomas que concentram “muitos protagonistas da síntese proteica, aminoácidos,
mensageiros, transferências e enzimas activantes, que se encontram difundidas
livremente no citoplasma” (pp. 79-80). Donde a tese de Barbieri de que os
antepassados dos ribossomas são os verdadeiros antepassados da célula (como
agregado de moléculas que se reproduz). É esta conjunção que permite a fabricar
as proteínas que são necessárias à própria estrutura da célula, onde reside o
segredo da vida. Esta síntese das proteínas por tradução do ARN mensageiro faz-se sobre os
aminoácidos que foram extraídos dos alimentos no intestino delgado e passados
ao sangue, chegando à célula por assim dizer como ‘matéria prima’ a ser sintetizada
segundo a mesma ordem das moléculas do mensageiro. Ora, esta ordem de
composição da proteína é a necessária como molécula estrutural da célula,
segundo o ‘plano’ guardado no gene do ADN e previamente transcrito no
mensageiro, o que supõe que esse gene seja “expresso” por um mecanismo adequado,
de forma a corresponder à proteína desejada para a estrutura da célula, seja em
reparação duma deficiente, seja em ordem ao crescimento da célula para futura
reprodução em duas similares (conjecturo eu). Mas o que me parece decisivo é o
carácter construído destas
moléculas das células: donde vem a necessidade dessa construção? Julgo que só
haverá uma razão: essas moléculas complexas demais não existiam, tiveram que ser
inventadas, digamos fabricadas artificialmente, por ARNs (faz parte das suas propriedades
moleculares) nesses proto-ribossomas como condição das futuras células. Estas
moléculas ‘artificiais’, supondo sem dúvida ligações por forças
electromagnéticas adequadas, terão uma espécie de fragilidade estrutural: construídas que foram por não as haver prontas a
usar nos mares e tempos da evolução pré-celular de invenção destes mecanismos
até se garantir a reprodução, como definição de célula: como tendo movimento
próprio de se reproduzir se for alimentada por aminoácidos. Note-se aliás, contra o determinismo genético
que grassou nos primeiros tempos da biologia molecular, como este processo
bioquímico joga segundo o aleatório, tanto o das carências a colmatar – que sínteses a fazer, portanto que
genes a expressar – como o das ‘matérias primas’ que o sangue traz, segundo o
aleatório das dietas alimentares (regionais, ricos e pobres), a que a medicina
actual acrescenta moléculas fabricadas farmaceuticamente.
13. Ora bem, pode-se pensar que serão estes
mecanismos produtores do que chamei ‘moléculasartificiais’ duma parte pelo
menos das moléculas da célula que correspondem à produção entrópica de Prigogine, que em A nova aliança justificava, limitando-se à bioquímica, com
reacções químicas não-lineares, auto-catálise, auto-inibição e catálise cruzada
(p. 223), sem nunca referir categorias propriamente biológicas. A entropia
positiva seria a diferença entre este conjunto de moléculas agindo no
metabolismo duma célula e o amontoado delas mais os aminoácidos de matéria
prima que estão a chegar, entre a bioquímica da célula viva e a bioquímica de
moléculas duma célula sem célula[8]. Vê-se claramente aqui porventura a diferença dos
papeis entre os vários tipos do
ribótipo (ARNs) no metabolismo e ADN retirado no núcleo: aquele dissipa, mas
para que essa sua capacidade não vá contra os interesses da célula, o ADN
mantém a estrutura, com um papel de ‘arquivo’, dando o modelo ao ARN mensageiro[9],
que depois da síntese se degradará, inútil. O duplo laço da célula será
constituído pelo que Barbieri chama ribótipo, jogando no aleatório da
bioquímica do citoplasma, ligado ao núcleo dos genes, limitados à repetição que
garante a identidade do organismo que se reproduz.
14. Feynman não terá dado por
Prigogine, que julgo aliás ter sido malvisto pelos físicos e químicos
estabelecidos[10]; fica por
saber se a teoria da electrodinâmica tem maneira de avaliar estes processos
bioquímicos e o seu carácter entrópico ou se não haverá uma barreira intransponível,
aquela que faz com que, nas questões fascinantes e complexas de articulação
entre ciências da vida e das sociedades humanas, não é nunca necessário contar
com a Física: as leis desta valem para toda a diversidade de organismos e de
estruturas. Nestas tão variadas ciências, os duplos laços vão ganhando novos
patamares – evolução e história – em que um duplo laço anterior se torna laço
motor do duplo laço posterior, por vezes articulando ciências diferentes, por
exemplo entre Biologia e Antropologia pela relação entre sinapses e usos
aprendidos (Kandel deu a pista) ou Linguística (a fala como uso). Ao contrário
da Física, se for verdade o que propus acima (final § 11), da relação da
gravidade com todos os núcleos atómicos, o que está de acordo com a inércia; nas ciências que têm a ver com vivos, estes
patamares que se acrescentam, dos unicelulares aos organismos, plantas e
animais, invertebrados e vertebrados, em ambos havendo como transição entre
anatomias de justaposição de órgãos e anatomias com um sistema complexo de
circulação de sangue a estranha invenção das metamorfoses. Também das palavras
e frases curtas aos discursos e textos, simples e complexos, aos corpus destes
e às escolas. Das tribos as sociedades agrícolas de casas formando reinos ou
impérios, com divisão do trabalho entre artesãos, guerreiros, escribas,
sacerdotes e escritores pensadores, filósofos e vinte séculos depois
laboratórios de cientistas além da geometria e da astronomia, e depois máquinas
e electricidade que vieram a permitir sociedades de instituições de emprego e
de famílias, de escola universal e de médias generalizados, e por aí fora, com
instabilidades sempre crescentes, guerras, fomes, epidemias, crises de vários
géneros..Trata-se de consequências das mobilidades e da sua alimentação.
15. Pode ter sido complicado demais,
mas para mim houve um eureka,
entre o deslumbramento da electrodinâmica de Feynman e o que ele me permitiu,
revisitar Prigogine e Barbieri, precisar esta diferença espantosa entre os
inertes e os vivos, que parece estar-se atenuando: as máquinas – o automóvel
que me serve de modelo de duplo laço, um inerte que, alimentado, se move – e a
electricidade que, além de se transformar de/em outras formas de energia
(mecânica, térmica, luminosa...), e de correndo, transportá-la a distância com alto rendimento, o
que transformou completamente a paisagem urbana da civilização do século XX, se
revelou produtora informática de movimentos humanos, tanto gestos como
cálculos. O que se faz parte da
maior instabilidade e portanto da intensificação possível de crises, também
será remédio útil nas tentativas de as superar. Entre os apocalípticos que
temem o fim do mundo e os optimistas das novas tecnologias que antevêem o
futuro radioso sem uma nuvem, há lugar para esperança, apesar dos populismos
trumposos.
[1] A minha
dúvida, que para aqui não interessa, é sobre a explicação habitual da génese das estrelas.
[2] Nunca li que protões ou
neutrões interviessem nas trnaformações químicas, como fazem os
electrões ; quanto à gravidade, quando se desintegra o núcleo atómico os
protões e os neutrões partem como partículas loucas, não se deixam atraír pela
gravidade terrestre.
[4] Tinha acabado de dizer
que “a influência gravitacional entre os objectos
[as partículas] é extremamente pequena”
(p. 196, sublinhando) pode-se pois considerar desprezível; desconsidera em
seguida as teorias doutros físicos de ‘gravitões’, partículas ligadas à gravidade,
o que conforte a minha hipótese no § 3.
[6] A luz é privilegiada
pelas duas fontes do saber ocidental : é a primeira criação, antes do firmamento,
do sol e da terra, no lindíssimo poema com que abre a Bíblia hebraica ; o
motivo filosófico de eidos,
o que se vê dum fenómeno, do verbo idein (ver), é feito por Platão Forma ideal eterna. Mas
nestas duas fontes, é a capacidade humana de ver assim como a possibilidade das
coisas serem vistas que recebem o privilégio da luz. Feynman abre à luz uma
vertente criadora de tudo que ultrapassa incrivelmente a criação de órgãos de
visão nos organismos animais, o que se deu nos últimos 600 milhões de anos, já o universo tinha alguns
13 biliões. Mas a electricidade também, e essa só a conhecemos há uns 200
anos ! Incrívelmente, Feynman nem se deu conta desta consequência tão estranha
da “teoria da luz e
da materia”.
[7] Durante os primeiros
anos, o texto da proposta chamava-se Le Jeu des Sciences avec Heidegger, Prigogine et Derrida, como aliás atesta o lugar ocupado pelo
químico belga entre os dois filósofos na capítulo 2, que apresnta o quadro
fenomenológico do texto.
[8] Logo após a
morte, suponhamos, quando começa a entropia de Clausius. Seja dito de passagem que quando Prigogien passou em
Lisboa, em novembro de 1988, recusou esta relação entre as duas entropias, a
morte estava fora da sua visão das coisas, como quem opunha as duas entropias, provavelmente por não
ligar a bioquímica à biologia.
[9] Gostaria de
saber qual a diferença molecular dum átomo de oxigénio entre estas duas
moléculas, que a designação acusa no ‘desoxi’ do ADN
[10] A sua
‘filosofia’ do “fim das certezas” não o terá ajudado, a sua parceira química e
filósofa Isabelle Stengers já não co-assinou este seu último livro.