1.
A maior parte dos físicos parece acreditar que a Física de Newton está ultrapassada.
Por exemplo, um livro de divulgação da Mecânica quântica de 1985, de Sven
Ortoli e Jean-Pierre Pharabod, Le Cantique des quantiques, Le monde
existe-t-il?, La Découverte,
mostra bem no sub-título o que chamaria a ‘cegueira dos físicos’ modernos, e
não creio exagerar por
generalização indevida, já que presumo que é algo que afecta a dimensão filosófica
do paradigma dominante. O que pode significar a colocação desta tão estranha
questão – “o mundo existe?” – ainda que a resposta fosse positiva? Já li o livro há muito tempo, na altura em que
saiu, creio, ainda longe das questões que se me puseram uma quinzena de anos
depois, ao redigir o capítulo sobre a Física Química do meu Le Jeu des
Sciences avec Heidegger et Derrida. Em primeiro lugar, significa que a abordagem do
quântico por estes dois físicos implica o extremar do que muitos outros têm
pretendido: a total desconsideração da Física de Newton, que é aqui a do ‘mundo’
que ela descreveu. Como se o princípio da incerteza de Heisenberg, que torna
impossível a simultaneidade da medição da posição e da velocidade duma
partícula, fosse deslocado para o que fica aquém da abordagem desse... como lhe
chamar? ‘mundo’ quântico, ‘domínio’ quântico? onde não há nenhuma ordem não há
mundo, onde não se consegue sequer medir (o que foi sempre a chave do labor da
Física), não há domínio, controle. Isto é, é o próprio princípio da incerteza
que obrigaria a derivar a insólita questão para o ‘canto’ dos quânticos, que
tem mais aliás de ‘cântico’ do que de qualquer ‘canto’ duma das salas dum
laboratório. E é onde creio que reside a dificuldade, o lugar do laboratório;
todos os físicos sabem que o laboratório é essencial: os resultados do que no
seu labor se mede vão preencher as variáveis da equação em estudo. Mas quando
se passa à reflexão teórica, o laboratório parece esquecido, só se têm em conta
as equações e as definições dos conceitos. É a diferença dos laboratórios, das
escalas dos aparelhos de medição que torna impossível comparar as três físicas:
a das velocidades perto da da luz, a da dimensão espacial das partículas e a do
espaço e tempo dos graves terrestres. Como se sabe, quando nas equações das
duas primeiras as dimensões que lhe são específicas se tornam velocidades
terrestres e extensões do sistema métrico, chega-se a equações newtonianas. Só
esquecendo as diferenças de escala laboratorial é possível a uma ou duas das
físicas mais novas decidirem, a partir do respectivo laboratório, do carácter
ultrapassado da física mais velha, de cujo laboratório elas não sabem nada (os
físicos sabem, claro, mas não sabem do esquecimento).
2. Ora, a
civilização actual é impensável – não na sua existência, mas na sua ordenação –
sem as milhentas técnicas inventadas segundo a Física de Newton em laboratórios
cujas medições fornecem resultados que continuam a verificar cientificamente as variáveis das equações que se
foram construindo a partir do paradigma newtoniano: é o que valida essa Física
como ciência, com resultados verdadeiros sem incertezas heiseberguianas, tal
verificação continua a fazer-se quotidianamente. O que significa que a segunda
hipótese de leitura, retórica é claro, da insólita questão – “o mundo existe?” – é a intentada: a
certeza (incerta?) dos dois físicos sobre a Mecânica quântica seria mais forte do que sobre o
Mundo que lhe deu origem, em que eles foram paridos, cresceram e se alimentam
todos os dias. A
questão que me faz voltar a um texto anterior num texto (neste
blogue em 18/10/2017, “o que é a energia, a força atractiva e a entropia?”), é a da barreira que há entre as duas Físicas, a de Newton e a de Heisenberg.
3. Coloquei
essa barrreira assim. Sabemos como é que, partindo da matéria de que os engenheiros
newtonianos se ocupam, como qualquer um de nós quotidianamente, feita de graves
compostos de átomos e moléculas, um pedaço de urânio por exemplo, se passa para
as partículas quânticas: pela cisão e explosão dos átomos. E inversamente, como
é que das partículas se pode voltar aos átomos iniciais? nunca ouvi dizer nem
li que se o tenha conseguido experimentalmente, nem sequer que tenha sido
tentado. O que é que impede de se tentar? Presumo que não se pense que haja aí
um problema, que haja uma barreira entre as duas Físicas, tal como as
velocidades próximas da da luz supõem uma barreira entre Newton e Einstein
(provavelmente aliás esta mesma, já que os fotões também são partículas
resultantes de explosões de electrões solares). Como acabei o curso de
engenharia civil há mais de 60 anos e nunca mais acompanhei o que pode ter continuado
a haver de descobertas teóricas na Física clássica (tive o privilégio de ter
sido aluno de Rómulo de Carvalho no liceu Pedro Nunes) que alimente as invenções
tecnológicas, não posso senão conjecturar que o que tenha havido de descobertas
nesse campo seja considerado ‘menor’ em comparação com as duas grandes Físicas
do século XX, a da relatividade e a quântica, que manifestamente exaltam os
entusiasmos dos físicos que se ouvem nos médias. Ou seja, presumo que, com
Newton ultrapassado por Einstein, Bohr e os outros grandes, toda história da
Física clássica tenha passado à história, assim como os liceus entre nós se
tornaram ‘secundários’.
4. Em que é que consiste essa barreira entre os
domínios da Física histórica e as duas Físicas dominantes hoje em dia, para
além das diferenças laboratoriais e das escalas de medição? A barreira consiste
nas forças atractivas: a) as nucleares que ligam protões e
neutrões nos núcleos dos átomos, b) as electromagnéticas que ligam electrões a
núcleos atómicos e a outros electrões – de outros átomos para formar moléculas,
de outras moléculas para formar moléculas compostas, de solidificação ou
liquefacção – mas que também se opõem quando as cargas são ambas positivas ou
ambas negativas, c) as forças da gravidade que atraem sólidos, líquidos e gases
para formar astros como a Terra, atraídos por sua vez por outros astros.
Richard Feynman, nas suas tão estimáveis Seis lições sobre os fundamentos da
Física,
lembrou que os físicos do seu tempo continuavam sem saber como explicar como
se faz a atracção a distância que deixou Newton perplexo: “não imagino uma
hipótese” (hypotesim non fingo, como
em fingir, no sentido de figurar, desenhar). Não tenho a certeza se se
considera as forças nucleares (ditas fortes) como forças de atracção, devido à
noção que me parece bizarra de ‘gravitão’ (partículas que sustentariam a
atracção), mas o que me parece certo é que as partículas encheram o olho dos
físicos e não lhes deixam consideração para essas ‘forças’. Se quando protões e
neutrões se ‘encontrarem’ a minúsculas distâncias entre ambos (em fermis)
atraem-se e se longe são indiferentes uns aos outros, portanto não havendo
‘forças’ distintas dessas partículas, ou as forças serão algo de ‘distinto’
delas? Há forças ‘fora’ do que atraem? A força da gravidade parece ser inerente
aos astros e aos graves componentes de planetas como o nosso; a minha heresia
sendo não acreditar que haja gravidade entre partículas, mas apenas forças
nucleares ou electromagnéticas consoante, isto é, os três tipos de forças são
relativos às escalas dos entes físicos, como disse em a), b) e c). A
barreira é constitutiva de matéria, a
saber átomos, moléculas, graves e astros.
5. O que julgo que proporciona o que chamei a ‘cegueira dos físicos’ modernos é
algo que fez parte do “método” de Descartes de análise: a noção de dividir até
ao elementar e compreender de novo a realidade sintetizando a partir daí. É
nesta análise / síntese que está o problema, que os estruturalismos em
filosofia e certas ciências sociais, a complexidade de Edgar Morin, as lógicas
de sistema e em física o motivo de campo puseram em questão.
A descoberta do mundo das partículas a seguir à dos átomos foi fascinante, é
óbvio, ainda por cima com problemas epistemológicos completamente novos. Na
minha ignorância, creio que se passa dum estado caótico, as partículas à solta
nos aceleradores, para partículas ligadas por forças atractivas que as
estabilizam em matéria. Reeves diz algures num dos seus
livros de divulgação que os conceitos habituais como este não têm sentido no
quântico, que não será ‘mundo’ nem ‘domínio’, apenas ‘caos’, porventura. Ora, é
esta barreira entre o caos e a matéria que permite perceber
que a força atractiva não é como a noção de “força” corrente em Mecânica, o
que chamei ‘força local’, do tipo clássico da bola de bilhar que põe outra em
movimento, o que me permite concluir que terá sido, quero crer, a dificuldade
de Newton, em que estas forças mecânicas têm um lugar crucial. Continuará a ser
o que impede de ver a barreira entre o caos e a matéria.
6. Antes de concluir, afaste-se um preconceito:
que o espaço seja relativo (Einstein) e não absoluto como Newton pensava, não
creio que afecte a sua física enquanto ciência laboratorial; também Einstein e
os físicos quânticos mantiveram o tempo reversível e ignoraram a sua essencial
irrever++sibilidade histórica, como demonstrou Prigogine, o qual por sua vez
também não foi capaz de estender o seu motivo precioso de produção entrópica ou
entropia positiva às forças atractivas constitutivas dos átomos, moléculas,
graves e astros. Tudo o que aqui se escreveu desemboca na proposta arriscada,
devido às minhas ignorâncias, que fiz no texto citado acima (§ 2), de colocar
estes motivos de energia e força atractiva como motivos constituintes da Física
de Newton, à maneira do princípio de inércia. Ou seja, passados mais de três
séculos sobre ele, continua-se a não se saber ‘imaginar’ (fingo) o
que é a gravidade como força a distância, sendo no entanto o motivo central da
unificação da mecânica terrestre e da mecânica celeste numa só Física: este
motivo foi crucial para o desenvolvimento posterior da Física sem que esse
desenvolvimento tenha no entanto contribuído para o entender retrospectivamente. É
ele que permite compreender o que se passa no laboratório de Física:
tratar-se-á, dum ‘princípio’ não matemático mas físico, deduzido e calculado a
partir de medições laboratoriais, dum princípio físico de filosofia natural.
Se nos lembramos que o motivo de ‘energia’, nome aristotélico (de energeia)
inventado por Thomas Young em 1807, era no tempo de Newton chamado “forças
vivas” (por Leibniz, se bem me recordo, num teorema com esse nome), percebe-se
que ele também faz parte deste grupo de princípios físicos. As forças
atractivas atraem protões, neutrões, electrões, graves e astros,
isto é, retêm-nos, criando entropia; quando deixam de os
reter, eles disparam com inércia, e é isso a energia.
As físicas de Einstein e Heisenberg permitem compreender enfim a física de Newton!
Provavelmente permitiriam compreender inclusivamente porque é que nem Newton
nem nenhum dos grandes físicos até hoje foram capazes de imaginar, ficcionar, a
força de gravidade: princípio físico, seria ela que torna possível que façamos experiência de
forças de ordem mecânica (enquanto que ‘atracções’ como os amores e outros
gostos relevam de um outro nível ôntico, o da vida).