1. Tudo
veio devagarinho, sem eu ir dando por isso, pelas consequências, pela amplidão
do campo de fenómenos que se ia abrindo. Percebi desde o início que não se
tratava de filosofia das ciências, mas antes de filosofia com ciências, expressão esta que veio a tornar-se o
emblema do que estava a fazer e que surgiu inopinadamente ao acabar a frase dum
subtítulo do 1º capítulo do Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida. Muito mais tarde, no 2º volume, 13º capítulo, com
citações desses dois pensadores reclamando como necessária a sua travessia da
fenomenologia, o alvo de Husserl – retorno às próprias coisas, aos fenómenos –
impôs-me que o que estava fazendo relevava desse alvo, ‘reformulava’ a
fenomenologia com o contributo das ciências especializadas em grandes domínios
dos fenómenos terrestres. Mas claro que havia aqui uma ambiguidade, a da
‘reformulação’: não era já a fenomenologia de Husserl, em torno da consciência
e da sua intencionalidade na coisa’, mas de recuperar esta de maneira mais
global, com o motivo de aprendizagem a corroborá-la, indo bem mais além do que
o mestre dos meus mestres. Todavia o lugar crucial do aprender, que já lá
estava, só se me deu nestas tentativas de escritas de blogue.
2. Com efeito, à medida que vou
escrevendo para ele, alguns pequenos ensaios foram exibindo variações
fenomenológicas consoante os fenómenos analisados. E então as cinco ciências
retidas na sua dimensão filosófica apareceram a adjectivar a comum
fenomenologia. O texto do congresso de Fenomenologia de Évora, em 2012[1],
pode ser dito’ensaio de fenomenologia biológica’, a sua 2ª parte, se isolada da
1ª que ela vem completar e sem a qual fica coxa, ‘fenomenologia neurológica’.
Também o texto sobre energia e forças pode ser dito ‘fenomenologia física’[2],
enquanto que o recente sobre a psicologia como ciência de seres no mundo, será
‘fenomenologia neuro-psicológica’. A um ensaio inédito sobre o cristianismo ao
longo da sua história apreendido em leituras de tipo textual (à R. Barthes),
chamo “ensaio de fenomenologia histórico-textual”. São estas variações,
indissociavelmente filosóficas e científicas, que justificam o adjectivo
‘geral’.
3. O que se manifesta nestas
variações é algo de perturbador no seu alcance. Porque não sou praticante de
nenhuma destas ciências, com competências variáveis consoante (tendo no entanto
como formação de base, há 60 anos, a de engenharia civil, antes de vir às
letras por ínvios caminhos em termos académicos), mas quase todas elas foram
pertinentes para esclarecer questões relativas à linguagem cuja filosofia
ensinei durante mais de 20 anos na Faculdade de Letras de Lisboa. Mas o que a
fenomenologia heideggerridiana aplicada às ciências me forneceu não foram
‘comentários’ sobre os fenómenos que essas ciências revelaram no século XX, foi
a possibilidade de verdadeiros ensaios de filosofia com ciências, isto é, críticas filosóficas das posições que os cientistas exibem nos seus textos de divulgação,
posições que são as de todos os intelectuais ocidentais – vindas com a ‘alma’
da filosofia grega e do cristianismo, depois com a ‘ideia’ de Descartes –, a
saber, o privilégio do substancial dos entes sobre o mundo que os deu
(ontoteologia, em termos heideggerianos), o privilégio do interior sobre o
exterior que o inscreveu, o gerou (logocentrismo, em termos derridianos).
4. É certo que há inevitavelmente uma
parte de amador em tal crítica vinda da fenomenologia geral, já que nesta não
há especialistas, tão entricheirados entre si são os campos científicos atravessados,
nem sequer de filosofia, que os filósofos, especializados ou não, também não
são imunes à ontoteologia e ao logocentrismo. Ora, esta parte de amadorismo não
pode deixar de chocar com os especialistas das várias ciências, já que são os
paradigmas laboratoriais que os estruturam com o êxito que revelam as grandes
descobertas científicas em que esta fenomenologia se desvelou, e que justamente
esses paradigmas na sua minúcia operatória são impenetráveis pelos que lhes
ficam de fora, paradigmas esses que muito provavelmente resistem à crítica por
razões que lhes são intrínsecas, pelo menos nas ciências mais técnicas em
termos de aparelhagem. O diálogo de surdos será óbvio, a surdez nem sequer
deixará que haja diálogo a esse nível intra-laboratorial. Sem laboratório não
há ciência, apenas filosofia, mas eles variam consoante os domínios das
respectivas ciências e são irredutíveis entre si, já entre fases diferentes
duma dada ciência, Kuhn sublinhou-o bem, com muito mais razão entre diferentes
ciências. É com efeito fora do laboratório que a questão duma fenomenologia
geral se põe: não é habitual colocar esta questão da diferença entre a prática
laboratorial necessariamente
fragmentária das ciências e a conjugação teórica desses fragmentos
na dita ‘realidade’ extra-laboratorial, como se não houvesse problema nenhum,
como se não se pusesse a questão pós-experimental de saber porque é que foi
necessária a redução operada
pelo laboratório, que reconstituição dela há que operar, tendo em conta o que se descobriu. Que a bioquímica, que tornou possível conhecer o metabolismo das
células e o papel nele dos ácidos ribonucleicos e dos ‘desoxi’, não reveja a
incidência destas suas descobertas
na relação entre a fotossíntese e a existência de herbívoros e de carnívoros como
supondo uma lei da selva que
determina as anatomias dos animais, vertebrados como invertebrados, explicando biologicamente o que Darwin chamou “a luta pela existência”, que
os biólogos não se dêem conta disso (uma contestou-me a análise), é um exemplo
deste fora do laboratório à mercê de qualquer biólogo.
5. Não é pois expectável que esta
proposta tenha algum sucesso, tão exigentes competências pede, mas que ela se
dê como um pensamento sistemático nestes tempos de relativismo, susceptível de compreender todas as
dimensões da ‘realidade’ da terra, do micro molecular e celular ao global
inter-regional e inter-continental, mantendo no coração de cada fenómeno uma
indeterminação em que ele se liga duplamente a outros fenómenos vizinhos e
longínquos, deveria ser um apelo. Infelizmente, quem gizou esta Fenomenologia
geral não é dotado de pensamento estratégico (ou será defeito da proposta?),
não é capaz de exibir ‘sucessos de análise’ que respondessem a alguns dos
problemas desta época de transição não se sabe para onde.