1.
A Biologia molecular pode ajudar a compreender a ‘morte de Deus’, se for verdade,
como creio, que o que deslumbrou os filósofos gregos em torno da phusis foi a fecundidade, como plantas dão origem a
plantas e animais a animais e humanos a humanos, como do pequenino, semente e
ovo surge o que cresce e se torna grande, e quando se vê como em alguns textos
do novo Testamento se diz que os humanos fazem agricultura mas é Deus que dá a
planta que cresce (em 1Coríntios, cap. 15, Paulo explica a partir daí a ressurreição).
http://phenomenologiehistorique.blogspot.pt/2016/06/de-la-fecondite-dans-la-bible.html
2.
Nos Gregos socráticos, há duas atitudes diferentes. A de Aristóteles, é a de se
admirar com o movimento vindo do próprio vivo que cresce; a de Platão parece
nas antípodas, já que a geração e a corrupção são o que ele desdenha, para
privilegiar as Formas ideais imutáveis que a alma – não gerada e imortal –
contemplou fora do corpo e pôde assim ter nela mesma experiências intelectuais
espirituais (ele não distingue) que não foram aprendidas: é pois também a
aprendizagem (corporal, com linguagem) que ele desdenha, mas igualmente para
privilegiar o movimento fecundo da própria alma. Ontoteologia, segundo
Heidegger, a que o cristianismo dará reforço com a noção de criador e de criatura,
o par estrutural de relação de ontoteologia, a da criação.
3.
Que a linguagem oral de que o logos é feito seja uma ‘escrita’, imprime-se nos humanos vindo dos falantes em redor, chega
para dar conta fenomenologicamente da ‘alma’ platónica, que por sua vez também
a biologia molecular e a sua neurologia dispensaram, incluindo a aristotélica, forma não imortal do corpo, ao qual dá o mover-se por
si mesmo. Como intervém aqui a descoberta da biologia molecular, o ADN e o ARN,
mensageiro daquele no metabolismo da célula? Pensando bem, o ADN gera o ARNm
(seja qual for o mecanismo que desencadeia tal geração, há vários) e este,
cumprida a sua missão de sintetizar a respectiva proteína, corrompe-se
quimicamente. O que significa que ele obedece ao esquema que Platão desdenhou,
deixando o ADN vivo, capaz de vir mais tarde a gerar de novo esse ARNm, mas
entretanto gerando muitos outros segundo as necessidades do metabolismo; e
quando a célula se reproduz, cada uma das novas células recebe um ADN igual,
guardião da perenidade do metabolismo enquanto célula houver. Ora, este papel
em cada célula especializada repete-se nas outras especializações de tecidos e
órgãos, estes constituindo a anatomia do animal: o ADN é assim o que garante o
movimento por si próprio do animal, tem o papel que Aristóteles atribuía à alma
(o vitalismo na história da biologia é a resistência desse aristotelismo). E
como é transmitido nos gâmetas, como uma espécie de ‘quase transcendental’ da
espécie, o argumento que Tomás de Aquino desenvolveu, na esteira de
Aristóteles, para justificar um Motor primeiro, deixa de servir: em rigor
serviria para a primeira célula de todas, mas esta não existiu nunca, quando
houve unicelulares, eram já muitos que já se reproduziam uns aos outros, sem
nenhuma bactéria Adão nem bactéria Eva.
4.
Que os biólogos falem em programa genético, em que –grama é o termo
grego para escrita (como em gramática) – Derrida faz-lhe referência numa nota
do 1º capítulo da sua De la Grammatologie – justifica que o ADN, com as suas quatro letras, seja uma escrita, algo de inscrito no núcleo das
células vindo das suas progenitoras. Como com a aprendizagem dos usos e da
linguagem, de inscrições vindas
da tribo, pode-se dizer que foi através de escritas que o mistério da
fecundidade ficou esclarecido, o criador dispensado.
5.
Do que não ficamos dispensado é de amar o próximo, mas é a coisa mais difícil
do mundo. Tendo em conta o que dizia a minha sogra, a D. Carolina, analfabeta
mas uma das pessoas mais inteligentes que conheci: “deus mandou ser bom mas não
mandou ser parvo”.