1. Como quem brinca aos 83 anos com
uma das primeiras grandes questões da filosofia tal como Platão a formulou,
cuja resposta consiste no que habitualmente se chama platonismo, tal como o
retratam os grandes diálogos da República e do Banquete e que
Aristóteles criticou, tal critica tendo sido formulada pelo próprio Platão no Parménides, que fez a viragem para o Teeteto e seguintes, para a questão do conhecimento
enquanto ciência das coisas terrestres, que Aristóteles desenvolverá de forma
esplendorosa para os vinte séculos seguintes, até Galileu e Newton. O
platonismo consistiu em colocar a origem das coisas em Formas ideais (Eidê, uns traduzem por Formas, outros por Ideias)
celestes, imutáveis, que as almas humanas contemplaram antes de virem aos corpos:
explicava-se assim que um pensador pudesse ter o que chamaríamos ‘experiências
de pensamento’ acima do comum dos mortais, que não derivassem de aprendizagem
vinda da tradição dos antepassados nem do ensino de mestres. O comum dos
mortais não lhes tinha acesso, vivendo entre geração e corrupção do corpo, como
os outros animais. Donde que no Fédon, o que muito me espantou quando dei por ela, a alma imortal fosse deduzida
como, por assim dizer, irreversível após a morte apenas para os filósofos, gente de virtude e de saber (terá sido o
cristianismo quem a ‘democratizou’, para escravos e mulheres e crianças
também?). O primeiro passo do que se pode chamar a génese dessas Formas ideais
foi feito no Crátilo, quando
uma longa discussão das etimologias das palavras gregas levou a excluir estas e
a língua da possibilidade de servirem para o conhecimento, o Ménon depois falando de reminiscência das Formas
ideais. Ora, estas resultavam duma invenção de Sócrates, a definição, como meio de incentivar os seus jovens auditores
interrogados a buscarem por eles mesmos o sentido de tal ou tal virtude para
assim a praticarem, já que justamente o mestre, Sócrates, não podia ensinar
esse sentido ‘ideal’, que não se aprende de fora: no Teeteto, que faz a teoria desta questão, a maiêutica
substituindo a reminiscência (pelo menos sem recurso a ela), ele é o parteiro
das almas dos homens, estéril, apenas capaz de discernir se o que os jovens
pensam em seus ‘partos intelectuais’ é verdadeiro ou falso. Resumindo: o
conhecimento por via das Formas ideais, nas almas sem aprendizagem, reservado
aos filósofos e virtuosos, releva dum nível dito em filosofia inteligível, por oposição ao conhecimento vulgar que se
aprende, dito sensível. Ora
bem, a critica da teoria das Formas ideais por Aristóteles, da separação que ela opera entre a ‘essência’ definida das coisas
e elas próprias, em sua ‘substância’, critica que provém da definição primeira
da Physica, a da ousia, que
nas Categorias tem duas acepções,
a primária sendo a ‘substância’ e a secundária a ‘essência’ na tradução latina,
essa critica ‘realista’ do ‘idealismo’ platónico não atentou contra a oposição
entre os dois níveis de conhecimento, o do inteligível e o do sensível: no Da
alma, tratado digamos
bio-psicológico, em contraste claro com os textos da lógica, da poética (e da
retórica, creio), o logos não
intervém, como se Aristóteles não tivesse encontrado o seu lugar, entre o que a
filosofia latina e europeia traduziu como duas instâncias, a razão e a
linguagem, como se já para ele a linguagem fosse o obstáculo à oposição
inteligível / sensível (Derrida), que perdurou na filosofia ocidental até pelo
menos Husserl, com algumas excepções como Marx e Nietzsche; e foi esta oposição que Heidegger diagnosticou como constitutiva da
metafísica.
2. Pode-se encontrar esta oposição nos dois
filósofos, grego e europeu, que mais marcaram a relação da filosofia com as
ciências, Aristóteles e Kant. No primeiro é a diferença entre a ousia (substância – essência), que a filosofia conhece
pela definição, e as coisas que são conhecidas apenas nos seus acidentes, que as narrativas contam a partir do saber
quotidiano, e a filosofia não conhece, já que ‘singulares’, ‘coisas em si’,
‘empíricos’ em Kant, que os dirá ‘númenos’ (referindo às ‘substâncias’
aristotélicas), de que se ocupa a razão prática, enquanto que a filosofia
teórica trata de fenómenos da sensibilidade e de conceitos do entendimento e
das ideias da razão. Ousia /
acidentes, fenómenos / númenos (inversão das posições entre ambos, dum filósofo
do logos a um filósofo do
sujeito, da consciência). A questão que aqui procuro é a de saber se a
fenomenologia que entendi com a gramatologia de Derrida pode e como
desconstruir esta oposição entre dois conhecimentos, o vulgar e o das
filosofias e ciências. Será no motivo dos usos e da linguagem, da sua
aprendizagem a partir de outros como ‘inscrição’, que haverá que procurar a
resposta; Derrida escrevia “da enigmática relação do vivo ao seu outro e dum
dentro a um fora” (De la Grammatologie, p. 103).
O conhecimento tribal
3. É com efeito o uso tribal que se aprende que
está no cerne do conhecimento e não a percepção husserliana de objectos, muito
menos a predominante percepção visual, com as suas peculiaridades que enganaram
os filósofos, a de parecer bastar-se a si mesma, aos olhos do sujeito, e de ser
correlativa da luz, impalpável e inaudível; esta não pertence aos quatro
elementos gregos, enquanto que na criação bíblica é o primeiro ‘bem’ (o que não
as trevas, vindas em sua consequência) antes de tudo o resto, nomeadamente do
sol. O filósofo francês empirista Étienne de Condillac, no seu Tratado das
sensações, conta como um cego de
nascença operado a cataratas em Londres em meados do século XVIII, “quando começou
a ver, os objectos pareciam-lhe tocar a superfície exterior do seu olho. A
razão é sensível. [...] O seu olho não tendo ainda comparado tamanho com tamanho,
não podia ter sobre isso ideias relativas. Não sabia ainda portanto deslindar
os limites dos objectos. [...] Também nos asseguram que ele precisou de algum
tempo antes de conceber que houvesse algo além do que ele via. Percebia todos
os objectos misturados e na maior confusão, e não os distinguia, por diferentes
que fossem a forma e o tamanho. É que ele não tinha ainda aprendido a apanhar
com a vista vários conjuntos. Como o teria ele aprendido? Os seus olhos, que
nunca tinham analisado nada, não sabiam olhar, nem por consequência observar
diferentes objectos, e fazer de cada um deles ideias distintas. Mas à medida
que se acostumou a dar profundidade à luz, e a criar, por assim dizer, um
espaço diante dos seus lhos, ele colocou cada objecto a distâncias diferentes,
assinalou a cada um o lugar que ele devia ocupar, e começou a julgar com o olho
a sua forma e o seu tamanho relativo. [...] Um objecto dum polegar, colocado
diante do seu olho, parecia-lhe tão grande como a casa [aprendeu portanto a
perspectiva; nesse momento só tinha um olho, o outro foi operado um ano mais
tarde]. Sensações tão novas, e em que ele fazia descobertas a cada instante,
não podiam deixar de lhe dar a curiosidade de ver tudo, e de estudar tudo com o
olho. Também quando lhe mostravam objectos que ele reconhecia ao tocar,
observava-os com cuidado para os reconhecer numa outra vez com a vista.
Dava-lhes ainda mais atenção por não os ter reconhecido logo nem pela forma nem
pelo tamanho. Mas havia tanta coisa a reter, que ele esquecia a maneira de ver
alguns objectos, à medida que aprendia a ver outros. Aprendo mil coisas num
dia, dizia, e esqueço outro tanto”. Citação de grande espanto: não se vê só com os
olhos, Husserl! Os bebés quando nascem não só não sabem mexer nem ouvir como
não sabem ver, têm que aprender tudo e umas com as outras: aprender a ver com o
aprender a ouvir e com o aprender a mexer. O que não nos devia espantar tanto
assim, pois que, além dos pintores e dos amantes de pintura, há muitos misteres
em que se tem que aprender a ver o que em geral não vemos, os cirurgiões, os
mecânicos de automóveis, os agricultores, sei lá! Em todos os casos, não se
trata só de ‘ver’, mas de ‘saber ver’, com o que o saber implica de linguagem e
tantas vezes de mãos que fazem.
4. Outra coisa que engana nesta questão do
conhecimento é a tradicional teoria dos cinco sentidos, que nos vem já de
Aristóteles. Ora, dois deles são bastante distintos dos outros: o olfacto e o
paladar são essencialmente de ordem química, são reguladores da qualidade da
respiração um deles, da comida que se mete na boca o outro, os seus nervos vão
directamente para o páleo-cortex do cérebro já nos peixes e répteis, secretor
hormonal, enquanto que os nervos dos três outros visam o neo-cortex das aves e
dos mamíferos, o que elabora estratégias; cada um tem a sua área de entrada até
virem a encontrar-se em áreas comuns, depois de passarem no antigo córtice onde
são acolhidos por outras redes neuronais. Enquanto que os nervos ópticos e
auditivos se isolam bem anatomicamente, o chamado tacto não tem a ver apenas
com as mãos, que sem dúvida têm um papel relevante nele, mas com a pele de todo
o corpo e com os vários órgãos internos quando doridos por qualquer razão, a
este conjunto se chamando someastesia (do grego o ‘sentido do corpo’). Nestes
casos, creio que se pode dizer que a química joga menos do que a física: a
óptica, a acústica e o contacto.
5. Como podemos perceber o jogo cerebral destes
usos a aprender, que não tem nada ver com os tais cinco sentidos? São eles que
nos fazem seres no mundo –
para começar ser na tribo, a família e a escola nas nossas sociedades mas hoje
já os médias também e cada vez mais – e mostram que são vários os comportamentos desses usos, como formas corporais mais ou menos
globais, como diz o prefixo ‘com’ de comportamento que como que ‘liga’ as
várias partes do corpo que são ‘portadas’ (como em ‘trans-portadas’, por
exemplo), cabeça, tronco e membros, como se dizia na velha escola primária. Por
outro lado, que se aprendam coisas que implicam comportamentos indica a criação
da relação dum dentro e dum fora que citámos acima de Derrida, anulando-se a
clássica oposição que no conhecimento diz respeito ao passivo (dos tais cinco
sentidos) e activo: a injunção do outro, de quem se aprende, é recebida
(passivamente) mas entendida como comportamento (activamente); em vez duma
simples “percepção visual” à maneira de Husserl, teremos os grafos cerebrais (Changeux) dos eixos que tornam possíveis
os vários comportamentos. Sejam exemplos de usos infantis banais: ‘vá lá,
senta-te na cadeira’; ‘pega bem na colher’; ‘vamos para casa’, ‘bate-se à
porta, alguém abre-a, entramos’; ‘que letra é esta?’; ‘pega no caderno e no
lápis e faz esta conta, 33 vezes 33’; ‘então quando é que eu vou brincar com o
Zé Maria para o jardim?’ Trata-se de nomes de coisas e de verbos, a pergunta
sobre a letra só reclama a visão da criança, mas outras reclamam as mãos para
pegarem, os pés para andarem, o corpo para se sentar ou entrar pela porta. E
todos supõem a fala. No exemplo da colher, o eixo visão / mãos com a receita da fala que o diz, nomeando a
colher e o ‘tu pegas’, eixo de tudo o que é mexer e trabalhar. Nos exemplos de
caminhar, o eixo visão / pés
(ou mãos com bengala / pés, quando falta a visão suprida pelo eixo respectivo)
e o que a fala diz da meta desse comportamento. O exemplo final, da objecção da
criança que quer ir brincar com o vizinho, ilustra o eixo da audição / fonação. E há sem dúvida outros eixos (audição / pés na
dança, por exemplo), mas estes principais chegam para perceber como os dois
termos de cada eixo dizem o primeiro aquilo que vem de fora e o segundo uma
actividade respectiva comandada de dentro em sequência: dos órgãos perceptivos
ao cérebro e depois aos músculos da mobilidade. Os cinco sentidos cortam a
relação sujeito / mundo e não é por acaso que a linguagem não faz parte deles
enquanto órgãos do conhecimento (sonoro, no caso), apesar da importância da
audição ter sobretudo a ver com ela, sublimação humana fortíssima da audição
mamífera que tinha sobretudo a ver com a caça e a defesa de se ser caçado. Duas
outras sublimações humanas fortíssimas são a das mãos, deslocadas do caminhar
para o trabalhar, e a da boca, deslocada de arma de predação para a fonação. Os
eixos do conhecimento dos outros mamíferos também não são compatíveis com os
cinco sentidos! Outra lacuna destes em relação ao conhecimento humano, tem a
ver com o motivo do ‘saber’ que nele é crucial enquanto saber do mundo, que por eles vem mas sem que se saiba como, como
se não passassem duma passagem como que servil, instrumental porque corporal, e
houvesse que pôr as boas questões do conhecimento a seguir a eles. Ora, conhecemos
as coisas com as mãos que mexem nelas, os olhos que as vêem e as palavras que
as nomeiam, dizem, qualificam, contam, não há palavras que digam o mundo sem mãos nem olhos: “o olho e o mundo
na fala (parole)”, na palavra,
escrevia Derrida (La voix et le phénomène, p. 96). As nossas mentes neuronais é disto que
estão pejadas.
6. Que a tradição filosófica medieval e europeia
tenha ignorado a linguagem até ao século XX, com excepção de empiristas como
Locke e Condillac, sendo gente de grande envergadura de pensamento, obriga a
pôr a questão de saber aonde é que ela se lhes escondia: era justamente no
pensamento! Desde o logos
grego, como Platão explicitou claramente no Sofista, ele que tanto separou sensível e inteligível e
subalternizou as palavras: “pensamento (dianoia) e discurso (logos) são a mesma coisa, só que o diálogo que a alma
tem em silêncio consigo mesma recebeu o nome especial de pensamento” (263e).
Pensando só numa língua e ignorando a tradução por desprezo pelas línguas ‘bárbaras’
(ba-ba, diziam dos sons que não entendiam), não tinham que distinguir pensamento
e linguagem, como fizeram depois os Estóicos inventando o motivo de signo, que acrescenta à dualidade herdada da Atenas
clássica, onoma e pragmata (os nomes e as coisas), o lekton, a significação que o estrangeiro não entende.
Deste trio, encontra-se nos Medievais, que também só cultivavam o latim e não
se preocuparam com a tradução, um trilátero, que corresponde ao do signo,
respectivamente língua, realidade e pensamento, no qual o debate realismo /
nominalismo discutirá os ‘nomes’ mas para privilegiar com Occam os “nomes mentais”,
donde provirão as “ideias” cartesianas, o ‘pensamento’ oposto às coisas da
‘realidade’, secundarizadas as línguas, como foi manifesto quando as diferentes
línguas vernáculas entraram na filosofia, com Descartes aliás nomeadamente. Com
ele com efeito a dualidade pensamento / real, res cogitans / res extensa, depois sujeito / objecto, dominará as questões
do conhecimento sem que a linguagem tenha algum relevo filosófico, reino dos
gramáticos e dos lógicos pelo menos desde Alexandria. Aliás, já Cícero
traduzira a mais célebre definição aristotélica, do humano como zôon echon
logon, animal tendo discurso, por
“animal racional”, o logos
como ratio, perdendo para oratio ou verbum a sua dimensão de linguagem: o dualismo alma / corpo adequava-se melhor a
esta tradução do que ao original grego, como ilustra a citação do Sofista, embora o próprio Aristóteles não tenha podido
meter o logos que predomina em
toda a sua teoria lógica e poética na sua bio-psicologia Da alma. Ou seja, já havia problemas na Academia e no
Liceu, mas foi em latim, sobretudo medieval, que eles se agudizaram: na tradição do conhecimento aristotelista, aos
sensíveis e passivos cinco sentidos juntavam-se duas faculdades inteligíveis, a
inteligência (passiva) e a vontade
(activa), o que se veio a chamar
psicologia racional. Tudo isto é dito a correr, apenas para se saber donde vêm
as dificuldades da questão e o alcance do que se propõe.
7. Ora bem, introduzir a língua, os nomes e os
verbos das frases nas receitas dos usos que se aprendem, nos eixos cerebrais,
que consequência tem? A de não separar o que tem a ver com olhos e mãos – na
manipulação de qualquer coisa, manifestamente sensível quer à luz (perde-se na
escuridão), quer na resistência do material ao tacto – do que se ouve com os
ouvidos mas não se vê nem se apalpa, não é por isso tão claramente ‘dado’: as
vozes e os saberes são diferentes, a alteridade manifesta-se irredutível –
suscita conflitos com frequência, contestação dos saberes que se ouvem – ao
mesmo tempo que as palavras e as regras da língua são as mesmas na tribo e
impedem que se fuja ao tribal, digamos como ‘autoridade’ social que se impõe ao
ser no mundo que somos, fora do qual não podemos existir (no estrangeiro, usos
e língua são outros, como sofrem os emigrantes). Em resumo, como as receitas
são indissociáveis do que nomeiam, pessoas, coisas, fazeres, elas são condição
para que os assim nomeados sejam do ‘nosso’ mundo. O que se chama inteligência
ou razão começa por ser, a este nível de usos básicos, a maneira como falamos
deles, como os podemos fazer, ainda que calados: fazer uma sopa, implica seguir
a receita, ainda que se esteja a falar com outrem ou a pensar noutra coisa.
Como se o que se chamou em filosofia o ‘inteligível’ fosse o que cobrisse o
chamado ‘sensível’ de maneira social. Chamando texto a estas
receitas sobre o que vemos, mexemos, fazemos, dá para entender a afirmação de
Derrida, à primeira vista escandalosa: “não há fora de texto”. Tudo o que
vemos, mexemos, fazemos, só é possível porque sabemos nomeá-lo, porque estamos no espaço em que o dizemos. Chegamos a Tóquio e estamos perdidos, embora
vejamos coisas equivalentes às da nossa tribo. Em termos husserlianos, a
intuição categorial é condição da intuição sensível, esta inversão fez parte da
critica de Heidegger, em que o motivo de “pré-compreensão” (Ser e Tempo) implicita a aprendizagem e a linguagem.
8. Como se conhecem as coisas a este nível do
quotidiano? Organizadas segundo a lógica dos paradigmas dos usos. Se esta argumentação colher, isso implica que ao
nível das coisas de cada dia, os nomes delas fazem parte do conhecimento que
temos delas, sem dúvida, mas também que quanto mais e melhor as usamos, mais e
melhor as conhecemos: a aprendizagem e o treino são as rotinas do
conhecimento, do que chamamos
experiência e saber, ainda que errados, pois que o argumento não invocou a
verdade, nem as essências. A este nível, a ‘verdade’ é relativa aos paradigmas,
aos usos e costumes, e liga-se ao motivo de testemunho, que apela ao conhecimento de factos que
impliquem diferendos e ao saber contar as narrativas desses factos de forma
coerente. É a este nível de ‘verdade’ que se opõe a mentira e a ficção, não o erro (gnosiológico). É certo que pode
haver ‘erros’ ou ‘enganos’ no quotidiano, deliberados ou não – coisas que façam
mal à saúde, por exemplo, ou contra os costumes – que outros podem diagnosticar
em função dos seus conhecimentos: a sua validação ou invalidação como
conhecimento tem como referência a reprodução da unidade social – família,
empresa, escola –, os seus paradigmas que esses enganos comprometam. Enquanto
que a questão da verdade dum conhecimento além dos paradigmas das unidades locais
implica um tipo especial de unidades sociais, como as igrejas o foram
massivamente até ao grande cisma do século XVI, sujeitas a guerras e polémicas
em seguida; na actual civilização de maneira predominante são as escolas e os
laboratórios científicos, mas os médias, livros sobretudo, e os outros que hoje
proliferam, têm implicações com a questão.
O conhecimento além da tribo
9. Os dois exemplos do § 5 referindo a
aprendizagem das letras e dos números reenviam, em princípio, para além da
família, como atestava o analfabetismo: o que se aprendia na escola não tinha
pertinência para a reprodução quotidiana das famílias. Que tenha incluído a
escola no ‘tribal’ significa que hoje já não é assim no que se refere aos
estudos primários mas começa a ser quando se vai subindo na aprendizagem de
disciplinas que se bifurcam entre ciências, humanidades, profissionais, artes,
etc., onde se originam as especializações futuras. É certo que a especialização
de ofícios é muito antiga mas fazia-se nas casas, a escola sendo marginal. Mas
foi nela, na Grécia do alfabeto com vogais, que se inventou o que estrutura a
escola moderna, a definição.
Esta desenvolveu um novo tipo de texto dedicado exclusivamente ao conhecimento,
o texto gnosiológico, com as
suas essências (conceitos) e argumentos: em termos de Benveniste, nem narrativa
nem discurso. Acrescente-se contudo que, como Heidegger algures observou,
Platão e Aristóteles não pensavam com ‘conceitos’, já que no logos pensamento e língua não se dissociavam como
sucedeu após a tradução em latim, como acima se disse: os nossos ‘conceitos’
pretendem ser apenas pensamento / conhecimento, fora das gramáticas das línguas
vernáculas. O que a definição opera é uma violência em relação ao paradigma das
receitas dos usos das unidades locais, a violência da abstracção, como aliás já fazia a geometria, ou as simples
contas, que jogam apenas com as regras imanentes da tabuada e da aritmética, os
cálculos desligando-se das coisas que se contam: a essência do que é definido abstrai cada coisa do seu
contexto de fenómeno, do que lhe deu origem e o condiciona na existência; essa
essência, comum a todos os definidos numa mesma espécie, permite um conhecimento
intemporal e incircunstancial, qualquer que seja o sujeito conhecedor desde que
siga as regras da nova textualidade. Mas foi no interior dela que a tradução do
grego para latim provocou as alterações que dissemos, o que significa que
essências e argumentos gnosiológicos guardavam uma relação à língua, como os
Gregos sabiam mas não souberam Latinos nem Europeus. E não só à língua, também
ao contexto civilizacional acima dos paradigmas tribais das casas: por exemplo
importante, a derrocada do império romano no Ocidente, o novo lugar assumido
pelas igrejas cristãs e o recurso destas à filosofia platónica para forjar um
discurso adequado alteraram substancialmente esse contexto civilizacional e por
via de consequência a maneira de ler as essências e os argumentos. As
universidades medievais exibem claramente essas alterações nas suas problemáticas
de dominância teológica e na especulação filosófica que daí resultou. O
aristotelismo que Alberto Magno e Tomás de Aquino fomentaram é razoavelmente
diferente da textualidade de Aristóteles, levando por vezes ao engano os próprios
especialistas: uma boa parte do trabalho filosófico de
Heidegger no século XX foi recuperar as questões aristotélicas submergidas.
10. Uma das maneiras de abordar a diferença entre
este conhecimento geral por essências e o conhecimento tribal dos paradigmas
caseiros, que o que se chama ‘especulação’ ignora deliberadamente, é sublinhar
que a escrita que argumenta sobre essências recorre apenas à visão das coisas e
esconde as mãos que as manipulam, esquecendo as que escrevem (quase sempre de
escriturários a quem se dita), não se ocupa dos pés dos que viajam, em resumo
as essências já não são do ‘movimento’ das coisas, como era a ousia aristotélica; nem tempo e lugar, portanto nem
história, lhes interessam, mas justamente apenas o que lhe sobrevive, imutável
(parece) de geração em geração. E que bem isso foi! Só a grande mutação que
houve entre 1450 e 1520 – a impressão dos livros e o grande cisma cristão, a
descoberta dos oceanos, do planeta e dos outros continentes, o humanismo das
artes e as mecânicas – gerou um certo cepticismo em relação aos saberes
universitários livrescos em prol da experiência de conhecimento do novo mundo
que se abriu vertiginosamente; demorou ainda um século para se descobrir o que
veio completar a velha definição e abrir uma nova maneira de conhecer, filha da
geometria mas também da mecânica e em “retorno às próprias coisas”, se se pode
dizer sem anacronismo, sabendo que Husserl não ia muito à bola com Galileu.
Filha da geometria porque ‘mede’ as coisas, da mecânica que introduzirá a força
e a massa, mas com uma invenção totalmente nova, a do tempo, como atesta que
não tinham instrumentos para o medir, foi preciso inventar relógios depois de
Galileu. Geometria e mecânica com tempo: tratava-se de medir o movimento e de calcular as forças. Foi também precisa uma nova matemática, álgebra,
cálculo infinitesimal e integral (Descartes, Leibniz, Newton). O laboratório
científico é uma unidade social
nova cujo paradigma (Th. Kuhn) inclui o saber já transmitido, as
experimentações e os respectivos instrumentos de medição, a matemática adequada
a esta, do tipo de equações cujas variáveis são verificadas segundo os
resultados das dimensões medidas, relacionando estas entre si (espaço, tempo,
massa, aceleração...): é nestas equações verificadas experimentalmente que reside
a novidade da física europeia, o discurso que é tido habitualmente como teoria
científica é a interpretação delas em língua gnosiológico-filosófica. Com
efeito, o que foi introduzido assim, na sequência da geometria e da astronomia,
é claro, foi o trabalho, o labor sobre movimentos, a substituição do olho definitório que observa sem mãos
pelo eixo visão / instrumentos de medida. Não é tanto a teoria que permanece –
ela é refutável e será refutada por novas experimentações –, mas as equações
verificadas experimentalmente em qualquer laboratório. São elas que servirão ao
futuro engenheiro para decidir as dimensões do seu engenho: é porque os
instrumentos de medida são constitutivos da física (como da química), esta já
técnica (e não apenas mãos), que técnicas científicas foram possíveis a partir
de Watt, de Volta, de Gramme e de tantos outros.
11. O que se ganhou em relação à definição
filosófica de observação sem mãos, teve, é claro, uma ranção: o conhecimento
das ciências é regional, introduz fronteiras de especialização irredutíveis
entre elas, fragmenta o conhecimento que a filosofia parecia ter unificado.
Dentro desses limites, como caracterizá-lo? Arriscar-me-ia a dizer que, assim
como as definições filosóficas julgavam conhecer as coisas sob os ‘acidentes’
que recebiam do seu contexto (o que levou Kant a falar de fenómenos e deixar os
númenos incognoscíveis) mas tinham o seu alcance na argumentação entre elas que
permitiam, na rede gnosiológica de conceitos, também parece frequente que os
cientistas olhem o que se passa no seu laboratório com os olhos do quotidiano,
como filósofos sem mãos, tenham dificuldade em enxergar o fora do laboratório
aonde estão as ‘coisas’, o que se diz ‘realidade’, impura da multiplicidade de
efeitos não mensuráveis; olham fora do laboratório como se não houvesse
diferença, ele pudesse ser apagado como um andaime após o prédio construído. Ao
contrário do engenheiro, que tem o seu trabalho sempre em vista do fora dos
vários laboratórios de que necessita, a ter que prever os movimentos que o seu
engenho vai ter que fazer, para os quais é inventado. Será pois este que mais
nos interessa considerar quanto ao que resulta deste tipo de conhecimento
científico: não se trata de conhecer como as coisas ‘são’, mas como se
‘movem’, quais as suas possibilidades. Se uma pedra cair nesta situação, cai assim; tal força sobre tal móvel
levá-lo-á a tal aceleração, e por aí fora, assim como ‘conhecer um carro’ é
saber que percursos ele pode fazer.
12. Ora, avaliar possibilidades é igualmente o que permite o conhecimento de tipo
tribal, como atesta o lugar que o motivo tem em Ser e Tempo de Heidegger. Conhecer um carro tem aqui outros
cambiantes, a cor, o estilo, a cumplicidade dum longo tempo de uso, os defeitos
a que há que obviar de vez em quando, sei lá, mas também a força que lhe vem
dos seus cilindros, as velocidades a que pode chegar. Exemplo cómodo de como os
dois tipos de conhecimento se unificam praticamente, numa época em que os aparelhos
e as maquinetas se multiplicam nos usos quotidianos, em casa como nos empregos.
Enquanto pelo conhecimento tribal dos usos e acontecimentos conhecemos os
singulares e algumas generalidades, por exemplo de tipo proverbial, o
conhecimento do geral pode adequar-se-lhe relativamente, enquanto que o seu
alcance mais universal, ganho em livros e estudos, se esmalta também de
acontecimentos que vamos recebendo dos médias. É certo que não prossegui para o conhecimento nas ciências que têm a ver
com os vivos e os humanos, não seria fácil – as doenças e as crises sociais
como desafios – mas não se poderá falar de ‘unificação’ dos dois tipos de
conhecimento, tanto mais que o gnosiológico é cada vez mais especializado e
menos universal, cada um ‘sabe’ como consegue, e como lhe falha por vezes, a
relação entre ambos os seus ‘saberes’, os artistas tanto das artes como dos
ofícios sendo quem melhor porventura se aproxima, não da impossível ‘unificação’
mas, digamos, duma harmonização. Pensando bem, um relógio de
pulso é um pequeno laboratório de contar o tempo, que supõe a astronomia e a
divisão das 24 horas em minutos e segundos, digamos, e faz intermitentemente,
enquanto houver pilha, o seu ‘labor’ de contagem. O que nós conhecemos, ao
nível quotidiano de quem quer saber a quantas anda, é apenas o lugar do
ponteiro no ecrã que vemos e que harmonizamos com a próxima ocupação do nosso
tempo, pensada em linearidade. Como aliás os técnicos de laboratório, que
trabalham com aparelhos de experimentação complicados que lhes estão muitas
vezes vedados, também os põem em andamento carregando com um dedo num botão e olhando umas luzes e depois recebem os resultados olhando números em ecrãs, riscos irregulares de hologramas
e coisas assim, que se sabe ligar ao saber gnosiológico adequado. Estas
aparelhagens exibem o corte irredutível entre ambos os conhecimentos, o da
teoria do aparelho e o da percepção as inscrições que ele produz, mas é sempre
no contexto dos usos quotidianos (doméstico ou emprego, onde se lê por exemplo)
que se sabe ‘verdadeiramente’ o que quer que se saiba, porque o que nós somos, a nossa memória, é feita da lógica desses
contextos. Um saber geral, como este que estou escrevendo, lê-se com os olhos e
‘compreende-se’ através das ligações de grafos cerebrais inscritos pelas lentas
aprendizagens dos paradigmas das generalidades correlativas de filosofias e de
ciências, os quais se ligam a outros paradigmas que, etc. Aprende-se sempre por
fragmentos, os quais se enxertam, melhor ou pior, na rede de fragmentos
anteriores, escolares, profissionais, domésticos; ‘melhor ou pior’, porque tais
fragmentos misturam-se com outros que por vezes são contraditórios com eles,
ninguém é inteiramente lógico, à maneira do tratado lógico-filosófico, que aliás Wittgenstein veio a renegar. Falando em
memória: esta está na sua grande extensão, ‘esquecida’ quando pensamos, onde se
percebe que é sempre também fragmentariamente que se pensa. É por isso que
escrever não é fácil.
O conhecimento fenomenológico proposto
13. Falta um último e mais ousado passo para a
universalidade do conhecimento, o que tem a ver com a pretensão desta
fenomenologia dos fenómenos como duplamente enlaçados, doados por cenas que os
alimentam e onde circulam, distinguindo quatro cenas principais diagnosticadas
pelas descobertas das quatro ciências fundamentais no século XX. A sua pretensão
é a de proporcionar um conhecimento no seio da tradição ocidental que se possa
chamar ‘universal’ e ‘verdadeiro’, visto que os quatro grande tipos de
fenómenos descobertos se deixam analisar em paradigmas das mesmas categorias
fenomenológicas. Conhecimento universal das coisas como elas se movem, com
autonomia indeterminada. É
‘ambição’ do texto, da fenomenologia, não do autor que se admirou muito de ter
chegado tão longe com suas capacidades medianas, que é modesto ao ponto de
achar uma certa graça à ideia de que, além de alguns alunos, é praticamente o
único a conhecer a verdade global, fenomenológica, do universo. Como quem
brinca aos 83 anos.