Isto foi publicado em
"Sexo e Género: que relação?", in Universidade de Verão, Actas, Em busca duma Pedagogia da Igualdade organizado pela C.I.D.M. e pelo Seminário Universitário de Educación no sexista (SUENS) da Univ. de Palencia (Valladolid), na Faculdade de Psicologia da Univ. de Lisboa, CIDM, 1995, pp.249-265
O surgimento explosivo da questão feminina
O género: um forte dispositivo social
Os quatro polos da questão
A bipolarização do sexo (homem/mulher)
A bipolarização do género (masculino/feminino)
A transformação actual do género
O surgimento explosivo da questão feminina
1. Foram as alterações espectaculares do estatuto social das mulheres que fizeram surgir a questão do feminino, quer na ordem prática, quer na ordem teórica, nos últimos 30 a 40 anos.
2. Houve dois grandes tipos de causas para essas alterações. A primeira foi a entrada massiva das mulheres no mercado do trabalho, saindo elas de 'casa', aonde as funções femininas tradicionais foram em grande parte esvaizadas (escolarização obrigatória das crianças; indústrias do 'pronto-a-vestir' e do 'pronto-a-comer', incluindo cantinas; electrodomésticos; saúde pública; etc.). Esse mercado de trabalho era fortemente masculinizado, com alguns sectores feminizados (enfermagem, magistério primário, creches, assistência social, etc), e ofereceu sobretudo empregos em certas indústrias (textil, cadeias de montagem de componentes electrónicas, etc.), em lugares administrativos (dactilógrafas, secretárias, etc.) e no ensino secundário. Os outros sectores resistiram mais à invasão feminina. O salário contribuiu para uma relativa autonomia financeira das mulheres em relação aos maridos e aos pais.
3. O outro factor foi o que se chamou revolução sexual, com a relativização do casamento e a fragilização da família: pílulas e outros meios de contracepção, permitindo forte autonomia (mormente feminina) da actividade sexual em relação à procriação; aumento do número de divórcios, como de casais não casados legalmente e do que se chama 'famílias monoparentais, as mães solteiras e as divorciadas com filhos; movimentos de homosexuais de ambos os sexos; maior protagonismo dos jovens e correlativa contestação da autoridade paterna; maior facilidade de relações sexuais pré- ou extra-conjugais, etc. Qualquer destes factores resultou, por sua vez, do movimento mais largo de transformação da civilização industrial.
4. As mulheres assumem-se assim como indivíduos na praça pública (com salário, profissão, direito a voto, relativa autonomia de decisão sobre a sua vida e a sua actividade sexual, etc.), o que até aí era praticamente reservado aos homens.
5. O movimento feminista - minoritário como organização e militantismo, com algumas grandes manifestações públicas de massa nos inícios dos anos 70, mas com grande impacto junto das mulheres e dos homens - é o detonador e o porta-voz desta grande alteração do estatuto social das mulheres.
O género: um forte dispositivo social
6. Um provérbio, ainda hoje respeitado em muitas aldeias (exemplo de Pardais, no Alto Alentejo, estudado recentemente por Miguel Vale de Almeida), enuncia assim a tradição ocidental multissecular: "do homem a praça, da mulher a casa". Esta divisão tradicional do trabalho e da reprodução era assegurada por um forte dispositivo social de iniciação e de enquadramento das práticas e tarefas sociais, que 'forçava' os rapazes e os homens a serem masculinos e as raparigas e as mulheres a serem femininas, com diferenciação nos modos de vestir e de se comportar, de sentir e de pensar, com acesso diferente aos recursos materiais e intelectuais da sociedade. É a este dispositivo social extremamente forte que se chama género. Como ele tem uma grande inércia de reprodução (é 'exterior', 'transcendente' às consciências de cada um/a), as alterações do estatuto social feminino vieram provocar um embate violento, nomeadamente nas mulheres que vêm ocupar um lugar masculino, pondo-lhes graves problemas de identidade: "quem sou eu, mulher num mundo masculino? como fazer para me fazer respeitar na minha nova autonomia?". Assim se acelerou a transformação do género, para o adaptar à nova situação de civilização.
7. É neste contexto que no campo da teoria irrompeu, a partir dos anos 60 mas sobretudo ao longo dos anos 70, os chamados Women's Studies (de origem americana), os estudos sobre as mulheres e sobre o feminino: nas ciências sociais (antropologia, sociologia, história), na psicanálise (com crítica do modelo 'masculino' com que Freud interpretou a estruturação psíquica das mulheres, a célebre 'inveja do pénis'), na filosofia (pioneira francesa: Luce Irigaray), nos estudos linguísticos e literários, mais recentemente também na biologia, mas com forte propensão interdisciplinar.
8. A grande tese que foi avançada consistiu justamente na distinção entre o género (feminino/masculino) e o sexo (mulher /homem), beneficiando da distinção (nomeadamente antropológica, mas com uma muito antiga tradição filosófica) entre natureza, biologia, por um lado, e cultura, sociedade, psicologia, por outro. Mas o género apresenta-se historicamente, em todas as sociedades conhecidas, de forma não simétrica, como um dispositivo hierárquico de dominação das mulheres pelos homens.
9. As primeiras formulações assentavam na ideia da permanência do biológico, do sexo como um invariante, em contraste com a variablidade do género com as sociedades, quer as ditas 'primitivas' estudadas pela antropologia, quer as da longa sucessão histórica ocidental (sociedades grega e romana, cristandade medieval, Europa). Esta constatação adequava-se, sob a forma de uma evidência - quer da teoria, quer da experiência individual, quer da militância feminista -, à alteração acelerada do género na actualidade.
Os quatro polos da questão
10. O jogo entre estes poderá ser assim esquematizado:
em que (?) assinalam as questões teóricas que interrogaremos e as setas ---> as que são, não apenas a questionar teoricamente, mas também a alterar social e politicamente. Essas setas indicam de facto a dupla ideologia - patriarcal (género) e machista (sexo) - a qual pressupõe:
a) que a relação de sexo ou biológica é invariante, com o destino da mulher marcado pela maternidade (pela natureza);
b) que a relação de género resulta 'naturalmente' da relação de sexo, é pois também invariante.
A bipolarização do sexo (homem/mulher)
11. Analisaremos brevemente quatro pontos.
Do ponto de vista da ontogénese, ou seja da evolução biológica:
1) a) houve alterações substanciais dos primatas aos humanos, b) tendo os caracteres sexuais destes mudado nos últimos 100.000 anos;
2) nesta evolução, o sexo sofreu efeitos do género.
Do ponto de vista da morfogénese, ou seja da formação de cada humano:
3) o sexo não é pré-determinado exclusivamente pelos genes;
4) o sexo de cada um/a sofre efeitos também dos seus percursos singulares, nomeadamente a nível da economia libidinal, mas não só.
12. 1)
a)
Australopitecus ----> Homem de Neandertal ----> Homem moderno
(1 milhão anos) (100.000 anos) (10.000 anos)
bacia: 1/3 menor 1/3 menor
crânio: 400 cm3 1600±600 cm3 (4x)
altura: 120 cm 170± 40 cm (1,5x)
gravidez: 21 meses 13 meses 9 meses
O aumento do crânio e a diminuição da bacia obrigaram a que o parto passasse a ser de dorsal (primatas) a ventral, com o feto a dever fazer um duplo movimento de rotação e flexão e, enfim, a uma muito maior prematuridade do nascimento do feto humano, propícia a um maior tempo de socialização do seu psiquismo. A mulher tem assim um tempo maior de ligação às suas crianças (Peyre, Wiels, Fonton, 1991, pp. 34-37).
13. Outra alteração decisiva, embora já se verifique também com as fêmeas de algumas espécies primatas: não há cio na espécie humana, o que implica que os desejos sexuais das mulheres estão desligados dos periodos de fecundação (ovulação), estes nem sequer sendo assinalados exteriormente. Também resulta da gravidez ser por regra de um só bébé, do seu tempo de maturação ser muito mais longo e do elevado índice de mortalidade infantil (e até das parturientes), que a espécie humana é relativamente infértil (P. Tabet, 1985).
14. b) O diagnóstico do sexo de esqueletos humanos do periodo neolítico (Peyre, etc., pp. 38-42) - com grandes diferenças entre populações da mesma época, situadas a cerca de 1000 km de distância: o esqueleto dum homem da Normandia é equivalente ao duma mulher da Renânia - é fácil de fazer para os 'extremos' feminino e masculino, mas difícil para o 'continuum' entre ambos, que corresponde a um bom terço da população, o que dá que apenas 70% desta tem "sexo determinável', "cada sujeito [tendo] uma percentagem relativa de feminidade e de masculinidade. [...] Convém emitir a hipótese de que o sexo não influencia a morfologia dos ossos por um determinismo simples" (idem, p. 40).
15. 2) O 'continuum' dos esqueletos neolíticos, quando comparado com os Brancos americanos actuais, segundo duas variáveis da bacia, leva a que todos esses esqueletos seriam 'femininos' segundo uma delas e todos 'masculinos' segundo a outra. Por outro lado, comparando também com os Negros americanos actuais, verifica-se que, quer as mulheres negras, quer as neolíticas, estão mais perto dos homens respectivos do que as brancas dos seus. "Seria assim um facto sócio-cultural [de género, pois] intervindo na Europa após o Neolítico e dizendo respeito exclusivamente às mulheres que teria modificado um carácter biológico" (idem, p. 41). Trata-se aqui de hipóteses de interpretação científica.
16. 3) São os pares de cromossomas XX que dirigem a formação das características sexuais das mulheres (vagina, ovários, etc.) e os pares XY que dirigem as dos homens (pénis, testículos, etc.), nestas características se contando também a maior altura, robustez física, voz mais grossa, da parte dos homens. Ora bem, até às 6 ou 7 semanas do feto, as gónadas sexuais são indiferenciadas (só após elas evoluirão para ovários ou testículos, secretando estrogénio e progesterona - hormonas femininas - e testosterona - hormona masculina, respectivamente; mas estas hormonas também actuam no cérebro (na sua constituição e no seu funcionamento), podendo, graças à presença de uma enzima, a hormona masculina transformar-se na feminina (Vincent, p. 262); numa questão muito complexa, digamos que cada sexo secreta percentagens maiores das respectivas hormonas, tratando-se assim de dominâncias tendenciais. À questão de saber o que é que determina essa evolução, as autoras, após evocarem algumas tentativas sem sucesso, dizem que essa evolução é "verosimilmente resultado duma sucessão de numerosos acontecimentos agindo de maneira coordenada e regulando-se mutuamente" (Peyre, etc., p. 33). Haverá pois aleatório nesta evolução. Ora, pelo menos 6/1000 indivíduos (o que daria 60 mil na população portuguesa, por exemplo) não são XX nem XY, dos quais 50 num milhão são homens normais com XX e 30 num milhão hemafroditas com XX, havendo ainda, sem indicação de números, mulheres XY (idem, pp. 30-31).
17. O que significa que o sexo de cada um/a não é prédeterminado biologicamente exclusivamente pelos genes, mas depende também do jogo hormonal. Este jogo implica uma parte de aleatório no percurso de cada um, nomeadamente as secreções do hipotálamo (paleo-cortex) estando ligadas ao que sucede no neo-cortex, o qual, por sua vez, joga intrinsecamente com os factores ambientais ou sócio-culturais (e portanto com o género).
18. 4) É esta articulação entre a determinação genética e os efeitos, parcialmente aleatórios e dependentes, via hormonas, do género e dos percursos singulares de cada um no seio da família, etc., que permite perceber que nós somos todos, biológica e psicologicamente, diferentes uns dos outros, embora com um programa genético que é quase totalmente igual em todos os humanos (uma parte muito pequena dizendo respeito a diferenças bio-etnológicas, tipo raça e outras). O que implica também que a nossa 'biologia' se altere durante o crescimento, com os modos de vida, com acontecimentos traumáticos de vária índole, etc. Por exemplo: toda a gente que frequentou o liceu, adquiriu a capacidade de estar durante horas a fio sentada a uma mesa a ler, escrever, fazer cálculos ou desenhos, que foi regulada pela disciplina escolar (jogando sobre hormonas e criando hábitos), capacidade essa que a esmagadora maioria da humanidade passada nunca teve. Se se tem em conta que ser mais magro ou mais gordo, peludo, imberbe ou careca, forte ou fraco muscularmente, e por aí fora, também são diferenças 'biológicas' (que também têm a ver com os genes, mas não exclusivamente), percebe-se que a diferença biologia / psicologia-cultura (e portanto sexo / género) não é uma oposição essencial, mas uma articulação com efeitos recíprocos, em que determinação e aleatório jogam indissociavelmente. Isto é, sendo embora a distinção homem / mulher a mais óbvia (a pergunta "é menino ou menina?" tem em geral resposta clara), não é possível estabelecer categorias herméticas entre homens e mulheres a nível biológico; este não é rigorosamente pré-determinado, mas contém uma parte de aleatório na complexidade de factores que intervêm na constituição de cada humano. Somos homens com parte de mulher (os mamilos, por exemplo, o atestam) e mulheres com parte de homem, a repartição variando caso por caso, a regra estatística sendo que um dos polos se torne dominante.
19. Se dermos atenção às economias libidinais de cada um/a, tal como a psicanálise nos ajuda a entendê-las, a mesma constatação duma bisexualidade primária de todos os humanos se impõe. Aqui está-se numa zona em que mais claramente a oposição biologia / psiquismo (sexo/género) é inadequada, já que são as energias sexuais, sempre excessivas em todas as espécies, que são culturalmente sublimadas. A polimorfia das pulsões sexuais, sujeitas ao que Freud chamou "princípio do prazer", parece ser a razão que levou o género patriarcal a tornar-se sobremaneira rígido ("princípio de realidade"), a forçar essa sublimação no sentido heterosexual. Como os que são chamados homosexuais foram vítimas de tal rigidez ao longo da história, podemos ter uma pálida ideia através do sofrimento dos que hoje têm buscado afirmar essa sua diferença, essas suas diferenças melhor dito, já que também se não trata de categorias estanques e essenciais (sem mudarem nem de sexo nem de género: continuam homens masculinos ou mulheres femininas), mas de percursos singulares libidinais diferentes, em transgressão da norma da adequação sexo-género dominante. Como atesta o facto de haver muitos casos de heterosexuais (com filhos inclusive) que se tornam homosexuais, bem como de pessoas que são as duas coisas, homo ou heterosexuais, consoante o sexo da pessoa que amam. Todos somos pois primariamente bisexuais e é a partir desta bisexualidade que uma sexualidade tende a estabilizar-se, prevalecendo sobre a polimorfia por factores em que o aleatório tem relevância grande (trate-se de 'biologia', de 'género' ou da singularidade dos percursos respectivos).
20. Sejam alguns casos mais atípicos da repartição desta bisexualidade. Estéreis (5 a 15% dos casais): são 'heterosexuais' incapazes de reprodução procriadora. Transexuais (parte dos tais 6/1000): com alguma 'falha' na questão XX/XY, sem diferenciação completa entre os órgãos sexuais, podem mudar de sexo e de género (sendo em regra estéreis), querendo ser hetero-sexuais e hetero-género. Travestis: não mudam de sexo, mas de género (homo-género).
A bipolarização do género (masculino/feminino)
21. O casamento sendo estrutura decisiva de todas as sociedades conhecidas, parece óbvio que seja ele o factor que cristaliza a bipolarização do género, como dispositivo que distribui os homens / mulheres de cada sociedade pelas tarefas e práticas que esse dispositivo define como masculinas e femininas. Segundo a tese de Lévi-Strauss em Structures élémentaires de la parenté (P.U.F., 1948), o tecido social constitui-se pelas alianças de casamento entre linhagens, em geral patrilineares, que entre si trocam as suas filhas (ou irmãs), segundo regras mais ou menos estritas (segundo lógicas não conscientes, que o autor restituiu de forma brilhante), as quais constituem também, simultâneamente, as próprias linhagens como estrutura do tecido social. Essas regras postulam sempre (universalmente) o interdito do incesto (entre os homens e as respectivas filhas, irmãs e mães sempre, algumas outras parentes próximas consoante) e a exogamia das raparigas, que vão pois casar noutra linhagem (a que são 'estranhas'). Existência de linhagens e casamentos, interdito do incesto e exogamia, bem como o respectivo dispositivo do género, são fenómenos sociais, são a ossatura essencial de cada sociedade que garante a sua reprodução enquanto tal de geração em geração, em vez de ser constituída por 'ilhas familiares'.
22. Esta ossatura enxerta-se na diferença sexual entre homens e mulheres, a qual, por sua vez, é a condição (em qualquer espécie complexa, vegetais ou animais, com macho e fêmea e com morte dos indivíduos), da reprodução da espécie de geração em geração. Se se tem em conta, como vimos, a relativa infertilidade da espécie humana e a também relativa polimorfia biológica (e libidinal) dos sexos, percebe-se que não houve até hoje reprodução da espécie humana dissociável da reprodução das sociedades em que ela se organiza. Já Aristóteles definiu os humanos como "animais sociais" e "animais com linguagem" (ou cultura), isto é, biologia (sexo) e sociedade-cultura (género) são indissociáveis, não podem ser opostos (também Lévi-Strauss colocou o interdito do incesto como escapando a esta oposição tradicional). Na situação actual de acelerada transformação do género, temos pois que analisar esta questão: quais os limites desta transformação? Como jogam os interesses e desejos dos indivíduos, face aos das sociedades e da espécie? Como foi esse jogo no passado?
23. O mínimo que se pode dizer é que ele não foi meigo para as mulheres. P. Tabet (1985) defende que, diante da relativa infertilidade da espécie humana (§ 13), todas as sociedades tiveram que forçar as mulheres a exporem-se o mais possível ao coito e ao risco consequente da gravidez (sem saberem em que alturas ela é possível, sabemos hoje que num periodo mensal sempre muito curto, no máximo de 48 horas): o casamento é a instituição que provoca essa exposição. O dossier que a autora apresenta é catastrófico, de tal forma é grande a violência a que os homens (maridos e pais, por vezes também com a cumplicidade de outras mulheres da linhagem do marido) sujeitam as mulheres que se revoltam diante desse destino. Esta violência é aliás a confirmação mais cabal da polimorfia do sexo biológico e dos desejos sexuais (hetero ou homosexuais). Há que dizer que há casos frequentes descritos por antropólogos em que sociedades tribais abrem lugares para homosexuais e outros do sexo masculino, da mesma maneira que o divórcio, a poligamia e até a poliandria são por vezes instituidos.
24. Limitemo-nos agora às sociedades da civilização ocidental. Estas são patriarcais, como todas as sociedades de classes e Estado (com agricultura, criação de gado, classe guerreira e monarquia): a sua base é a casa, que é simultaneamente unidade de parentesco e unidade económica (em geral, à base de agricultura e de gado). O género institui simultâneamente a divisão sexual de reprodução (homens destinados a serem pais e mulheres a serem mães) e a divisão social e sexual do trabalho (tarefas guerreiras, políticas, religiosas e de trabalhos fisicamente mais duros para os homens; tarefas domésticas, a ver com a reprodução dos corpos e seu sustento, para as mulheres). Enquanto que a divisão social do trabalho conhece outras formas também de separação entre classes sociais (escravos, servos feudais, etc.), em resultado, quer de vitórias na guerra, quer de outras formas em que o poder das armas permanece decisivo, sacramentado ou não com formas religiosas. Ora bem, ainda aqui parece que factores biológicos (maior estatura e força física dos homens) são condição desta maneira de se organizar a sociedade e o género, já que a guerra é a condição essencial destas sociedades, as classes guerreiras procurando sempre acrescentar os seus domínios e devendo sempre defendê-los da cobiça de outras.
25. Atendamos agora a alguns aspectos específicos do polo masculino do género patriarcal. Luce Irigaray (1974, 1977, ver Belo, 1987, § 42, com alguns extractos dessa filósofa) mostrou como a filosofia greco-ocidental se estruturou de forma patriarcal, com o primado do um-uno, do centrado, do visível, do sólido (como o phallus masculino erecto), sobre o duplo (os dois lábios da vagina), o plural e o disseminado (erotismo no corpo feminino), o 'sem-nada-para-ver' (buraco vaginal, caverna), o húmido e fluido do sexo feminino. Pode-se acrescentar que, em concordância com o lugar público do homem e o lugar caseiro da mulher (a casa sendo também o lugar do trabalho agrícola e pecuário sobre a 'natureza'), ao homem foi atribuida a razão discursiva política (o logos, que discute na ágora), o inteligível, a abstração, a alma (platónica), e à mulher a relação à natureza, ao sensível, ao corpo. Mas também a medicina de Hipócrates: a mulher é aí definida pela maternidade, pelas mênstruas impuras e pelos humores instáveis (ligados à 'mobilidade' do útero, para cima e para baixo) (Teresa Joaquim, Menina e Moça).
26. Na Idade Média cristã, o dispositivo masculino parece ter duas formas complementares. Uma, clerical e celibatária (retirando pois o homem da casa, o que continuará a ser dominante até ao sec. XVIII, mesmo para filósofos, sábios e artistas não-clérigos, necessitando de mecenatos para se dedicarem à sua obra), 'penetra' a linguagem e dissocia-a: para o masculino, a linguagem do poder, sob a forma de leis, cânones, dogmas, discursos eclesiásticos e universitários, etc., linguagens visíveis, públicas, perenes, imperativas, coercitivas, executivas (no duplo sentido do termo, governando e matando em fogueiras hereges e feiticeiras), fixas, operatórias, escrevíveis, formais (no sentido de 'com-uma-única-forma'); para o feminino, a linguagem imprecisa, vaga, sem princípio nem fim (sem coerência), tagarela, frívola, fútil, imaginativa, arbitrária, efémera, não-escrevível (mesmo as místicas terão dificuldades em escrever), etc. Linguagem sem corpo versus linguagem do corpo, em suma. A outra forma é guerreira e assume o corpo do homem como força e destreza muscular: na guerra, nos torneios, na caça, nos vários ofícios mais duros. O corpo do homem funciona aí como 'inteiriçado', à maneira das enormes armaduras militares, sem brechas internas e duma só peça, o corpo todo 'erecto' contra o que lhe é adverso. Duas formas que se completam: força da lei, lei da força.
27. A emergência de uma terceira forma do dispositivo masculino que vem acrescentar-se às duas medievais dá-se com o nascimento da Física matemática e ciências congéneres. Ela manifesta-se filsoficamente no célebre Cogito cartesiano e na espantosa 'ficção' que o segue no 4º capítulo do Discurso do Método: "depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo, e que não tinha nenhum mundo, nem nenhum lugar onde eu fosse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que pelo contrário, disso mesmo que eu pensava em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; em vez de que, se eu tivesse somente cessado de pensar, ainda que tudo o resto do que eu tinha jamais imaginado, fosse verdadeiro, eu não tinha nenhuma razão de crer que eu tivesse existido [...]". Espantosa, não apenas porque ficção, fingimento, imaginário, isto é, coisas 'femininas' (note-se que 'imaginar o que fosse verdadeiro', como as mulheres são supostas fazer, não garante a existência de que o faz) em que masculino se promove, mas também pelo seu portentoso alcance profético: a racionalidade de tipo matemático e científico tornar-se-á lentamente dominante no polo político das sociedades ocidentais e inscrever-se-á no dispositivo masculino duma razão que finge não ter corpo, a razão dos físicos e dos químicos, dos engenheiros e dos economistas, dos médicos e de todos os técnicos que, enquanto tais, enquanto em tal razão, não têm corpo próprio, seu operar permitindo no entanto transformar corpos, mundos e lugares, como hoje se vê, por via das máquinas e suas energias não-humanas. Homens de razão-sem-corpo alçaram-se assim ao poder, dominantes até à náusea, enquanto um corpo armado de exércitos e polícias, complemento corporal da razão sem corpo, se encarregam de pôr na ordem os corpos desordenados que porventura agitem as ruas.
28. Dos corpos, já se sabe, cuidavam as mulheres que os pariam. Excluidas secularmente da praça pública pelo dispositivo masculino, entregavam-se ao concreto, desenvolvendo uma lógica do cuidado (Teresa Joaquim): à base do gosto estético da casa e dos corpos, do saber cuidar dos pormenores, das crianças, dos doentes, das culinárias, da higiene, das roupas, tudo mundos rebeldes à razão masculina dominante e à sua homogeneização unidimensional. O cristianismo contribuíra para remodelar o dispositivo feminino também, com o privilégio da maternidade e da virgindade (a que se obrigavam, querendo-o ou não, as mulheres que da casa não queriam ou não conseguiam) tutelado pela figura da Virgem-Mãe, em contraponto com a cortesã, também deixada da casa para o serviço extra-conjugal dos prazeres machistas, a figura de Eva marcando as mulheres rebeldes à norma com o estigma das 'tentadoras' (Teresa Joaquim, Menina e Moça). À violência física que força as mulheres à reprodução heterosexual, acrescenta-se a violência ideológica que faz a mulher duvidar dos seus próprios desejos, reprimir de forma 'interiorizada' a sua polimorfia (estes §§ 25-28 são citações de Belo, 1983).
29. Exclusão e repressão ainda de todas as veleidades intelectuais e artísticas por parte de qualquer mulher, estigmatizada desde os Gregos pelo que seria a sua incapacidade radical de abstração, de sublimação estética. O que hoje, à vista do leque imenso de mulheres intelectuais e artistas, não pode deixar de provocar grande espanto. Fica em aberto a questão de saber, como algumas defendem e outras contestam, se há uma 'escrita feminina', ou maneiras femininas de pintar, fazer música ou realizar cinema.
30. Se mosteiros e conventos são, até ao sec. XIII, sem repressão oficial e doutrinal, lugares de possível cultivo de afectos homosexuais, estes tornar-se-ão também razão de sofrimento para os homens cuja economia libidinal escape ao género dominante. Mesmo os que se dão à arte e à poesia, cuja 'lógica do cuidado' os feminizava também, segregando-os numa certa marginalidade que os confinava parcialmente ao feminino do dispositivo: a linguagem enquanto significante-corpo, letra-material em seu jogo rítmico, não domesticada pelo significado da verdade universal, escrita que se impõe ao oral, por assim dizer (Platão, no Fedro, liga a tinta 'líquida' ao pharmakon, droga, remédio, veneno, mortal), linguagem pois de sensação, de imaginação e de corpo, sujeita também à mesma lei de exclusão filosófica que a oferecia de bandeja ao dispositivo feminino. Vê-se pois que muitas mulheres, homens também uns tantos, sofreram, na carne, nos desejos, nas aspirações mais fundas, a rigidez do género patriarcal: ou na resignação, ou pagando cara a rebeldia ao imperativo imperialista da reprodução heterosexual da espécie-sociedade. Mas entre estas duas atitudes extremas, os provérbios parecem atestar que de preferência as mulheres usaram de manha.
A transformação actual do género
31. Recapitulemos, voltando ao esquema do § 10. A variação da bipolarização do sexo foi argumentada, tanto quanto a biologia ainda se buscando o permite, através da bisexualidade primária de cada humano, cada um com parte de homem e parte de mulher, num 'continuum' em que os extremos se afirmam melhor, mas cujos lugares medianos atestam o aleatório do processo de constituição 'biológica' de cada sexo, o que a variabilidade ainda maior de economias libidinais confirma, e já a força esmagadora dos imperativos de adequação à norma da heterosexualidade procriadora dizia como sintoma, como sofrimento de tantas e de tantos. Essa mesma variabilidade, que impede de aceitar que 'homem' e 'mulher' sejam categorias essenciais ou oposições exclusivas, que haja um 'nível biológico' taxativamente determinista e isolável, também questiona que 'masculino' seja sobreponível sem mais a 'homem' e 'feminino' a 'mulher' ("já fui barco, já fui navio / já fui chalupa e escaler / já fui moço, já sou homem / só me falta ser mulher", cantava, sem temer o ápodo de 'maricas', Zeca Afonso). E enfim, o carácter 'cultural' do homem-masculino e o carácter 'natural' da mulher-feminina revelou-se também ser uma elaboração cultural e histórica do dispositivo patriarcal ocidental, apoiado em suas filosofias e medicinas. Resta-nos indagar do futuro das setas da dominação desse dispositivo, do horizonte da transformação acelerada que este está conhecendo.
32. Nem o movimento feminista, nem o movimento 'gay', nem a 'revolução sexual', se justificam por si mesmos. Eles avançaram pelo caminho que lhes foi aberto pelos dois grandes fenómenos que assinalámos nos §§ 2-3, correlativos entre si, mas ambos também consequência última da grande revolução da civilização ocidental, a saber: a substituição das casas de antanho, unidades simultaneamente de parentesco e de economia (§ 24), pelo que se pode chamar genericamente instituições (desde as empresas industriais, comerciais, financeiras, jornalísticas, etc., às do Estado) como espaços de emprego e salário para (quase) toda a população activa, espaços esses separados como regra dos novos espaços do parentesco, os apartamentos em prédios onde moram as famílias, reduzidas estas às funções de reprodução (procriação e sustento no consumo quotidiano). Este alijamento das funções de produção económica é a fragilização da família, foi ele que permitiu a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho que precisou delas, como também provocou a relativização do casamento. Este deixou de ser a ossatura do tecido social (§ 20), substituído pelo próprio tecido das instituições económicas e pelo correlativo mercado (onde hoje se dão as crises sociais).
33. O que, para as sociedades ocidentais mais evoluidas, funcionou bastante bem durante os anos 50-70, digamos, período de grande expansão tecnológica e económica, justamente o periodo de incubação e manifestação em força dos movimentos de militantes feministas e 'gays', como da 'revolução sexual'. Mas a década de 80 e o que já passou da de 90 trouxeram o desencanto das crises e apagaram as fraternidades e sororidades exaltantes dos tempos idos. O desemprego alastra, devido em boa parte às novas tecnologias electrónicas economizando força de trabalho, ameaçando as fragilizadas famílias em seus apartamentos e magros orçamentos de consumo, atingindo sobretudo as mulheres e feminizando uma boa parte da nova pobreza destas opulentas sociedades. As finanças dos mecanismos de segurança social e de pensões de reforma estão em falência, anunciando futuros sombrios a pedir solidariedades difíceis em tempos de individualismo exarcebado. A liberdade sexual, tão dificilmente ganha, é ameaçada por uma epidemia nova diante da qual a medicina está desarmada. 'Last but not the least', o desmoronar do género patriarcal não é de certo o menor factor do que se chama 'crise de valores': de crenças éticas e de crenças no futuro, que as religiosas já antes tinham definhado. Para não falar das ameaças ecológicas, das crises económicas e políticas dos países libertados do comunismo soviético, da fome de tantos países sem saída à vista no dito Terceiro Mundo. É este o contexto em que temos que pensar os horizontes da transformação actual do género: eles não são propícios ao optimismo.
34. Sobretudo talvez para as mulheres, se for verdade que estas sempre resistiram melhor em épocas de catástrofes, ou seja, sempre pagaram o maior preço, quando os homens deixam cair os braços nos desânimos, bebedeiras e outras drogas e suicídios. De qualquer forma, estamos todos no mesmo barco, como se diz, e a questão que me parece se pôr é a de saber se o acesso massivo das mulheres ao mercado e à praça pública poderá dar alguma esperança a estes tempos difíceis que atravessamos.
35. Não creio, como por exemplo defende Christine Delphy, que tenha sentido "imaginar o não-género" (p. 100), isto é, o desaparecimento das 'categorias' masculinas e femininas. Uma tal tese implica, por um lado, que estas não tenham nada a ver com a diferença (e não oposição) entre homem e mulher (posição filosófica contrária é a de Luce Irigaray, mas há que dizer que a literatura feminista teórica recente, ao menos de língua francesa, a ignora totalmente); por outro, que as sociedades se atomizem em indivíduos todos diferentes e que as questões de procriação e de busca do prazer erótico além da procriação (que é um dos grandes bens que se adquiriram nas últimas décadas) não tenham nenhuma incidência no plano social ou cultural. Ou seja, esta tese separa e opõe ainda sexo e género, como aqui se tentou evitar. Julgo mais correcto pensar, como, segundo me parece (que o não pude ler todo), sugere Miguel Vale de Almeida que é já o que se passa em Pardais e a fortiori nas grandes cidades, que o género tende a multiplicar-se em formas mais ou menos diferenciadas de masculinos e de femininos, com a correlativa perca de hegemonia do modelo patriarcal e machista. Este pode aliás sobreviver muito mais acentuadamente, se se atender, por exemplo, aos modelos que aos rapazes oferecem os filmes violentos e os desportos de massa e de alta competição (onde a mixagem de sexos está ainda por se manifestar), e as mulheres (e os homens, porventura) que com tais machistas se queiram relacionar terão que ter muita arte, muita manha, para os modificar.
36. A questão de fundo seria esta: numa civilização fortemente racionalista, isto é, masculina no sentido pejorativo da palavra, que poderão as mulheres fazer, a partir da sua 'tradicional' lógica do cuidado (§ 28), para ajudar à sua transformação, se for verdade que elas se sentem ameaçadas na sua identidade pela racionalidade desse mundo de instituições a que acederam (§ 6)? Pense-se nas questões ecológicas, por um lado, na das relações competitivas de mais adentro das instituições, no 'stress' que elas provocam e a todos ameaça, por outro. Não se trata apenas de 'relações humanas' a melhorar, mas também de tarefas de teoria e de estratégia (institucional, mercantil, política, urbana, etc.), de reelaboração das racionalidades estabelecidas, de abrir nelas, de forma fecunda a todos os níveis, lugar para as solidariedades, os afectos, a convivialidade. Não há que sermos ingénuos: as mulheres têm ainda, por regra, muitos obstáculos a vencer em seus percursos singulares para ganharem os seus lugares, estão sujeitas, como os homens, ao individualismo dominante, poderá não lhes sobrar energia para tais tarefas quase impossíveis, difíceis de articular em discurso, de propor a outrem de forma convincente.
37. Entre as raras utopias que têm aparecido, relevo a de o desemprego actual, provavelmente estrutural e não conjuntural, obrigar a uma redução mais ou menos drástica dos horários de trabalho para que os empregos cheguem para todos, com a consequência de aparecer uma nova tarefa de civilização: a criação de novos espaços de convivialidade social e cultural nos tempos livres acrescidos (André Gorz, Ivan Illich), uma nova polis (Hannah Arendt), espaços esses que permitiriam conter o peso excessivo da economia e do seu discurso nas vidas e nos fazeres das gentes. Esses espaços, na proposta do economista Gorz, seriam mais frugais, com menos consumismo e desperdícios, compensando as eventuais quebras de salários. Também aí parece haver um lugar em que a 'lógica do cuidado' das mulheres (e de homens também) poderá ter empenhos decisivos. Digamos que se trataria de propor os 'novos valores' que permitirão aos nossos descendentes encontrarem motivações para viverem numa terra mais pacificada. Mas as novas gerações de raparigas não são formadas já em ruptura com essa tradição feminina que tornou humanas as casas de antanho? Quem saberá dizer? Quem ousará a esperança?
Bibliografia citada
Almeida, Miguel Vale de, Corações de Pedra. Discursos e Práticas da Masculinidade Numa Aldeia do Sul de Portugal, Tese de Doutoramento em Antropologia Social, Lisboa, I.S.C.T.E., 1994
Belo, Fernando, "Quando masculino/feminino não coincide com homem/mulher", in J.L., 27-12-1983
Belo, Fernando, "Luce Irigaray: um sexo que não é um/uno", in Linguagem e Filosofia. Algumas questões para hoje, I.N.C.M., 1987, pp. 229-240
Delphy, Christine, "Penser le genre: quels problèmes?", in Marie-Claude Hurtig, Michèle Kail, Hélène Rouch (org.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, C.N.R.S., Paris, 1991, pp. 89-101
Joaquim, Teresa, Menina e Moça, A construção social da Feminilidade em Portugal (sec. XVII-XIX), Fim de Século, 1997
Peyre, Evelyne, Wiels, Joëlle, Fonton, Michèle, "Sexe biologique et sexe social", in Marie-Claude Hurtig, Michèle Kail, Hélène Rouch (org.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, C.N.R.S., Paris, 1991, pp.27-50
Tabet, Paola, "Fertilité naturelle, reproduction forcée", in Nicole-Claude Mathieu (org.), L'arraisonnement des femmes. Essais en anthropologie des sexes, Cahiers de l'Homme, série XXIV, E.H.E.S.S., Paris, 1985, pp. 61-146
Vincent, Jean-Didier, Biologia das paixões, Europa-América, [1986], 1988
"Sexo e Género: que relação?", in Universidade de Verão, Actas, Em busca duma Pedagogia da Igualdade organizado pela C.I.D.M. e pelo Seminário Universitário de Educación no sexista (SUENS) da Univ. de Palencia (Valladolid), na Faculdade de Psicologia da Univ. de Lisboa, CIDM, 1995, pp.249-265
O surgimento explosivo da questão feminina
O género: um forte dispositivo social
Os quatro polos da questão
A bipolarização do sexo (homem/mulher)
A bipolarização do género (masculino/feminino)
A transformação actual do género
O surgimento explosivo da questão feminina
1. Foram as alterações espectaculares do estatuto social das mulheres que fizeram surgir a questão do feminino, quer na ordem prática, quer na ordem teórica, nos últimos 30 a 40 anos.
2. Houve dois grandes tipos de causas para essas alterações. A primeira foi a entrada massiva das mulheres no mercado do trabalho, saindo elas de 'casa', aonde as funções femininas tradicionais foram em grande parte esvaizadas (escolarização obrigatória das crianças; indústrias do 'pronto-a-vestir' e do 'pronto-a-comer', incluindo cantinas; electrodomésticos; saúde pública; etc.). Esse mercado de trabalho era fortemente masculinizado, com alguns sectores feminizados (enfermagem, magistério primário, creches, assistência social, etc), e ofereceu sobretudo empregos em certas indústrias (textil, cadeias de montagem de componentes electrónicas, etc.), em lugares administrativos (dactilógrafas, secretárias, etc.) e no ensino secundário. Os outros sectores resistiram mais à invasão feminina. O salário contribuiu para uma relativa autonomia financeira das mulheres em relação aos maridos e aos pais.
3. O outro factor foi o que se chamou revolução sexual, com a relativização do casamento e a fragilização da família: pílulas e outros meios de contracepção, permitindo forte autonomia (mormente feminina) da actividade sexual em relação à procriação; aumento do número de divórcios, como de casais não casados legalmente e do que se chama 'famílias monoparentais, as mães solteiras e as divorciadas com filhos; movimentos de homosexuais de ambos os sexos; maior protagonismo dos jovens e correlativa contestação da autoridade paterna; maior facilidade de relações sexuais pré- ou extra-conjugais, etc. Qualquer destes factores resultou, por sua vez, do movimento mais largo de transformação da civilização industrial.
4. As mulheres assumem-se assim como indivíduos na praça pública (com salário, profissão, direito a voto, relativa autonomia de decisão sobre a sua vida e a sua actividade sexual, etc.), o que até aí era praticamente reservado aos homens.
5. O movimento feminista - minoritário como organização e militantismo, com algumas grandes manifestações públicas de massa nos inícios dos anos 70, mas com grande impacto junto das mulheres e dos homens - é o detonador e o porta-voz desta grande alteração do estatuto social das mulheres.
O género: um forte dispositivo social
6. Um provérbio, ainda hoje respeitado em muitas aldeias (exemplo de Pardais, no Alto Alentejo, estudado recentemente por Miguel Vale de Almeida), enuncia assim a tradição ocidental multissecular: "do homem a praça, da mulher a casa". Esta divisão tradicional do trabalho e da reprodução era assegurada por um forte dispositivo social de iniciação e de enquadramento das práticas e tarefas sociais, que 'forçava' os rapazes e os homens a serem masculinos e as raparigas e as mulheres a serem femininas, com diferenciação nos modos de vestir e de se comportar, de sentir e de pensar, com acesso diferente aos recursos materiais e intelectuais da sociedade. É a este dispositivo social extremamente forte que se chama género. Como ele tem uma grande inércia de reprodução (é 'exterior', 'transcendente' às consciências de cada um/a), as alterações do estatuto social feminino vieram provocar um embate violento, nomeadamente nas mulheres que vêm ocupar um lugar masculino, pondo-lhes graves problemas de identidade: "quem sou eu, mulher num mundo masculino? como fazer para me fazer respeitar na minha nova autonomia?". Assim se acelerou a transformação do género, para o adaptar à nova situação de civilização.
7. É neste contexto que no campo da teoria irrompeu, a partir dos anos 60 mas sobretudo ao longo dos anos 70, os chamados Women's Studies (de origem americana), os estudos sobre as mulheres e sobre o feminino: nas ciências sociais (antropologia, sociologia, história), na psicanálise (com crítica do modelo 'masculino' com que Freud interpretou a estruturação psíquica das mulheres, a célebre 'inveja do pénis'), na filosofia (pioneira francesa: Luce Irigaray), nos estudos linguísticos e literários, mais recentemente também na biologia, mas com forte propensão interdisciplinar.
8. A grande tese que foi avançada consistiu justamente na distinção entre o género (feminino/masculino) e o sexo (mulher /homem), beneficiando da distinção (nomeadamente antropológica, mas com uma muito antiga tradição filosófica) entre natureza, biologia, por um lado, e cultura, sociedade, psicologia, por outro. Mas o género apresenta-se historicamente, em todas as sociedades conhecidas, de forma não simétrica, como um dispositivo hierárquico de dominação das mulheres pelos homens.
9. As primeiras formulações assentavam na ideia da permanência do biológico, do sexo como um invariante, em contraste com a variablidade do género com as sociedades, quer as ditas 'primitivas' estudadas pela antropologia, quer as da longa sucessão histórica ocidental (sociedades grega e romana, cristandade medieval, Europa). Esta constatação adequava-se, sob a forma de uma evidência - quer da teoria, quer da experiência individual, quer da militância feminista -, à alteração acelerada do género na actualidade.
Os quatro polos da questão
10. O jogo entre estes poderá ser assim esquematizado:
MASCULINO ---------------> FEMININO (variável) (?) (?)
HOMEM ---------------> MULHER (invariante)(?) (cultural) (?) (natural) (?)
em que (?) assinalam as questões teóricas que interrogaremos e as setas ---> as que são, não apenas a questionar teoricamente, mas também a alterar social e politicamente. Essas setas indicam de facto a dupla ideologia - patriarcal (género) e machista (sexo) - a qual pressupõe:
a) que a relação de sexo ou biológica é invariante, com o destino da mulher marcado pela maternidade (pela natureza);
b) que a relação de género resulta 'naturalmente' da relação de sexo, é pois também invariante.
A bipolarização do sexo (homem/mulher)
11. Analisaremos brevemente quatro pontos.
Do ponto de vista da ontogénese, ou seja da evolução biológica:
1) a) houve alterações substanciais dos primatas aos humanos, b) tendo os caracteres sexuais destes mudado nos últimos 100.000 anos;
2) nesta evolução, o sexo sofreu efeitos do género.
Do ponto de vista da morfogénese, ou seja da formação de cada humano:
3) o sexo não é pré-determinado exclusivamente pelos genes;
4) o sexo de cada um/a sofre efeitos também dos seus percursos singulares, nomeadamente a nível da economia libidinal, mas não só.
12. 1)
a)
Australopitecus ----> Homem de Neandertal ----> Homem moderno
(1 milhão anos) (100.000 anos) (10.000 anos)
bacia: 1/3 menor 1/3 menor
crânio: 400 cm3 1600±600 cm3 (4x)
altura: 120 cm 170± 40 cm (1,5x)
gravidez: 21 meses 13 meses 9 meses
O aumento do crânio e a diminuição da bacia obrigaram a que o parto passasse a ser de dorsal (primatas) a ventral, com o feto a dever fazer um duplo movimento de rotação e flexão e, enfim, a uma muito maior prematuridade do nascimento do feto humano, propícia a um maior tempo de socialização do seu psiquismo. A mulher tem assim um tempo maior de ligação às suas crianças (Peyre, Wiels, Fonton, 1991, pp. 34-37).
13. Outra alteração decisiva, embora já se verifique também com as fêmeas de algumas espécies primatas: não há cio na espécie humana, o que implica que os desejos sexuais das mulheres estão desligados dos periodos de fecundação (ovulação), estes nem sequer sendo assinalados exteriormente. Também resulta da gravidez ser por regra de um só bébé, do seu tempo de maturação ser muito mais longo e do elevado índice de mortalidade infantil (e até das parturientes), que a espécie humana é relativamente infértil (P. Tabet, 1985).
14. b) O diagnóstico do sexo de esqueletos humanos do periodo neolítico (Peyre, etc., pp. 38-42) - com grandes diferenças entre populações da mesma época, situadas a cerca de 1000 km de distância: o esqueleto dum homem da Normandia é equivalente ao duma mulher da Renânia - é fácil de fazer para os 'extremos' feminino e masculino, mas difícil para o 'continuum' entre ambos, que corresponde a um bom terço da população, o que dá que apenas 70% desta tem "sexo determinável', "cada sujeito [tendo] uma percentagem relativa de feminidade e de masculinidade. [...] Convém emitir a hipótese de que o sexo não influencia a morfologia dos ossos por um determinismo simples" (idem, p. 40).
15. 2) O 'continuum' dos esqueletos neolíticos, quando comparado com os Brancos americanos actuais, segundo duas variáveis da bacia, leva a que todos esses esqueletos seriam 'femininos' segundo uma delas e todos 'masculinos' segundo a outra. Por outro lado, comparando também com os Negros americanos actuais, verifica-se que, quer as mulheres negras, quer as neolíticas, estão mais perto dos homens respectivos do que as brancas dos seus. "Seria assim um facto sócio-cultural [de género, pois] intervindo na Europa após o Neolítico e dizendo respeito exclusivamente às mulheres que teria modificado um carácter biológico" (idem, p. 41). Trata-se aqui de hipóteses de interpretação científica.
16. 3) São os pares de cromossomas XX que dirigem a formação das características sexuais das mulheres (vagina, ovários, etc.) e os pares XY que dirigem as dos homens (pénis, testículos, etc.), nestas características se contando também a maior altura, robustez física, voz mais grossa, da parte dos homens. Ora bem, até às 6 ou 7 semanas do feto, as gónadas sexuais são indiferenciadas (só após elas evoluirão para ovários ou testículos, secretando estrogénio e progesterona - hormonas femininas - e testosterona - hormona masculina, respectivamente; mas estas hormonas também actuam no cérebro (na sua constituição e no seu funcionamento), podendo, graças à presença de uma enzima, a hormona masculina transformar-se na feminina (Vincent, p. 262); numa questão muito complexa, digamos que cada sexo secreta percentagens maiores das respectivas hormonas, tratando-se assim de dominâncias tendenciais. À questão de saber o que é que determina essa evolução, as autoras, após evocarem algumas tentativas sem sucesso, dizem que essa evolução é "verosimilmente resultado duma sucessão de numerosos acontecimentos agindo de maneira coordenada e regulando-se mutuamente" (Peyre, etc., p. 33). Haverá pois aleatório nesta evolução. Ora, pelo menos 6/1000 indivíduos (o que daria 60 mil na população portuguesa, por exemplo) não são XX nem XY, dos quais 50 num milhão são homens normais com XX e 30 num milhão hemafroditas com XX, havendo ainda, sem indicação de números, mulheres XY (idem, pp. 30-31).
17. O que significa que o sexo de cada um/a não é prédeterminado biologicamente exclusivamente pelos genes, mas depende também do jogo hormonal. Este jogo implica uma parte de aleatório no percurso de cada um, nomeadamente as secreções do hipotálamo (paleo-cortex) estando ligadas ao que sucede no neo-cortex, o qual, por sua vez, joga intrinsecamente com os factores ambientais ou sócio-culturais (e portanto com o género).
18. 4) É esta articulação entre a determinação genética e os efeitos, parcialmente aleatórios e dependentes, via hormonas, do género e dos percursos singulares de cada um no seio da família, etc., que permite perceber que nós somos todos, biológica e psicologicamente, diferentes uns dos outros, embora com um programa genético que é quase totalmente igual em todos os humanos (uma parte muito pequena dizendo respeito a diferenças bio-etnológicas, tipo raça e outras). O que implica também que a nossa 'biologia' se altere durante o crescimento, com os modos de vida, com acontecimentos traumáticos de vária índole, etc. Por exemplo: toda a gente que frequentou o liceu, adquiriu a capacidade de estar durante horas a fio sentada a uma mesa a ler, escrever, fazer cálculos ou desenhos, que foi regulada pela disciplina escolar (jogando sobre hormonas e criando hábitos), capacidade essa que a esmagadora maioria da humanidade passada nunca teve. Se se tem em conta que ser mais magro ou mais gordo, peludo, imberbe ou careca, forte ou fraco muscularmente, e por aí fora, também são diferenças 'biológicas' (que também têm a ver com os genes, mas não exclusivamente), percebe-se que a diferença biologia / psicologia-cultura (e portanto sexo / género) não é uma oposição essencial, mas uma articulação com efeitos recíprocos, em que determinação e aleatório jogam indissociavelmente. Isto é, sendo embora a distinção homem / mulher a mais óbvia (a pergunta "é menino ou menina?" tem em geral resposta clara), não é possível estabelecer categorias herméticas entre homens e mulheres a nível biológico; este não é rigorosamente pré-determinado, mas contém uma parte de aleatório na complexidade de factores que intervêm na constituição de cada humano. Somos homens com parte de mulher (os mamilos, por exemplo, o atestam) e mulheres com parte de homem, a repartição variando caso por caso, a regra estatística sendo que um dos polos se torne dominante.
19. Se dermos atenção às economias libidinais de cada um/a, tal como a psicanálise nos ajuda a entendê-las, a mesma constatação duma bisexualidade primária de todos os humanos se impõe. Aqui está-se numa zona em que mais claramente a oposição biologia / psiquismo (sexo/género) é inadequada, já que são as energias sexuais, sempre excessivas em todas as espécies, que são culturalmente sublimadas. A polimorfia das pulsões sexuais, sujeitas ao que Freud chamou "princípio do prazer", parece ser a razão que levou o género patriarcal a tornar-se sobremaneira rígido ("princípio de realidade"), a forçar essa sublimação no sentido heterosexual. Como os que são chamados homosexuais foram vítimas de tal rigidez ao longo da história, podemos ter uma pálida ideia através do sofrimento dos que hoje têm buscado afirmar essa sua diferença, essas suas diferenças melhor dito, já que também se não trata de categorias estanques e essenciais (sem mudarem nem de sexo nem de género: continuam homens masculinos ou mulheres femininas), mas de percursos singulares libidinais diferentes, em transgressão da norma da adequação sexo-género dominante. Como atesta o facto de haver muitos casos de heterosexuais (com filhos inclusive) que se tornam homosexuais, bem como de pessoas que são as duas coisas, homo ou heterosexuais, consoante o sexo da pessoa que amam. Todos somos pois primariamente bisexuais e é a partir desta bisexualidade que uma sexualidade tende a estabilizar-se, prevalecendo sobre a polimorfia por factores em que o aleatório tem relevância grande (trate-se de 'biologia', de 'género' ou da singularidade dos percursos respectivos).
20. Sejam alguns casos mais atípicos da repartição desta bisexualidade. Estéreis (5 a 15% dos casais): são 'heterosexuais' incapazes de reprodução procriadora. Transexuais (parte dos tais 6/1000): com alguma 'falha' na questão XX/XY, sem diferenciação completa entre os órgãos sexuais, podem mudar de sexo e de género (sendo em regra estéreis), querendo ser hetero-sexuais e hetero-género. Travestis: não mudam de sexo, mas de género (homo-género).
A bipolarização do género (masculino/feminino)
21. O casamento sendo estrutura decisiva de todas as sociedades conhecidas, parece óbvio que seja ele o factor que cristaliza a bipolarização do género, como dispositivo que distribui os homens / mulheres de cada sociedade pelas tarefas e práticas que esse dispositivo define como masculinas e femininas. Segundo a tese de Lévi-Strauss em Structures élémentaires de la parenté (P.U.F., 1948), o tecido social constitui-se pelas alianças de casamento entre linhagens, em geral patrilineares, que entre si trocam as suas filhas (ou irmãs), segundo regras mais ou menos estritas (segundo lógicas não conscientes, que o autor restituiu de forma brilhante), as quais constituem também, simultâneamente, as próprias linhagens como estrutura do tecido social. Essas regras postulam sempre (universalmente) o interdito do incesto (entre os homens e as respectivas filhas, irmãs e mães sempre, algumas outras parentes próximas consoante) e a exogamia das raparigas, que vão pois casar noutra linhagem (a que são 'estranhas'). Existência de linhagens e casamentos, interdito do incesto e exogamia, bem como o respectivo dispositivo do género, são fenómenos sociais, são a ossatura essencial de cada sociedade que garante a sua reprodução enquanto tal de geração em geração, em vez de ser constituída por 'ilhas familiares'.
22. Esta ossatura enxerta-se na diferença sexual entre homens e mulheres, a qual, por sua vez, é a condição (em qualquer espécie complexa, vegetais ou animais, com macho e fêmea e com morte dos indivíduos), da reprodução da espécie de geração em geração. Se se tem em conta, como vimos, a relativa infertilidade da espécie humana e a também relativa polimorfia biológica (e libidinal) dos sexos, percebe-se que não houve até hoje reprodução da espécie humana dissociável da reprodução das sociedades em que ela se organiza. Já Aristóteles definiu os humanos como "animais sociais" e "animais com linguagem" (ou cultura), isto é, biologia (sexo) e sociedade-cultura (género) são indissociáveis, não podem ser opostos (também Lévi-Strauss colocou o interdito do incesto como escapando a esta oposição tradicional). Na situação actual de acelerada transformação do género, temos pois que analisar esta questão: quais os limites desta transformação? Como jogam os interesses e desejos dos indivíduos, face aos das sociedades e da espécie? Como foi esse jogo no passado?
23. O mínimo que se pode dizer é que ele não foi meigo para as mulheres. P. Tabet (1985) defende que, diante da relativa infertilidade da espécie humana (§ 13), todas as sociedades tiveram que forçar as mulheres a exporem-se o mais possível ao coito e ao risco consequente da gravidez (sem saberem em que alturas ela é possível, sabemos hoje que num periodo mensal sempre muito curto, no máximo de 48 horas): o casamento é a instituição que provoca essa exposição. O dossier que a autora apresenta é catastrófico, de tal forma é grande a violência a que os homens (maridos e pais, por vezes também com a cumplicidade de outras mulheres da linhagem do marido) sujeitam as mulheres que se revoltam diante desse destino. Esta violência é aliás a confirmação mais cabal da polimorfia do sexo biológico e dos desejos sexuais (hetero ou homosexuais). Há que dizer que há casos frequentes descritos por antropólogos em que sociedades tribais abrem lugares para homosexuais e outros do sexo masculino, da mesma maneira que o divórcio, a poligamia e até a poliandria são por vezes instituidos.
24. Limitemo-nos agora às sociedades da civilização ocidental. Estas são patriarcais, como todas as sociedades de classes e Estado (com agricultura, criação de gado, classe guerreira e monarquia): a sua base é a casa, que é simultaneamente unidade de parentesco e unidade económica (em geral, à base de agricultura e de gado). O género institui simultâneamente a divisão sexual de reprodução (homens destinados a serem pais e mulheres a serem mães) e a divisão social e sexual do trabalho (tarefas guerreiras, políticas, religiosas e de trabalhos fisicamente mais duros para os homens; tarefas domésticas, a ver com a reprodução dos corpos e seu sustento, para as mulheres). Enquanto que a divisão social do trabalho conhece outras formas também de separação entre classes sociais (escravos, servos feudais, etc.), em resultado, quer de vitórias na guerra, quer de outras formas em que o poder das armas permanece decisivo, sacramentado ou não com formas religiosas. Ora bem, ainda aqui parece que factores biológicos (maior estatura e força física dos homens) são condição desta maneira de se organizar a sociedade e o género, já que a guerra é a condição essencial destas sociedades, as classes guerreiras procurando sempre acrescentar os seus domínios e devendo sempre defendê-los da cobiça de outras.
25. Atendamos agora a alguns aspectos específicos do polo masculino do género patriarcal. Luce Irigaray (1974, 1977, ver Belo, 1987, § 42, com alguns extractos dessa filósofa) mostrou como a filosofia greco-ocidental se estruturou de forma patriarcal, com o primado do um-uno, do centrado, do visível, do sólido (como o phallus masculino erecto), sobre o duplo (os dois lábios da vagina), o plural e o disseminado (erotismo no corpo feminino), o 'sem-nada-para-ver' (buraco vaginal, caverna), o húmido e fluido do sexo feminino. Pode-se acrescentar que, em concordância com o lugar público do homem e o lugar caseiro da mulher (a casa sendo também o lugar do trabalho agrícola e pecuário sobre a 'natureza'), ao homem foi atribuida a razão discursiva política (o logos, que discute na ágora), o inteligível, a abstração, a alma (platónica), e à mulher a relação à natureza, ao sensível, ao corpo. Mas também a medicina de Hipócrates: a mulher é aí definida pela maternidade, pelas mênstruas impuras e pelos humores instáveis (ligados à 'mobilidade' do útero, para cima e para baixo) (Teresa Joaquim, Menina e Moça).
26. Na Idade Média cristã, o dispositivo masculino parece ter duas formas complementares. Uma, clerical e celibatária (retirando pois o homem da casa, o que continuará a ser dominante até ao sec. XVIII, mesmo para filósofos, sábios e artistas não-clérigos, necessitando de mecenatos para se dedicarem à sua obra), 'penetra' a linguagem e dissocia-a: para o masculino, a linguagem do poder, sob a forma de leis, cânones, dogmas, discursos eclesiásticos e universitários, etc., linguagens visíveis, públicas, perenes, imperativas, coercitivas, executivas (no duplo sentido do termo, governando e matando em fogueiras hereges e feiticeiras), fixas, operatórias, escrevíveis, formais (no sentido de 'com-uma-única-forma'); para o feminino, a linguagem imprecisa, vaga, sem princípio nem fim (sem coerência), tagarela, frívola, fútil, imaginativa, arbitrária, efémera, não-escrevível (mesmo as místicas terão dificuldades em escrever), etc. Linguagem sem corpo versus linguagem do corpo, em suma. A outra forma é guerreira e assume o corpo do homem como força e destreza muscular: na guerra, nos torneios, na caça, nos vários ofícios mais duros. O corpo do homem funciona aí como 'inteiriçado', à maneira das enormes armaduras militares, sem brechas internas e duma só peça, o corpo todo 'erecto' contra o que lhe é adverso. Duas formas que se completam: força da lei, lei da força.
27. A emergência de uma terceira forma do dispositivo masculino que vem acrescentar-se às duas medievais dá-se com o nascimento da Física matemática e ciências congéneres. Ela manifesta-se filsoficamente no célebre Cogito cartesiano e na espantosa 'ficção' que o segue no 4º capítulo do Discurso do Método: "depois, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo, e que não tinha nenhum mundo, nem nenhum lugar onde eu fosse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que pelo contrário, disso mesmo que eu pensava em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; em vez de que, se eu tivesse somente cessado de pensar, ainda que tudo o resto do que eu tinha jamais imaginado, fosse verdadeiro, eu não tinha nenhuma razão de crer que eu tivesse existido [...]". Espantosa, não apenas porque ficção, fingimento, imaginário, isto é, coisas 'femininas' (note-se que 'imaginar o que fosse verdadeiro', como as mulheres são supostas fazer, não garante a existência de que o faz) em que masculino se promove, mas também pelo seu portentoso alcance profético: a racionalidade de tipo matemático e científico tornar-se-á lentamente dominante no polo político das sociedades ocidentais e inscrever-se-á no dispositivo masculino duma razão que finge não ter corpo, a razão dos físicos e dos químicos, dos engenheiros e dos economistas, dos médicos e de todos os técnicos que, enquanto tais, enquanto em tal razão, não têm corpo próprio, seu operar permitindo no entanto transformar corpos, mundos e lugares, como hoje se vê, por via das máquinas e suas energias não-humanas. Homens de razão-sem-corpo alçaram-se assim ao poder, dominantes até à náusea, enquanto um corpo armado de exércitos e polícias, complemento corporal da razão sem corpo, se encarregam de pôr na ordem os corpos desordenados que porventura agitem as ruas.
28. Dos corpos, já se sabe, cuidavam as mulheres que os pariam. Excluidas secularmente da praça pública pelo dispositivo masculino, entregavam-se ao concreto, desenvolvendo uma lógica do cuidado (Teresa Joaquim): à base do gosto estético da casa e dos corpos, do saber cuidar dos pormenores, das crianças, dos doentes, das culinárias, da higiene, das roupas, tudo mundos rebeldes à razão masculina dominante e à sua homogeneização unidimensional. O cristianismo contribuíra para remodelar o dispositivo feminino também, com o privilégio da maternidade e da virgindade (a que se obrigavam, querendo-o ou não, as mulheres que da casa não queriam ou não conseguiam) tutelado pela figura da Virgem-Mãe, em contraponto com a cortesã, também deixada da casa para o serviço extra-conjugal dos prazeres machistas, a figura de Eva marcando as mulheres rebeldes à norma com o estigma das 'tentadoras' (Teresa Joaquim, Menina e Moça). À violência física que força as mulheres à reprodução heterosexual, acrescenta-se a violência ideológica que faz a mulher duvidar dos seus próprios desejos, reprimir de forma 'interiorizada' a sua polimorfia (estes §§ 25-28 são citações de Belo, 1983).
29. Exclusão e repressão ainda de todas as veleidades intelectuais e artísticas por parte de qualquer mulher, estigmatizada desde os Gregos pelo que seria a sua incapacidade radical de abstração, de sublimação estética. O que hoje, à vista do leque imenso de mulheres intelectuais e artistas, não pode deixar de provocar grande espanto. Fica em aberto a questão de saber, como algumas defendem e outras contestam, se há uma 'escrita feminina', ou maneiras femininas de pintar, fazer música ou realizar cinema.
30. Se mosteiros e conventos são, até ao sec. XIII, sem repressão oficial e doutrinal, lugares de possível cultivo de afectos homosexuais, estes tornar-se-ão também razão de sofrimento para os homens cuja economia libidinal escape ao género dominante. Mesmo os que se dão à arte e à poesia, cuja 'lógica do cuidado' os feminizava também, segregando-os numa certa marginalidade que os confinava parcialmente ao feminino do dispositivo: a linguagem enquanto significante-corpo, letra-material em seu jogo rítmico, não domesticada pelo significado da verdade universal, escrita que se impõe ao oral, por assim dizer (Platão, no Fedro, liga a tinta 'líquida' ao pharmakon, droga, remédio, veneno, mortal), linguagem pois de sensação, de imaginação e de corpo, sujeita também à mesma lei de exclusão filosófica que a oferecia de bandeja ao dispositivo feminino. Vê-se pois que muitas mulheres, homens também uns tantos, sofreram, na carne, nos desejos, nas aspirações mais fundas, a rigidez do género patriarcal: ou na resignação, ou pagando cara a rebeldia ao imperativo imperialista da reprodução heterosexual da espécie-sociedade. Mas entre estas duas atitudes extremas, os provérbios parecem atestar que de preferência as mulheres usaram de manha.
A transformação actual do género
31. Recapitulemos, voltando ao esquema do § 10. A variação da bipolarização do sexo foi argumentada, tanto quanto a biologia ainda se buscando o permite, através da bisexualidade primária de cada humano, cada um com parte de homem e parte de mulher, num 'continuum' em que os extremos se afirmam melhor, mas cujos lugares medianos atestam o aleatório do processo de constituição 'biológica' de cada sexo, o que a variabilidade ainda maior de economias libidinais confirma, e já a força esmagadora dos imperativos de adequação à norma da heterosexualidade procriadora dizia como sintoma, como sofrimento de tantas e de tantos. Essa mesma variabilidade, que impede de aceitar que 'homem' e 'mulher' sejam categorias essenciais ou oposições exclusivas, que haja um 'nível biológico' taxativamente determinista e isolável, também questiona que 'masculino' seja sobreponível sem mais a 'homem' e 'feminino' a 'mulher' ("já fui barco, já fui navio / já fui chalupa e escaler / já fui moço, já sou homem / só me falta ser mulher", cantava, sem temer o ápodo de 'maricas', Zeca Afonso). E enfim, o carácter 'cultural' do homem-masculino e o carácter 'natural' da mulher-feminina revelou-se também ser uma elaboração cultural e histórica do dispositivo patriarcal ocidental, apoiado em suas filosofias e medicinas. Resta-nos indagar do futuro das setas da dominação desse dispositivo, do horizonte da transformação acelerada que este está conhecendo.
32. Nem o movimento feminista, nem o movimento 'gay', nem a 'revolução sexual', se justificam por si mesmos. Eles avançaram pelo caminho que lhes foi aberto pelos dois grandes fenómenos que assinalámos nos §§ 2-3, correlativos entre si, mas ambos também consequência última da grande revolução da civilização ocidental, a saber: a substituição das casas de antanho, unidades simultaneamente de parentesco e de economia (§ 24), pelo que se pode chamar genericamente instituições (desde as empresas industriais, comerciais, financeiras, jornalísticas, etc., às do Estado) como espaços de emprego e salário para (quase) toda a população activa, espaços esses separados como regra dos novos espaços do parentesco, os apartamentos em prédios onde moram as famílias, reduzidas estas às funções de reprodução (procriação e sustento no consumo quotidiano). Este alijamento das funções de produção económica é a fragilização da família, foi ele que permitiu a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho que precisou delas, como também provocou a relativização do casamento. Este deixou de ser a ossatura do tecido social (§ 20), substituído pelo próprio tecido das instituições económicas e pelo correlativo mercado (onde hoje se dão as crises sociais).
33. O que, para as sociedades ocidentais mais evoluidas, funcionou bastante bem durante os anos 50-70, digamos, período de grande expansão tecnológica e económica, justamente o periodo de incubação e manifestação em força dos movimentos de militantes feministas e 'gays', como da 'revolução sexual'. Mas a década de 80 e o que já passou da de 90 trouxeram o desencanto das crises e apagaram as fraternidades e sororidades exaltantes dos tempos idos. O desemprego alastra, devido em boa parte às novas tecnologias electrónicas economizando força de trabalho, ameaçando as fragilizadas famílias em seus apartamentos e magros orçamentos de consumo, atingindo sobretudo as mulheres e feminizando uma boa parte da nova pobreza destas opulentas sociedades. As finanças dos mecanismos de segurança social e de pensões de reforma estão em falência, anunciando futuros sombrios a pedir solidariedades difíceis em tempos de individualismo exarcebado. A liberdade sexual, tão dificilmente ganha, é ameaçada por uma epidemia nova diante da qual a medicina está desarmada. 'Last but not the least', o desmoronar do género patriarcal não é de certo o menor factor do que se chama 'crise de valores': de crenças éticas e de crenças no futuro, que as religiosas já antes tinham definhado. Para não falar das ameaças ecológicas, das crises económicas e políticas dos países libertados do comunismo soviético, da fome de tantos países sem saída à vista no dito Terceiro Mundo. É este o contexto em que temos que pensar os horizontes da transformação actual do género: eles não são propícios ao optimismo.
34. Sobretudo talvez para as mulheres, se for verdade que estas sempre resistiram melhor em épocas de catástrofes, ou seja, sempre pagaram o maior preço, quando os homens deixam cair os braços nos desânimos, bebedeiras e outras drogas e suicídios. De qualquer forma, estamos todos no mesmo barco, como se diz, e a questão que me parece se pôr é a de saber se o acesso massivo das mulheres ao mercado e à praça pública poderá dar alguma esperança a estes tempos difíceis que atravessamos.
35. Não creio, como por exemplo defende Christine Delphy, que tenha sentido "imaginar o não-género" (p. 100), isto é, o desaparecimento das 'categorias' masculinas e femininas. Uma tal tese implica, por um lado, que estas não tenham nada a ver com a diferença (e não oposição) entre homem e mulher (posição filosófica contrária é a de Luce Irigaray, mas há que dizer que a literatura feminista teórica recente, ao menos de língua francesa, a ignora totalmente); por outro, que as sociedades se atomizem em indivíduos todos diferentes e que as questões de procriação e de busca do prazer erótico além da procriação (que é um dos grandes bens que se adquiriram nas últimas décadas) não tenham nenhuma incidência no plano social ou cultural. Ou seja, esta tese separa e opõe ainda sexo e género, como aqui se tentou evitar. Julgo mais correcto pensar, como, segundo me parece (que o não pude ler todo), sugere Miguel Vale de Almeida que é já o que se passa em Pardais e a fortiori nas grandes cidades, que o género tende a multiplicar-se em formas mais ou menos diferenciadas de masculinos e de femininos, com a correlativa perca de hegemonia do modelo patriarcal e machista. Este pode aliás sobreviver muito mais acentuadamente, se se atender, por exemplo, aos modelos que aos rapazes oferecem os filmes violentos e os desportos de massa e de alta competição (onde a mixagem de sexos está ainda por se manifestar), e as mulheres (e os homens, porventura) que com tais machistas se queiram relacionar terão que ter muita arte, muita manha, para os modificar.
36. A questão de fundo seria esta: numa civilização fortemente racionalista, isto é, masculina no sentido pejorativo da palavra, que poderão as mulheres fazer, a partir da sua 'tradicional' lógica do cuidado (§ 28), para ajudar à sua transformação, se for verdade que elas se sentem ameaçadas na sua identidade pela racionalidade desse mundo de instituições a que acederam (§ 6)? Pense-se nas questões ecológicas, por um lado, na das relações competitivas de mais adentro das instituições, no 'stress' que elas provocam e a todos ameaça, por outro. Não se trata apenas de 'relações humanas' a melhorar, mas também de tarefas de teoria e de estratégia (institucional, mercantil, política, urbana, etc.), de reelaboração das racionalidades estabelecidas, de abrir nelas, de forma fecunda a todos os níveis, lugar para as solidariedades, os afectos, a convivialidade. Não há que sermos ingénuos: as mulheres têm ainda, por regra, muitos obstáculos a vencer em seus percursos singulares para ganharem os seus lugares, estão sujeitas, como os homens, ao individualismo dominante, poderá não lhes sobrar energia para tais tarefas quase impossíveis, difíceis de articular em discurso, de propor a outrem de forma convincente.
37. Entre as raras utopias que têm aparecido, relevo a de o desemprego actual, provavelmente estrutural e não conjuntural, obrigar a uma redução mais ou menos drástica dos horários de trabalho para que os empregos cheguem para todos, com a consequência de aparecer uma nova tarefa de civilização: a criação de novos espaços de convivialidade social e cultural nos tempos livres acrescidos (André Gorz, Ivan Illich), uma nova polis (Hannah Arendt), espaços esses que permitiriam conter o peso excessivo da economia e do seu discurso nas vidas e nos fazeres das gentes. Esses espaços, na proposta do economista Gorz, seriam mais frugais, com menos consumismo e desperdícios, compensando as eventuais quebras de salários. Também aí parece haver um lugar em que a 'lógica do cuidado' das mulheres (e de homens também) poderá ter empenhos decisivos. Digamos que se trataria de propor os 'novos valores' que permitirão aos nossos descendentes encontrarem motivações para viverem numa terra mais pacificada. Mas as novas gerações de raparigas não são formadas já em ruptura com essa tradição feminina que tornou humanas as casas de antanho? Quem saberá dizer? Quem ousará a esperança?
Bibliografia citada
Almeida, Miguel Vale de, Corações de Pedra. Discursos e Práticas da Masculinidade Numa Aldeia do Sul de Portugal, Tese de Doutoramento em Antropologia Social, Lisboa, I.S.C.T.E., 1994
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Delphy, Christine, "Penser le genre: quels problèmes?", in Marie-Claude Hurtig, Michèle Kail, Hélène Rouch (org.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, C.N.R.S., Paris, 1991, pp. 89-101
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