A lei da selva é anti-ética
A lei da guerra necessita de moral disciplinar
Autoridade e poder substantivo, com seus feitiços
Doação retirada e possibilidade
Uma ética da contingência
Uma ética de não violência
1.
“Deixar ser o ente”, foi a fórmula em que Heidegger burilou algures o que se
poderia chamar a sua ética geral. Ela resulta do retiro da doação do ente e do seu tempo pelo Ereignis, na proposta final de 1962, e como ética poderá
ser dita assim: deixar a um dado ente com que se tenha relação, não apenas mas sobretudo humanos, deixar-lhe possibilidades da forma fecunda que convém à sua doação. É sobre
esta questão que queria reflectir brevemente, duma forma necessariamente
simplista, já que nunca frequentei a bibliografia deste tipo de questões, não
cheguei à filosofia por razões éticas ou existenciais, como por vezes sucede:
assentei-me nos seus bordos para as ciências sociais e humanas, nomeadamente a
linguística por razões históricas, da proeminência estruturalista desta
disciplina nos anos 60 e 70 em que trabalhei em Paris. Mas antes, vindo de questões
teológicas tratadas por um tomismo insuficiente, ia lendo alguns textos de
Heidegger.
A lei da selva é anti-ética
2. A lei da selva, que obriga cada
animal de qualquer espécie a sobreviver comendo o que lhe chegue de outros
vivos, vegetais ou animais, e que segrega hormonas que empurram para os
comportamentos de sobrevivência, não é uma lei ética no que diz respeito às
espécies carnívoras, sem falar de insectos e outros invertebrados. As espécies
herbívoras, tanto quanto eu imagino, não destroem as plantas de que comem as
folhas, já que estas as regeneram e, se elas desenvolveram músculos e astúcias
na evolução, foi para se defenderem dos músculos e astúcias de carnívoros que
não podem fugir ao destino de predadores. E deles os humanos herdaram – ainda
que seus primos primatas sejam herbívoros, dignos antepassados comuns dos
actuais vegetarianos –, tornando-se mais ou menos precocemente carnívoros, com
ajuda do domínio do fogo ou precedendo-o, passando obrigatoriamente pelo
canibalismo ou não, tudo questões que têm os seus especialistas e que não me
parece virem agora ao caso, se for certo, como creio, que os nossos músculos e
astúcias de mamíferos foram herdados da existência colateral de espécies carnívoras,
como já eram muitas espécies invertebradas e vertebradas não mamíferas. O ponto
que importa aqui é que os herdámos da lei da selva, como selvagens que foram os
nossos antepassados antes de aprenderam a cultivar plantas e a criar rebanhos.
E já então essa lei se desdobrara em lei da guerra.
A lei da guerra necessita de moral disciplinar
3. É esta lei da guerra, que a história e a
antropologia atestam inexoravelmente[1],
que põe o problema da violência, outrora dito ‘problema do mal’, que angustiava
teólogos e filósofos, saberem como explicar a origem dele por um Criador
suposto bom: nas nossas línguas, este motivo teológico não era totalmente
separável desta violência, a noção de ‘criador’ se ligando à de ‘criação de
gado’, como à de ‘criança’ e de ‘criado’, tudo entes que teriam em comum a
necessidade de cuidadores para os deixar crescer sem violência, sabendo
discipliná-la. A moral, tenha o nome que tiver em qualquer língua, é justamente
a necessidade social elementar de controlar as dinâmicas hormonais excessivas,
não propriamente de as ‘reprimir’ mas de as disciplinar, com o que este termo
implica de aprendizagem de discípulo, isto é, dessas dinâmicas variadas saber
fazer motivos (motores) de vida social, de vida com os outros, aprender a
discernir nas rivalidades estímulos que não se oponham às necessidades de
alianças na vida doméstica ou social.
Doação retirada e possibilidade
4.
O que é que o motivo heideggeriano de doação retirada pode esclarecer nesta questão
de ética disciplinar? “Deixar ser o ente” terá a ver, para começar, com o
sentido das pulsões hormonais que, de secreção endócrina, são delas mesmas cegas para o exterior e por isso excessivas, como se
sabe desde o choro dos bebés. São justamente, como dizer?, o pólo activo que há que ‘deixar ser’, que não se pode querer
‘apagar’, fazer desaparecer, mas que há que passivar por doação disciplinar, ‘actipassivar’ por
aprendizagem de comportamentos com finalidades de aliança: por exemplo, jogos
com os outros que impliquem um motivo de rivalidade, mas com regras que
obriguem a criar habilidades e a merecer ganhar, ao rival ou adversário que não
ao inimigo, com quem noutros comportamentos se tecem alianças. Educar é deixar
ser aquele que se educa, ainda que
por vezes em revolta contra o educador, sinal de que pode estar a abrir-se-lhe
uma possibilidade que escape a este. O meu filho ou aluno não tem que ser como
eu.
5. O motivo heideggeriano de possibilidade é, de certa maneira, uma retomada da dunamis aristotélica, a capacidade ou potencial de
movimento (implicando ‘força’, dinamização), mas com uma diferença importante,
a da sua temporalidade; sem oposição aos ‘acidentes’ (temporais na sua
acidentalidade), as possibilidades vão-se reconfigurando a partir dos seus
efeitos, devido a ‘acontecimentos’[2]
em que outros igualmente intervêm: ‘possibilidade’ articula-se de muito perto
com ‘aprendizagem’, esta sendo susceptível de suceder uma vida inteira. Este
motivo é o ponto forte quando a questão se põe em termos mais largos, da ordem
do social e político. Se há uma maneira de dizer com brevidade o que é a
exigência da democracia no que
diz respeito a todos e a cada um dos cidadãos, é que ela fomente e respeite
possibilidades, que em cada caso seja esse o critério da sua fecundidade.
Pode-se talvez dizer que este motivo de possibilidade, central em Ser e Tempo, pode circunscrever melhor o motivo de
‘liberdade’ que é muito genérico e se arrisca a ficar esvaziado: porque as
possibilidades são mais claramente individuais e diversas enquanto tais. A elas
corresponde o verbo poder, o
que cada um pode, com a temporalidade que lhe advém de possibilidades
conseguidas abrirem novas possibilidades e dizer-se assim, quer para a frente,
quer retroactivamente (em currículos), a caminhada social de cada um. A outra
vantagem do termo é a de se poder também caracterizar o que barra socialmente
essa caminhada de cada possibilidade com o uso do substantivo poder: o que não deixa ser tal possibilidade, se lhe
opõe, impede a sua doação manifesta. Haverá que distinguir aqui dois substantivos,
‘poder’ e ‘autoridade’, esta sendo provisória no caso da educação, cujo
objectivo é ‘deixar ser’, ou sendo estruturalmente necessária por razões de
especialização, a autoridade dum médico ou enfermeiro, dum engenheiro ou dum
juiz, que são sempre susceptíveis de crítica por outros especialistas ou por
abuso da autoridade exercida como poder.
Autoridade e poder substantivo, com seus feitiços
6. Um emprego numa empresa implica o seu
organigrama de lugares de trabalho onde esse emprego é circunscrito, assim como
regulamentos e directivas das várias actividades que criam formas de autoridade
a que ele é sujeito, os próprios dirigentes devendo em princípio submeterem-se
a eles, o que significará evitar que a autoridade abuse como poder, isto é, que
o lugar de trabalho seja uma esfera de relativa possibilidade, de relativa
autonomia, consentânea com as capacidades do trabalhador. Uma boa parte da
ética ou justiça da organização do organigrama e da sua gestão deverá consistir
neste cuidado das possibilidades dos vários lugares de trabalho, sendo óbvio
que elas serão crescentes com o nível de competência pedido por tal ou tal
lugar; uma maneira simples de conduzir essa gestão democrática da empresa é a
de saber ouvir os próprios, individualmente ou por inquéritos, deixá-los exprimirem as suas reclamações de melhores possibilidades,
com as responsabilidades correlativas. Se bem me lembro do filme ecologista Amanhã, a fábrica de envelopes Pocheco,
em Forest-sur-Marque, no norte da França, de que o filme fala, tem 20 anos de experiência voltada para as
condições de trabalho e de produção e não para o lucro, com um ciclo de
reprodução que tende a dispensar matéria prima nova, recorrendo aos
desperdícios do século XX e vendendo por sua vez os seus para reciclagem de
agricultura. Será um caso exemplar de utopia económica, em que o que conta é o
produto, o processo de produção e o ambiente, tanto o dos trabalhadores na
fábrica como o do planeta, ou seja tudo o que é doado, pessoal e seu saber, maquinaria e matéria prima,
é recebido como tal, como dom que se respeita no cuidar do processo de
produção. Um exemplo de economia que não existe para dar lucro, o que há é
reinvestido.
7. Após este belo exemplo, peguemos na questão
mais geral. O substantivo poder poderá ser abordado através dos indicadores das suas três principais
formas, que já o eram nas sociedades antigas, como revelam os textos dos
evangelhos ditos sinópticos, que contam uma rebelião não armada que avança contra
o poder financeiro e político
envolvendo a religião estabelecida em torno do Templo de Jerusalém e a sua
cumplicidade com o ocupante romano. Esses textos oferecem, a uma leitura que
saiba entender a componente política e financeira dessa estrutura religiosa, a
tríade do que se pode chamar os feitiços (palavra portuguesa donde Marx decalcou o “fetiche”) que coarctam desejos
e portanto possibilidades: o do Dinheiro, o do César e o do Deus dos mortos[3],
o primeiro indicando claramente o poder financeiro, o segundo o poder politico
e das armas e o terceiro o poder de ‘publicidade’, no sentido, hoje mediático,
do discurso que a sociedade publica, das ortodoxias que se impõem, a distância
e por sedução, ao saber dos que, espectadores, são captados pelos diversos doutos
e stars que substituíram os antigos clérigos e os
intelectuais que lhes sucederam: os seus efeitos são de limitação das possibilidades
dos que lhes estão – literalmente – confinados, efeitos de violência social que
se sobrepõe às diversas ‘autoridades’ que a organização social implica como
inerentes à reprodução do conjunto. Mas aqui as coisas tornam-se extremamente
complicadas, que ao fenomenólogo não cabe fazer ciência social, além de lembrar
o testemunho do Amanhã, mas procurar discernir linhas utópicas de justiça,
recorrendo ao motivo da doação e do seu retiro.
8. Os feitiços são armaduras que tornam possível o
poder substantivo, o fazem jogar ao invés do retiro: impõe-se de forma
constrangedora e sofrida aos que se lhes sujeitam sem saberem e poderem
evitá-lo. Impõem o ‘querer ser rico’, o ‘querer vir a mandar’ na politica ou
equivalente, procurar prestígio mediático, tudo maneiras de se atrofiarem
possiblidades fecundas, abertas, de as gentes se encafuarem em poses e etiquetas
de circunstância, demolidoras da vida, de que a gravata masculina oferece a
simbologia, uma corda apertando o pescoço. ‘Sofrida’, porque contra-doação,
restrição de possibilidades abertas pela doação (biológico-tribal),
possibilidades que cada um pode compreender do que vê, ouve e lê, como dizia
Sophia e canta F. Fanhais. Dito duma forma geral, os salários poderiam ser
melhores, se a economia fosse para serviço das comunidades e não para enriquecer
patrões e accionistas; os cidadãos deveriam ser tratados como tal, ainda quando
julgados e condenados; as gentes poderiam estudar, se não fossem aliciadas permanentemente
para sei lá o quê. As doações acabam por se revelarem um imenso desperdício de
possibilidades individuais, e portanto colectivas.
Uma ética da contingência
9. A questão ética atravessa Ser e Tempo, ainda que o autor o negue, nomeadamente na
distinção entre “autêntico / inautêntico” (ou “próprio / impróprio): a
descrição do Mann (‘on’ em
francês) na peugada do Mitsein (ser-com) é de facto uma ilustração do que ele considera “inautêntico”, em
linha com uma longa tradição misantrópica ocidental; há acontecimento da
autenticidade quando a componente da temporalidade do Dasein, ser no mundo, implicando a sua finitude, se desvela como angústia do ser-para-a-morte.
Hei-de confessar que é uma zona do livro que nunca me interessou muito,
justamente porque a dimensão ética não foi o que me atraíu na fenomenologia,
nem no existencialismo sartriano, mas a finitude parece-me ser fulcral para a
questão da doação que será, com o seu retiro ou dissimulação, a grande
descoberta do chamado II Heidegger. A finitude, com a noção de ‘fim’ que retém,
terá a ver com a questão da morte e com a sua ocultação pela alma cristã imortal e pelo seu céu que anula o ‘fim’ que é a morte: é
provável que é aonde se move o pensamento heideggeriano, que tenta
desengatar-se dessa que foi a sua tradição de juventude (minha também). Mas os
Gregos que veneramos como pensadores tinham uma outra palavra, por assim dizer
pré-cristã, a de contingência,
que Platão ilustrava com o par geração / corrupção, ou seja nascimento / morte,
para dizer a radicalidade, não apenas humana mas terrestre, de qualquer vivo,
sendo, por outro lado, os vivos – os que crescem (phuô), os da phusis – o que no terrestre é o mais surpreendente, mais
digno de ser pensado e estimado, como Aristóteles mostrou de forma extraordinária
ainda a olhos de hoje. A própria noção de tempo (chronos) é marcada pela contingência (que é a "facticidade" em Heidegger, ou seja, aquilo que nele muda, releva do tempo): naquele motivo
temporal por excelência a que este filósofo chamou “acidentes” e que afectam os
vivos sem necessidade (por acaso, acontecimentos, contingência), mas também no
que se repete como ciclos,
desde o dia e a noite ao ano, os ciclos das plantações agrícolas que se
inscrevem nos do ano, os da vida de cada um, o próprio par geração / corrupção
indicando nomeadamente os ciclos da vida humana[4].
10. O motivo heideggeriano de doação, tal como eu lhe entendo o alcance, é antes de
mais plural: todos os entes, vivos ou fabricados, são dados por
acontecimentos, ainda que rotineiros
mas podendo não ter sido, dados com suas possibilidades temporais e sem
destinos prévios, já que sempre sujeitos a acidentes imprevisíveis. Essas
possibilidades, dos humanos de hoje, são regradas: temos que comer e dormir diariamente, por
exemplo duma contingência maior e em torno da qual jogam direitos humanos
fundamentais, questões de justiça que devem passar à frente de todas as outras;
regras também dos usos e costumes tribais (familiares, escolares,
profissionais) que, vindo de aprendizagens, são sempre abertos a correcções e
inovações, portanto a alargamentos de possibilidades, que são de cada um e do
seu mundo, isto é, das suas unidades sociais e das sociedades em que elas se
inserem. Este ‘regrado’ consiste nas rotinas das diversas estruturas sociais,
as quais, com suas autoridades, são estritamente necessárias para confortar a precariedade das
contingências de cada um, que não pode ser deixado ao deus-dará na sua
vulnerabilidade face às rivalidades permanentes resultantes da lei da guerra.
Doadas igualmente por tradições e suas correcções, regras e rotinas e
autoridades são o que garante as possibilidades singulares, em unidades sociais e na ordem política de que
elas precisam. É óbvio no caso dos pais e dos professores que a autoridade
deles é para se apagar com as aprendizagens de filhos e alunos, quando eles vão
à vida e ao trabalho.
11. Ora, esta autoridade estrutural,
estruturalmente necessária, é / foi de longa tradição apropriada pelo poder
substantivo em proveito próprio,
coarctando parcial mas decisivamente possibilidades daqueles que contribuem
para o movimento de reprodução das unidades sociais, a quem se pode dar o nome
de trabalhadores no sentido da
reprodução social. Retomemos os três feitiços de forma artesanal, já que as
questões são imensas e não são o meu forte. O ‘dinheiro’ é necessário como
‘propriedade’ de cada um que lhe permite liberdade na esfera do consumo: nenhum
destes dois termos está em questão, mas sim a possibilidade, com origem antiga
e feudal nos tempos dos guerreiros como nobres, de dominadores sociais se
apropriarem como riqueza sua, em dinheiro acumulado, uma parte importante do
que resulta de trabalho doutros. Igualmente, a autoridade política de ‘reger’ (rex) o mundo social com corpos armados, havendo lei
da guerra de que eles são sintoma e efeito, é necessária em vista das leis e
para resultarem em ordem, mas as armas calam as bocas que reclamam justiça para
as possibilidades dos trabalhadores, o poder político resulta em segurança dos
que o exercem e dos outros dominadores à custa das restrições que impõem. Enfim,
o saber, que nas sociedades hodiernas aparece cada vez mais como factor
decisivo de trabalho de compreensão de inúmeras dimensões e solução de inúmeros
problemas, pede acesso facilitado ao conhecimento a qualquer um que manifeste
capacidade de vir a ser um especialista. Aqui é mais difícil de simplificadamente
dizer como é que os que trabalham nos médias, de livros e jornais a rádios e
televisões, se tornam facilmente coniventes com os ‘poderosos’ do capital e do
poder politico, ao servirem o novo “ópio do povo” dos tempos de lazer, tão
necessário enquanto divertimento e festa como o sono nocturno (o ‘ópio’ implica
gozo, Marx deu por isso ao cunhar a célebre expressão).
Uma ética de não violência
12.
Chega-se enfim à questão levantada
pelo título deste texto, entre dom e violência. O poder substantivo é a forma
mais violenta de violência, porque perene, com raízes que as revoluções não têm
conseguido arrancar, mas que se apresenta mascarada de ‘realismo’, de ‘sempre
foi assim’. Em face dela, da lei da guerra que a protege, que fazer? Ser e
Tempo propunha o par “autêntico /
inautêntico”, ou “próprio / impróprio”; ‘próprio’ certamente inadequado face ao
motivo derridiano de “apropriação”, tal como em ‘autêntico’, há algo da
insularidade dos sujeitos e das almas nesta adjectivação. Preferiria o termo de
justo para pôr a questão da
atitude diante da lei da guerra e dos seus efeitos nefastos, como forma geral
da questão ética, se é permitida esta simplificação. Que pode significar
“deixar ser o ente”, se for questão de seu ‘ser’: querer ‘ser justo’ e não se submeter ao dinheiro e ao poder de
César e às respectivas ortodoxias? Deixar desvelar-se as doações de que se é
fruto, tratar com desvelo –
linda palavra heideggeriana da nossa língua – a descoberta da sua contingência,
como quando se diz que se teve “muita sorte na vida”[5],
reconhecimento que, se por um lado é constatação dum certo contentamento com o
que se foi sendo, é também o outro sentido da palavra ‘reconhecimento’,
gratidão pela sorte recebida. Esta duplicidade do reconhecimento é uma
palavra de justo, que reconhece os dons. Que enfrenta a lei da guerra, localmente (como sempre cada um em qualquer
posto que seja) sem o reforço dos feitiços, do poder do dinheiro que compra ou
da instância política ou social que ordena ou das ortodoxias que fazem rebanhos.
Um dos indícios de que se trata dum/a justo/a é a guerra que os poderes lhe
fazem, contraste claro com a desapropriação pelo justo de coisas que aprendeu
na tribo, a despossessão dos feitiços e das suas poses mediáticas, fecundidade
não sabida de dons. A fecundidade é um outro indício, quando sucede algo que
vai além das possibilidades aprendidas, inesperado por isso (“rasto
diacrónico”, em linguagem de Levinas). Experiência de algo que em linguagem
cristã se chamava “graça”, a gratuidade d’ “a rosa (que) é sem porquê” (Angelus
Silesius, poeta alemão citado por Heidegger), tudo nela é dom.
13. A doação retirada heideggeriana é pré-ética,
já que também é doação da violência, aqui Heidegger (§ 9) teria razão. Se o dom
triunfou na não-violência do Mahatma Gandhi, que obteve a independência da
Índia face ao império inglês, desvalido é certo das consequências da guerra
mundial, ele está longe de assegurar sempre a fecundidade: a ‘graça’ pode virar
‘desgraça’, como aconteceu ao líder galileu dum movimento popular a quem propôs
uma ética de doação não violenta, se se pode dizer, para enfrentar desabridamente
os poderosos do seu tempo no Templo deles, mas que acabou traído e crucificado.
[1] Como é
manifesto na seguinte citação do antropólogo francês Pierre Clastres que evoca
o silêncio do discurso etnológico recente sobre a guerra nas sociedades
primitivas, em contraste com a unanimidade, desde o sec. XVI, dos viajantes,
exploradores, missionários, comerciantes ou estudiosos: “americanos (do Alaska
à Terra do Fogo) ou africanos, siberianos das estepes ou melanesianos das
ilhas, nómadas dos desertos australianos ou agricultores sedentários das
florestas da Nova Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como
apaixonadamente dados à guerra; é o seu carácter particularmente belicoso que
impressiona, sem excepção, os observadores europeus. [...] o que é suficiente
para autorizar uma constatação sociológica: as sociedades primitivas são
sociedades violentas, o seu ser social é um ser-para-a-guerra”. P. Clastres, "Arqueologia
da violência: a guerra nas sociedades primitivas", in Clastres e outros, Guerra,
religião, poder,
[Libre 77-1],
Ed. 70, 1980. Para a História,
bastará a constatação de que as sociedades sem industrialização foram dominadas
politicamente por castas nobres de guerreiros.
[2] ‘Acidente’ e
‘acontecimento’ são motivos equivalentes, implicando ambos a não necessidade ou
imotivação, só que o primeiro é mais conotado negativamente e o segundo
positivamente, mas ambos são alheios à diferença entre bem e mal.
[3] Esses três textos, de
Marcos, Mateus e Lucas, com as suas diferenças também políticas, opõem o seu
principal actor, Jesus como Messias que fomenta o “reino de Deus”, ao Templo que, na altura em que o primeiro deles foi
escrito, acabava de ser incendiado por Tito no ano 70. Ora, este reino
escatológico por vir (que não veio) cifra-se no debate ideológico em três
oposições: “Deus e o Dinheiro” (Mateus 6,24,), “Deus e César” (Marcos 12,13-17
e paralelos nos dois outros), “Deus dos vivos e Deus dos mortos” (Marcos 12,27 e
paralelos)
[4] A nossa noção de história, com uma finalização, era ignorada por eles,
não passando de acidentes em série, por assim dizer. O antes / depois de Cristo
assinala como a noção iraniana e hebraica de escatologia marcou a possibilidade
da noção moderna de história, de que as filosofias de Hegel e depois de Marx
revelam as marcas históricas e evolutivas do século XIX, industrial e pós revolução
francesa.
[5] Como
disseram Miguel Lobo Antunes e Rui Vilar, exemplos que retive dos bons tempos
das entrevistas de Ana Sousa Dias no 2º canal da RTP.