1. O livro do filósofo João Sousa
Dias chama-se Marx, Zizek & Beckett e a democracia por vir (Documenta, da editora Sistema Solar, antiga
Assírio & Alvim, 2014) e lê-se com o gosto raro que oferece uma escrita de
paixão filosófica, tratando de questões que nos estão próximas; ainda que não
se adira a todas as argumentações, acede-se muito facilmente a um estilo não
académico de pensar em filosofia (mas o autor, de cumplicidade antiga com
Deleuze, não gosta de ‘argumentos’, acha que escreve sem argumentar). O livro
compõe-se de dois textos do autor: um faz-se em torno dos autores citados no
título, da “Ideia de comunismo” que Zizek (e Badiou)[1]
defendem, relê Marx a pensar no capitalismo actual bem diferente do da época
dele; o outro giza em torno de J.-L. Nancy[2],
sobre a sua questão da democracia por vir; depois mais de metade do livro é um
diálogo muito agradável de ler com dois amigos, editores da revista Nada, João Urbano e Jorge Leandro Rosa, que discutem um livro anterior
de Sousa Dias (que não li) provocatoriamente intitulado Grandeza de Marx –
por uma politica do impossível
(Assírio & Alvim, 2011).
2. Quiçá se possa dizer que nestes
textos há praticamente só filosofia, quando as questões pedem a considerações
da lógica histórica integrada das sociedades contemporâneas que a filosofia
pode incorporar mas lhe é alheia; por exemplo, nas pp. 100 e seguintes, é
manifesto que a dimensão industrial do capitalismo é negligenciada, quando se
defende a importância da “revolução industrial” contraposta à “Revolução
Francesa” e “a máquina a vapor” às “ideias”, sugere-se que se está pensar
empiricamente por justaposição de ‘coisas’ sem saber ligá-las, como se o
capitalismo moderno pudesse ser pensado sem a industrialização que a máquina a
vapor inaugurou. As “forças produtivas” de Marx referem-se às máquinas que os
proletários ‘possuem’ fisicamente, as “relações de produção” são as dos
proprietários financeiros e jurídicos delas com os mesmos proletários a quem
pagam salários, é a unidade contraditória de “forças produtivas” e “relações de
produção” que constitui o “modo de produção” (eu bem sei que é uma tese
althusseriana). Sem pretender nenhuma recensão, nem do que é exposto e
discutido nem do que seriam as minhas discordâncias, tenho três principais: à
Ideia de comunismo, ao leninismo hoje, à rejeição esquerdista do mercado.
3. Não chego a perceber se a Ideia
de comunismo é uma Ideia
hegeliana, se platónica, se uma mistura de ambas; em qualquer caso a própria
noção europeia de ‘ideia’, que vem de Descartes, me é filosoficamente estranha,
já que ela implica a exterioridade do pensamento à linguagem e às antropologias
das várias sociedades, nações ou até regiões: a ‘ideia’ europeia é correlativa
da oposição sujeito / objecto (o Cogito no Discurso do método é ficcionado como sem corpo nem lugar nem mundo).
A Ideia de comunismo parece ser algo que paira anhistoricamente, o que creio
que o ‘espectro’ de Derrida[3],
igualmente citado, não é. Se bem entendo, mas não estou certo de disso, porque
conheço menos bem essa época derridiana, o espectro é algo de ancestral que
joga em paralelo, se dizer se pode, com as palavras e textos, mas na sua
textura imagética, pessoalizada, acontecimental. Da mesma maneira que as
palavras fortes, os textos de ameaça, jogam na sua posteridade como
antepassados não enterrados, assim tais ‘acontecimentos’: o espectro da
revolução francesa na Europa do século XIX, ou na nossa actualidade, o do 25 de
Abril, o de Sócrates, o José, tal como o Sócrates grego foi espectro de Nietzsche.
Quanto ao ‘comunismo’, o seu espectro é estalinista, vejo dificilmente que de
Marx se possa depurar uma Ideia de comunismo capaz de actuar historicamente.
Julgo que o motivo de ‘comunismo’ de Nancy não é de origem marxista, sabendo
embora do contexto histórico da palavra, desejando porventura purificá-la, ele
(que nunca foi marxista) reclama-se dela mas a partir do ‘comum’ social entre
os humanos, que o individualismo exacerbado actual impede de compreender como
primacial, quase como o nosso comum biológico também: o da língua, dos usos que partilhamos, comum que nos faz semelhantes uns aos outros que nos
rodeiam.
4. Sendo assim, o ‘comunismo’ de Nancy virá mais
das gentes e leva-me a não crer que o leninismo seja ainda operante, de qualquer forma que se o
pense. Antes de mais, o leninismo é a forma do marxismo que só foi viável
historicamente, aquém das formas totalitárias, como aceleração industrial de
sociedades ainda demasiado rurais para a revolução. E depois implodiu, duma
maneira ou doutra, mesmo na China, onde quero crer que o que sobrevive como
estrutura politica é mais a tradição mandarim dum império com mais de dois
milénios do que o comunismo (espectacular: Sousa Dias cita Plekhanov, primeiro
discípulo russo de Marx como tendo previsto o futuro comunismo soviético como
“um czarismo pintado de vermelho”, p. 83). Nunca, em nenhum pais suficientemente
industrializado, o marxismo leninista vingou, mas sim o marxismo revisionista,
isto é, a social democracia (só uma grande ignorância histórica pode entender
esta denominação num partido de centro-direita como o nosso coelhismo
passadista) e esse ‘nunca’ implica, creio, que não haja actualmente hipótese
nenhuma de revolução em termos de tomada de poder, como a francesa ou mesmo o 5
de Outubro ou o 25 de Abril, porque não há hoje nenhuma instância de poder
político que possa ser ‘tomada’ face ao capital internacional electrónico.
Teremos que esperar que os povos forcem os governos democráticos a legislação
internacional que se imponha às formas electrónicas de capitalismo, uma Nova
Internacional, dizia Derrida, que a Teia electrónica ajuda hoje a tornar um
pouco mais verosímil.
5. Também a rejeição do mercado (p. 105-6) me parece sofrer da mesma dificuldade
em pensar a democracia por vir. Dele mesmo, enquanto mecanismo de troca entre
quem vende e quem compra numa sociedade de altíssima especialização do
trabalho, o mercado é uma liberdade de escolha do que se quer consumir, dentro
dos limites dos orçamentos familiares, é claro. Basta saber da distribuição
mensal de alimentos em Cuba pelas famílias (ovos, açúcar, frangos, pão, etc),
um racionamento como houve durante a guerra de 39-45 mesmo em Lisboa (lembro-me
de garoto de 11 ou 12 anos ir de eléctrico da Rotunda para as bichas da
manteiga no Campo Grande), para se perceber que não é viável em termos
liberais. E é de liberdade contra o neo-liberalismo que se trata também. O mais
difícil é a estrutura do capital quando se torna especulação sob o nome de ‘mercado’,
quando isso domina electronicamente a economia dos verdadeiros e necessários
mercados, os que têm a ver com produção de coisas e com salários de gentes.
6. Mas não quero discutir com um bom amigo e ficar
apenas nas nossas divergências, quero arriscar-me também a dizer coisas discutíveis
e que me obriguem a engolir críticas de outros. Julgo que hoje a contradição do
capitalismo é maior em relação às técnicas que se estão desenvolvendo e que dão
possibilidades maiores às gentes, que já foram razões dessas, telefones,
rádios, televisões, que ajudaram à implosão das sociedades fechadas e
repressivas dos comunismos e dos militares latino-americanos. Hoje computadores
e a Teia universal deles jogam também a nosso favor. Ora, creio que uma tendência
que parece que o capitalismo ocidental está a conhecer é dupla: por um lado, o
desemprego crescente, que parece resultar dos robots e computadores
substituírem os trabalhos de rotina, por outro os quadros de alta posição em
bancos e empresas multinacionais são os novos ‘ganhadores de dinheiro’, que
querem salários e comissões, lucros pois, cada vez maiores e encontram nos
‘comandantes’ financeiros cumplicidades por necessitarem desses quadros para
levar avante os interesses das empresas, cada vez mais complicados e pedindo
‘espertos’, como se diz em francês. Foi esta ganância que gerou a crise
bancária desde os subprime e
da falência do Leman’s Brothers e não deixa de ser sintomática a maneira
antidemocrática como os ‘comandantes’ políticos se deram como primazia salvar
os bancos, os seus quadros (nenhum foi preso pelos seus crimes), à custa das economias,
obrigando à austeridade (eu gosto de ser austero!) que é cortar os serviços de
saúde e de segurança social, pensões e salários. Mas ter melhores máquinas e
menos trabalhadores e menos salários também significa falta de compradores e
menores lucros, o que obrigará a diminuir progressivamente os horários de
trabalho e aproximar-se do pleno emprego, em vez da ilusão de crescimento indefinido. Imagino, na minha boa ingenuidade,
que haverá aqui uma possibilidade (cheia de sofrimentos, como todas as revoluções)
de um certo esvaziar da máquina técnico-financeira face a uma crise que se
acentua sem solução ‘capitalista’, como está a suceder na Grécia, contra toda a
lógica politica da ‘União’ Europeia. E então as novas possibilidades das gentes
com muito tempo livre de emprego são de afazeres novos e livres, desde
desportivos a culturais e retomas de maneiras antigas, artesanais ou agrícolas,
sei lá! Criar-se-ia uma rede paralela ao Ge-stell técnico-financeiro donde os
salários baixavam, mas a rede tornar-se-ia muito mais interessante como
imaginação para viver do que as rotinas dos call-senters ou das cadeias de montagem.
E onde suceder que não haja sequer produção por não haver capital que se
invista, então far-se-iam coisas para se trocarem, criando novas moedas sociais[4]
como se faz já em vários lados. Foi isto que anunciou ecologicamente há 35 anos
André Gorz no seu Adieux au prolétariat. Au-delà du socialisme (Galilée, 1980). Assim se partilharia o comum.
7. Mas é claro que se trata duma perspectiva
limitada a uma sociedade, pensá-la em termos de Ocidente já é difícil, ter em
conta a Ásia, a África e a América latina mostra bem os nossos limites de
perspectivar. Valha-nos a filosofia, ler este agradável livro e discuti-lo.
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