1. É hoje frequente ouvir ou ler pessoas
responsáveis, intelectuais ou políticos, lamentando, face ao que se deplora
como ‘consumismo’, o declínio do horizonte da transcendência, pensada esta em
regra na sua forma religiosa tradicional, como foi na Cristandade medieval
pré-europeia. Foi o caso dum filósofo de origem italiana, Luciano Floridi, que
ensina em Oxford filosofia e informática, que, sendo não crente, introduz uma
novidade (Público,
26/12/2017): a crença em quem não se pode provar a existência deixou de ser
possível, então os não crentes podem esperar que ele exista, essa esperança
substituindo a impossível crença: “eu não acredito em deus, espero é que ele
exista” (foi o jornalista que o entrevistou ou ele próprio quem grafou o d minúsculo?). Uma entrevista tem a vantagem de o
jornalista poder fazer perguntas que espevitem o entrevistado mas também tem
pouco espaço-tempo para detalhar a argumentação. A questão é a de saber se esse
deus que se esperaria é o mesmo em que se acreditou no Ocidente ou se a cada um
o seu, consoante a experiência e a qualidade ética. Mas se, ainda que com
minúscula, vem trazer a
transcendência contra a imanência do consumismo, deve ser difícil de evitar a
oposição entre os dois termos, que a civilização ocidental desconstruiu e donde resultou que as grandes massas de
população, que sempre foram crentes nas crenças propostas pelo seu tempo, se
tornaram consumistas na época do mercado dominante. Ou seja, quer o filósofo da
informática voltar para trás? Não é provável, deixemo-lo em paz, agradecendo o
estímulo: há algum tempo que pressinto que me devo medir com esta questão da
transcendência, a transgressão positiva de Adão e Eva fornecem uma pista.
2. O comum ‘trans-’ que diferença esconde entre os
dois termos? Segundo as etimologias, um deles ‘ascende’ além da partida que
deixa ficar para trás, sem nenhum pé na imanência, já que se presume que a
esperança é de tipo da aposta pascaliana, aponta para o após-morte; o outro
(pro)gride além, ‘gresso’ reenvia para os ‘passos’ que se dão para além do
espaço que se abandona, o dos usos e costumes da tribo, não deixa pois a imanência
terrestre que todavia se altera com a transgressão duradoura. Posta a questão
nos termos da fenomenologia que aqui se pratica (tanto quanto), pode-se propor
que a biologia molecular nos ensinou que de bioquímica, física e electricidade
de iões somos feitos, que tal será aproximadamente o nível básico de imanência
que é o de cada bebé que nasce, mas o ‘aproximadamente’ indicia que o quadro
comunitário em que se nasce já oferece a possibilidade de transcender esse
nível básico, já o promete. Porque a unidade social familiar e económica é mais
do que a bioquímica da nossa biologia e da exigência de alimentação. A captação
do fogo, o uso de coisas para outros fins, depois a invenção de instrumentos, e
mediando estas invenções a linguagem que as ia nomeando e criava mitos
relacionando a comunidade actual com os seus antepassados inventores, eis o
passo decisivo da transgressão da bioquímica biológica. Mas estes passos foram
deles mesmos também passos da mesma bioquímica: por um lado, porque a
alimentação e a defesa na selva eram o objectivo fundamental deles, o que os
estimulava, ou seja bioquímica que estimulava a ultrapassar a bioquímica por
razões da bioquímica, mas também porque essas invenções implicavam práticas e
estratégias mais ou menos complicadas que se ensinavam aos novos para se
transmitirem de geração em geração, e a aprendizagem significa que essas
práticas aprendidas, tornadas rotina, se biologizaram quimicamente, como
manifesta a espontaneidade ganha que antes não havia. Isto é, os automatismos
ganhos nos novos gestos são a assunção deles pela bioquímica neuronal.
3. Pode-se dizer que é este conjunto de práticas
comunitárias que preenche o que Heidegger chamou cuidado em 1927 e, nos ensaios e conferências dos anos
50, o habitar que define o
humano. Nalguns desses textos,
ele propôs uma Quadrindade (Geviert) do Céu e dos Deuses, da Terra e dos Mortais, onde mantinha a diferença
Céu / Terra como medida dos humanos, tal como, a partir da mitologia, ela fora
proposta, quer pelo livro profético do Deuteronómio, quer pela República de Platão e foi estruturante dos paradigmas de
habitação ocidentais. Foi essa oposição que foi desconstruída pelo processo
histórico de invenções que foi alterando as práticas comunitárias,
desconstrução essa que as massas consumistas puderam presenciar no final dos
anos 60, quando Armstrong pôs o pé na lua e confirmou que, vista dali, a terra
também era um astro do céu. Também nesses anos se ia espalhando entre as
pessoas que liam livros a descoberta da biologia molecular que explicava enfim
o funcionamento e a reprodução das células, portanto o crescimento dos vivos e
ainda a sua reprodução, o grande mistério da fecundidade das agriculturas e
rebanhos, e dos humanos em sua sexualidade, o qual fora o segredo dos Deuses de
quem dependiam as economias.
4. Há um belo argumento de Floridi para a
“esperança”: “algumas das maiores conquistas da humanidade ocorreram porque
sempre tivemos esperança em algo mais e nunca nos contentámos com o que
existia”; este argumento não chega para a transcendência dele, é todavia um
óptimo argumento para a transgressão. Com efeito, o que são as invenções, as de
ordem técnica, por exemplo? São fruto de algum desconforto com os instrumentos
e meios que se herdaram para a habitação, insatisfação de alguém com a
imanência da sua rotina que leva a transgredi-la num dado ponto que a modifica
parcialmente: há uma relativa saída dum aspecto do paradigma dos usos para o
melhorar, transgressão essa que, em geral, é boa para os mais novos que a
acolhem e má para os mais velhos que a reprovam. Mais óbvia esta transgressão
do paradigma dos usos com a invenção das literaturas e de outras artes,
musicais, pictóricas, esculturais, que todavia também retornam ao habitar como
cultura em sentido corrente, a manterem elevado o nível do humano, que
justamente já não corresponde a exigências da bioquímica biológica e nesse
sentido pode ser dito transcendê-la (razão escondida porventura do interdito
hebraico das imagens, como se fizessem concorrência ao divino): transcendência
estética dos artistas e dos que entendem as artes como transgressão do
utilitário da habitação. Acrescente-se o pensamento filosófico e científico,
com o que ele sempre teve de raridade, de tocar pouca gente, difícil a
abstracção como ruptura intelectual, transgressão dos paradigmas comuns que o
comum dos mortais não conseguia acompanhar. Mas foi o que veio a desaguar nas
invenções da tecnologia actual e a tornar possível o famigerado consumismo.
5.
Falta a transgressão maior, a
espiritual, a mais radical, porque corta com o paradigma naquilo em que ele
excede as exigências da bioquímica biológica, não apenas com o luxo e a sua
tranquilidade, mas também com o próprio consumismo (sem contar pois com os que
buscam transcendências íntimas por via bioquímica). Mas para a ter em conta, é
necessário dar atenção a outra vertente da habitação, descurada por Heidegger,
aquela que tem que ver com a apropriação além das exigências da bioquímica biológica, com a busca do luxo da
habitação em termos de se mostrar aos outros, vizinhos, rivais, concorrentes,
como os melhores, os mais fortes, hábeis e poderosos em artes e astúcias das
guerras. Escravos, servos, proletários, foram a condição histórica da situação
de poder social conseguida, como a forma de transcendência que perseverou em
linhagens e ranks: a chamada propriedade privada, de que o que é comum de todos
foi privado, incluindo sobretudo a energia bioquímica do trabalho dos que, por
força da guerra ou por fraqueza social herdada, não têm outra maneira de
satisfazer as suas exigências bioquímicas imanentes. Ou seja, esta
transcendência de poder e riqueza social produziu uma recíproca imanência de
pobreza e miséria, em verdadeira oposição social. E a questão é a de saber se,
quando se fala de transcendência, se tem ou não em vista também estoutra e os
seus efeitos nefastos.
6. Sem que eu conheça mais do que o que pelos
médias nos vem, não creio que se possa negar que há muita gente hoje que, de
forma mais ou menos adequada, responde a apelos de transcendência em termos de
cooperação em associações que buscam minorar esta imensa miséria social nos
arredores de si ou rumando ao longe, enquanto outros se dedicam a formas de
arte, ou de investigação científica, ou outras ‘vocações’, como se dizia a
transgressão espiritual, mais ou menos radical, dos paradigmas da imanência tribal.
Não deixa de ser notável a resposta dos evangelhos a esta questão, que não
propõe sem mais uma ‘conversão a Deus’ – “não é dizendo-me ‘Senhor, Senhor!’
que se entrará no reino dos céus, mas fazendo a vontade do Pai que está nos
céus” (Mateus 7,21) – mas uma conversão
ao pobre: “tive fome e deste-me
de comer, sede e deste-me de beber, era um estrangeiro e acolheste-me, estava
nu e vestiste-me, doente e visitaste-me, na prisão e vieste ver-me” (idem,
25,35-36). Se os evangelhos têm em conta um reino de deus transcendente após a
ressurreição dos mortos (e como é com a bioquímica?), percebe-se que – com o
picante de buscar dar aos pobres a possibilidade de chegarem ao consumismo que
ataranta Floridi – a transgressão que eles pedem inclina-se sobre a
imanência elementar dos paradigmas dos usos como quem recomenda que se comece de novo a evolução histórica
corrigindo-a da sua má transgressão do poder privado. Ora, uma tal transgressão
mantém-se viva e fecunda ainda que não se acredite em nenhum céu transcendente
após a morte, poder-se-ia mesmo dizer que, nesta época de catástrofe planetária
previsível, ela vai ser a grande esperança.