1962. OS PARADIGMAS DE KUHN.
QUANDO HEIDEGGER ACABA
E DERRIDA COMEÇA LENDO HUSSERL
O conceito de paradigma em Th. Kuhn ou a física vista do lado da história
Husserl: A história da geometria vista do lado da filosofia
Ereignis e paradigma
O divórcio entre o laboratório e o mundo da vida
1. O que é que Kuhn tem a ver com a fenomenologia? perguntar-se-á. Antes de vir à resposta nos limites do tempo dum congresso (sem portanto tratar da questão maior das relações entre ciências e fenomenologia nem na consequente revisão do conceito de fenomenologia a que essa questão obriga: encontrá-la-ão colocada no meu texto que está na página internética da Affen[1]): não vos escandaliza que, sinal dos tempos, já que também o atesta a mais recente literatura especializada, quando se faz um elenco largo das questões e sessões correspondentes num Congresso sobre “Fenomenologia hoje”, estejam lá todas as mais legítimas preocupações filosóficas da actualidade, com excepção da que sempre comandou o fundador, a fenomenologia como devendo permitir organizar, fundar dizia ele, o campo fragmentado das ciências? Ora, eu tenho A estrutura das revoluções científicas de Kuhn como o maior passo dado nesse sentido, em história e epistemologia das ciências, na segunda metade do século XX. Fora da fenomenologia, é certo. Servir-me-á de pretexto a coincidência notável (que não terá aqui nunca nenhum estatuto que não seja o da casualidade) de ele ter publicado a sua obra magna no mesmo ano em que a conferência Tempo e Ser de Heidegger acabou magnificamente o seu percurso (que no tal texto sugiro ser de grande fecundidade para repensar o mais do que nunca problemático campo das ciências actuais) e no mesmo ano em que Derrida inaugurou publicamente o seu, traduzindo e introduzindo A Origem da Geometria, um texto de Husserl sobre a origem e transmissão histórica da mais antiga das ciências ocidentais. Já que dois destes textos tratam do problema da historicidade das ciências e o outro da historicidade radical do Ser, não será totalmente gratuito tentar um exercício de comparação entre esses três textos, contemporâneos entre si e mutuamente se ignorando, a buscar luzes que as leituras de uns deitem sobre as dos outros. Nos limites dos textos deste triplo quarentenário[2], esta maneira de procurar encontrar a unidade possível poderá dizer-se assim: como é que a concepção kuhniana das ciências como paradigmas poderá ser aceite na fenomenologia de hoje?
O conceito de paradigma em Th. Khun ou a física vista do lado da história
2. “[...] O termo paradigma recobre o elemento filosófico que está no centro deste [meu] livro”, escreve Kuhn no passo de citar Margaret Masterman[3] que “concluiu que este termo é utilizado pelo menos de 22 maneiras diferentes” (1983, p. 247). Tomo este par de afirmações como sintoma duma certa insuficiência do pensamento filosófico do autor, físico de formação que se tornou historiador das ciências, essencialmente da física e da química. Ora, é esta exterioridade de Thomas Kuhn à filosofia e à história que o torna interessante, como ele próprio várias vezes sublinha virem as revoluções paradigmáticas de alguém que chega de novo ao paradigma, seja pela sua idade, seja pelo seu percurso. Já que é duma revolução paradigmática na história científica das ciências que creio que se trata aqui. F. Gil, num texto de 1979, distingue dois tipos de disciplinas ocupando-se, na primeira metade do sec. XX, das ciências europeias: a história e a filosofia do conhecimento ou epistemologia, esta “tendo praticamente cessado qualquer interrogação sobre a possibilidade do conhecimento enquanto tal”, voltada para “uma ciência aparentemente em vias de acabamento”, como que “uma reduplicação da própria actividade científica” (pp. 165-6), aquela “retraçando o desfile linear e racional das teorias nas diversas disciplinas, a sua confirmação e a sua crítica pelos factos, e os reajustamentos e novas hipóteses que delas recorriam” (p. 165). E assinala em seguida como os trabalhos de G. Bachelard, de A. Koyré e outros, em geral filósofos de formação, vieram pôr em causa esta exterioridade entre história e filosofia das ciências. E é onde Kuhn se situa: como historiador que tem necessidade de redefinir ciência para poder trabalhar na sua história ou, se se preferir, como historiador cujos resultados impelem para essa redefinição.
3. É este estatuto de historiador que, para começar, me parece dever ser posto em realce em vista da compreensão do conceito de paradigma. Como é que um historiador pode saber o que é ‘ciência’ ou ‘teoria’, delimitar o seu objecto de estudo situado no passado histórico, procurando que seja este, e não os conceitos da sua actualidade de escritor, a fornecer o critério dessa delimitação? Um pouco como Lévi-Strauss buscou desocidentalizar-se para compreender as estruturas das sociedades tribais, também aqui Kuhn como que busca despir-se da sua competência de físico do sec. XX para poder compreender os físicos e químicos de outros séculos[4]. Para isso, procura visar antes de mais, ao rés da história, o que os cientistas fizeram: o que experimentaram e escreveram, as suas performances concretas, o material histórico que primeira e, por assim dizer, imediatamente se encontra. Estas performances consistem em resolver aquilo a que chamará, de forma quase provocatória, puzzles. Mas sem nenhuma maçã de Newton, isto é, sem andarem perdidos ao acaso, bem pelo contrário, tendo um guia que mereça confiança na determinação dos enigmas que vale a pena procurar resolver: como sucede nos puzzles, em que se sabe de antemão que há uma e só uma solução, que depende apenas do seu engenho no manusear das peças. Em que é que consiste esse guia? Nos puzzles já resolvidos, nas performances dos cientistas anteriores, já que se buscarão soluções de maneira parecida com as soluções que estes já encontraram em seu tempo. E com esta expressão ‘em seu tempo’, encontramos um outro aspecto essencial da actividade científica que Kuhn pôs em relevo de forma muito original: é que procurar soluções à maneira de como as gerações anteriores as encontraram é sublinhar o aspecto de ‘traditio’, de tradição entre gerações; as novas gerações continuam o labor de resolver puzzles das anteriores, é assim que elas são instituidas em cientistas, se dizer se pode, isto é, os estudantes são feitos cientistas pela aprendizagem (correlato estrito da tradição) e aprendem essencialmente resolvendo exercícios científicos de dificuldade crescente, aprendem resolvendo puzzles. A importância crucial do conceito de paradigma é a de ele ligar e dar unidade a tão variados aspectos da actividade científica concreta que o historiador encontra como suas fontes.
4. O termo é introduzido no início do 1º capítulo, referindo os exemplos históricos da Física de Aristóteles, do Almageste de Ptolomeu, dos Principia e da Óptica de Newton, da Electricidade de Franklin, da Química de Lavoisier e da Geologia de Lyell como performances que “serviram durante longo tempo para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos dum domínio de investigação para gerações sucessivas de investigadores. Se puderam ter esse papel, foi por terem em comum duas características essenciais: o que conseguiram era suficientemente notável para atrair um grupo coerente de adeptos a outras formas de actividade científica concorrentes; por outro lado, abriam perspectivas suficientes para fornecer a estes investigadores toda a espécie de problemas para resolver. Às performances que têm em comum estas duas características chamarei doravante paradigmas [...] englobando leis, teorias, aplicações e dispositivos experimentais, fornecem modelos que dão nascimento a tradições particulares e coerentes de investigação científica” (pp. 30-31)[5]. O verbo ‘atrair’ (attract) utilizado permite perceber o papel do paradigma como ‘força de atracção’[6] dos investigadores (suscitando vocações científicas, digamos) de maneira tal que é ele o laço que institui as comunidades de cientistas, que os liga. Institui os estudantes em cientistas pela aprendizagem desse paradigma, dos seus puzzles e teorias respectivas: é o tema forte, e que foi muito discutido, da alteração da ‘visão’ do mundo ou da natureza pelo paradigma. Embora curiosamente Kuhn não mencione aquele que é o exemplo histórico decisivo: são os efeitos recebidos no liceu do paradigma copérnico-galilaico-newtoniano que nos fazem ‘ver’ a terra a andar em torno de si mesma e do sol apesar da visão contrária dos nossos próprios olhos, e isto sem que a esmagadora maioria saiba sequer como é que Newton demonstrou cabalmente o heliocentrismo.
5. No início do pós-fácio, depois de o ter distinguido da noção de comunidade científica, Kuhn retoma a definição de paradigma para partilhar o conceito em dois sentidos diferentes: digamos que um é global, o outro local. “Por um lado, representa todo o conjunto de crenças, de valores reconhecidos e de técnicas que são comuns aos membros dum grupo dado. Por outro lado, denota um elemento isolado deste conjunto: as soluções concretas de puzzles que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir as regras explícitas que subsistem na ciência normal” (p. 238). Ora, modelo ou exemplo é o sentido da palavra paradeigma em grego e Kuhn diz que foi o que o levou a escolhê-la (p. 254) para significar como as ciências resolvem puzzles a partir de exemplos já resolvidos, assim como diz que “o paradigma enquanto exemplo comum [aos cientistas] é o elemento central do que lhe parece ser o aspecto mais inovador e menos bem compreendido deste livro” (p. 255). Ora, parece-me que a fonte de incompreensão dessa novidade reside na impossibilidade de opôr no puzzle ou paradigma teoria e experiência (e bem assim sujeito e objecto), como faz a tradição saida de Descartes, incluindo a empirista, colocando este par em exterioridade mútua (como sucede nas problemáticas simétricas da verificação e da falsificação)[7]. O paradigma não é a teoria oposta aos puzzles como experiência; mas também não é um único puzzle: ele começa por ser as soluções de tais e tais puzzles na performance inauguradora (por ex. Newton, Lavoisier, Einstein...), isto é, a maneira como os diversos puzzles-paradigmas são ligados entre si. Cada puzzle só é um paradigma por ser o mesmo paradigma do que os outros e por todos serem um mesmo paradigma. As célebres anomalias serão justamente os não-puzzles, não resolúveis como os outros nesse mesmo paradigma, que resistem à ligação que ele opera. O que implica que os dois sentidos de paradigma da citação inicial deste parágrafo sejam, polissemicamente, como que o mesmo sentido: é esta mesmidade que há que esclarecer. É por isso que me parece lastimável que o próprio Kuhn, a propósito de cada um destes dois sentidos, tenha sido levado em 1969 a pôr em causa o bem fundado do termo de 1962 que se tornara emblemático da sua revolução em história e filosofia das ciências, propondo “matriz disciplinar” para o primeiro (p. 248) e “exemplo comum” para o segundo (p. 254). A questão, como se pode ver na maneira como ele procura enumerar os “diversos elementos” dum paradigma ou matriz disciplinar: generalizações simbólicas, partes metafísicas dos paradigmas, valores, exemplos (pp. 248-54), ou como procura na psicologia dos estímulos iguais para todos e sensações individuais uma explicação da relação dos paradigmas aos cientistas (pp. 261-9), a questão é que manifestamente Kuhn não dispõe, no contexto da filosofia analítica ambiente, de conceitos filosóficos para pensar a sua genial descoberta.
6. Resumindo-a: o paradigma é, por um lado, o que liga os paradigmas de cada puzzle resolvido em laboratório, necessariamente fragmentário (“o problema resolvido é a unidade de base”, p. 231, eu subl.), aos dos outros puzzles, formando para o historiador uma unidade científica, sincrónica e diacrónica, digamos em categorias saussurianas (“uma unidade fundamental para o que estuda o desenvolvimento científico”, p. 31, eu subl.)[8]; por outro lado, é o que atrai e liga os diferentes cientistas dum laboratório, assim como os vários grupos de laboratórios e departamentos universitários duma dada geração e de várias gerações. Como é que o historiador pode saber se se trata ou não do mesmo paradigma? O critério será obviamente o das discussões entre cientistas e o seu alcance em relação aos puzzles, em que o que decide são as rupturas históricas, as revoluções científicas. O que implica uma das limitações desta abordagem do historiador: Kuhn coloca sistematicamente o paradigma ao nível da consciência que os cientistas têm dele, das suas convicções e crenças.
7. Telegraficamente e sem poder explicar aqui o que entendo por ‘gesto filosófico’, evocarei o paralelismo do gesto de Kuhn com dois gestos da fenomenologia. Posta em paralelo com a intencionalidade husserliana, a maneira como Kuhn acede sem mais delongas aos puzzles como exercício científico permite pensar a ruptura que ele estabeleceu na história-epistemologia das ciências como o “retorno às próprias coisas” das ciências, ao seu próprio exercício laboratorial, e portanto a dessubstancialização da concepção de ciência[9]. E por outro lado, a maneira como ele se situa radicalmente como historiador, aquém da problemática epistemológica com origem cartesiana, é um gesto que até certo ponto pode ser posto em paralelo com um dos últimos textos de Husserl, A Origem da Geometria, que procura assentar “a possibilidade de qualquer coisa como uma história da ciência”(Derrida, 1962, p. 5).
Husserl: A história da geometria vista do lado da filosofia
8. Com efeito, diz Husserl no início: as “nossas considerações conduzirão aos mais profundos problemas de sentido, problemas da ciência e da história da ciência em geral, e mesmo finalmente duma história universal em geral, da tal maneira que os nossos problemas e as nossas explicitações sobre a geometria de Galileu têm uma significação exemplar” (1962, p. 174). É que as ciências e a filosofia são, em suas histórias greco-europeias, o que garantem a universalidade da história ocidental, o que permite aquilo a que hoje em dia se chama globalização. Mais adiante, ele aproxima-se de Kuhn ao dizer a novidade do seu questionamento, pela convergência entre as duas disciplinas relativas às ciências que F. Gil assinalou: “[...] é certo que a epistemologia não foi nunca considerada como uma tarefa propriamente histórica” (p. 201). Meditemos no título do texto. 1) A que é que Husserl chama Geometria? Que a citação aduzida acima fale da geometria de Galileu, por assim dizer o inventor do que chamamos física, mostra que o sentido husserliano de geometria não é o da disciplina que conhecemos no liceu, mas o que ela teve ao longo da história ocidental: a matemática só ganhou estatuto disciplinar autónomo na segunda metade do sec. XIX, Voltaire por exemplo fala de Descartes e de Leibniz como geómetras, quem lê o Discurso sobre duas novas ciências de Galileu admira-se de ver as questões físicas serem demonstradas “more geometrico”, e até a física da relatividade de Einstein se caracteriza por a restrita ter geometrizado o tempo e a velocidade e a generalizada ter geometrizado a força da gravidade e a aceleração. Ora, é a história toda desta disciplina, desde a sua invenção, atribuida a filósofos gregos anónimos anteriores a Euclides, até aos nossos tempos modernos, que é o escopo de Husserl: que ele assim aceite o mesmo nome de geometria, diz como o filósofo faz confiança - ao invés de Kuhn, o historiador - ao que se mantém como a mesma disciplina ou ciência em tão longa sequência, apesar das várias rupturas ‘paradigmáticas’, mormente a de Galileu [10]. 2) E porque é que a sua origem lhe interessa? Por causa do que chama a “crise das ciências europeias”, isto é, cito Derrida, o “divórcio entre, por um lado, a actividade teórica e prática da ciência no próprio esplendor do seu progresso e dos seus sucessos e, por outro lado, o seu sentido para a vida e a possibilidade de ser relacionada à totalidade do nosso mundo” (1962, 10): alienação objectivista, tecnicização, ocultação, irresponsabilidade do cientista, o nosso mundo tornado incompreensível, são denúncias que vêm já desde as primeiras páginas de Lógica formal e lógica transcendental (1929). Um pequeno manuscrito de 1934, A Terra não se move, é sugestivo: “a Terra em si mesma nem se move nem está em repouso, é antes de mais em relação a ela que movimento e repouso ganham sentido” (Husserl, 1989, 12). Sentido em relação aos nossos olhos, poder-se-á dizer, pois que se trata dum filósofo que privilegia a percepção: divórcio pois entre o que vemos e o que nos ensinam, como eu lembrava acima. Para Husserl, esse divórcio só pode ser colmatado por uma reactivação do acto filosófico originário da geometria.
9. A abordagem é portanto inversa da de Kuhn: onde o historiador privilegia as rupturas paradigmáticas, o fenomenólogo privilegia, mais do que a continuidade, a mesmidade da idealidade geométrica em toda a sua tradição histórica. “O teorema de Pitágoras, toda a geometria só existem uma vez, [...] [esta] é idênticamente a mesma na ‘língua original’ de Euclides e em todas as ‘traduções’ ” (1962, 179-180). Seja um exemplo banal, inspirado de Ricœur: onde toda a gente via ‘redondos’ (nas rodas, por exemplo), o inventor da geometria ‘viu’ o círculo como idealidade, e assim também todos os geómetras que vieram a seguir. Quaisquer que tenham sido as inovações posteriores, elas tiveram sempre que integrar o sentido da tradição anterior. A geometria (e as matemáticas em geral) teve sempre um privilégio para Husserl, “como ramo duma filosofia”, diz a Krisis (cit. Derrida, 1983, 18), porque, “ciência pura da essência” (id., 28), não necessita de redução eidética, “nenhuma experiência enquanto experiência [...] tem nela o papel dum fundamento” (ibidem). O que a intencionalidade fenomenológica exige que se faça, em vez do recurso ao Deus veraz de Descartes ou à Razão infinita de Kant, aquilo que Husserl faz em A Origem da Geometria, é a redução histórica da tradição em vista da reactivação dos actos históricos da fundação originária, e é aonde ele encontra a linguagem e a notação escrita como condições ‘sine qua non’ da tradição dessa objectidade ideal.
10. Derrida: “Husserl insiste: enquanto não pode ser dita e escrita, a verdade não é plenamente objectiva, isto é ideal, inteligível para toda a gente e indefinidamente perdurável” (id., 87). As ciências exactas supõem também “a univocidade da expressão linguística e o garantirem-se produtos exprimáveis de maneira unívoca” (Husserl, 1962, 188), o que, acrescente-se, é conseguido pela definição. A escrita, que torna “possíveis as comunicações sem alocução pessoal, mediata ou imediata”, “comunicação em modo virtual” (id., 188), permite, diz Derrida, o que J. Hyppolite evocou como um “campo transcendental sem sujeito [...] em que o sujeito seria constituido a partir do campo transcendental” (Derrida, 1962, 84-5)[11]. “O campo da escrita tem por originalidade poder dispensar, no seu sentido, qualquer leitura actual em geral” (id., 85), poder garantir a transmissão do texto e da sua verdade além da morte do que o escreveu, ‘além’ que pode ser de várias gerações. Mas também por isso mesmo, acrescenta Derrida, corre o perigo “dum desaparecimento da verdade. [...] O que desaparece é o que é destruído mas também o que cessa, de forma intermitente ou definitiva, de aparecer de facto sem ser todavia atingido no seu ser ou no seu sentido de ser. Determinar o sentido deste ‘desaparecimento’ da verdade, tal é o mais difícil dos problemas postos por A Origem e por toda a filosofia husserliana da história” (id., 91).
11. É neste ponto que a comparação com Kuhn pode ser tentada. O perigo constituido pela linguagem e pela escrita, que são por um lado inerentes à historicidade da geometria e por outro realidades mundanas[12], não é um perigo qualquer, é o de não poder deixar de haver aquilo a que Husserl chama sedimentações: já em cada geómetra que, após ter dormido ou se ter ocupado de outra coisa (id., 189), tem que reactivar as evidências, mas muito mais na transmissão por aprendizagem, que se faz “de maneira passiva” devendo ser “convertido em retorno na actividade correspondente: é a faculdade de reactivação, originariamente própria a qualquer humano enquanto ser falante[13]; [...] a evidência da formação geométrica vindo à enunciação sedimenta-se, por assim dizer. Mas o leitor pode [...] reactivar a evidência” (id., 186-7). É este perigo, devido às oscilações da vida quotidiana de cada cientista (que não vive sempre no laboratório) e sobretudo à aprendizagem das proposições geométricas (que sempre se efectua em sedimentações, isto é passivamente, e que podem nunca ser activadas), é este perigo que justifica em última análise a própria necessidade da fenomenologia que chega sempre atrasada (Derrida), após a catástrofe. Ora, a catástrofe aconteceu: é a situação em que “a geometria seria uma tradição tornada vazia de sentido, da qual nos seria absolutamente impossível [...] saber se ela tem ou teve alguma vez um sentido autêntico e efectivamente recuperável. Mas é, hélas, a nossa situação e a de todos os tempos modernos” (Husserl, 1962, 195).
12. Se culpa há, ela é de Galileu, invocado nas primeiras linhas do texto juntamente com “os herdeiros ulteriores dum saber geométrico mais antigo”, quer se tratasse “de puros geómetras ou fizessem aplicações práticas da geometria” (id., 173). Ora bem, creio que é nesta distinção que está o busillis, já que desde o princípio que a geometria foi utilizada em aplicações, o próprio nome grego desta ciência diz que ela se faz por ‘medidas da terra’, assim como o nome ‘matemática’ diz a aprendizagem. Aplicação e aprendizagem implicam linguagem e escrita, e ainda escrita matemática, feita de algarismos, letras e sinais de operações, palavras sem fonemas, digamos, convencionadas univocamente, com que se escrevem as frases que chamamos equações. Univocamente, sublinhemos a exigência husserliana: se há algo que é unívoco, na geometria como na física, são por excelência justamente as suas equações, com variáveis e constantes, e as medidas que, com instrumentos adequados, se fazem das experimentações laboratoriais, com grande sucesso, reconhece Husserl, hélas: “[...] nós vemos no ensino elementar da geometria e nos seus manuais, o que nós aí aprendemos efectivamente é a saber manejar, no interior duma metodologia rigorosa, conceitos e proposições prontos-a-utilizar” (id., 195), isto é a ciência normal de Kuhn, a resolução de ‘puzzles’, a física sedimentada. Derrida não tem dificuldade em assinalar em vários textos de Husserl como este considera que são “a exactidão e deductividade da geometria”, ciência da espacialidade da natureza, que “escondem a verdadeira natureza” (Derrida, 1962, 13). Isto é, é a estrutura exacta da escrita matemática e da mensurabilidade laboratorial que tanto tornam possível a sedimentação, a habituação da ciência normal, como desnecessária a reactivação das evidências, a não ser em épocas de crise. Para Kuhn, reside aqui a própria vantagem e originalidade das ciências físicas.
13. Isto quer dizer que, apesar da inversão quer das abordagens quer das valorizações, Husserl e Kuhn acabam por se encontrarem no diagnóstico da historicidade oscilante das ciências (entre sedimentações e reactivações num, normalizações e revoluções no outro). E torna-se possível uma primeira caracterização do conceito de paradigma: o seu núcleo duro é o que os físicos fazem com matemática e instrumentos de medida conectados às experiências laboratoriais; mas quanto à respectiva leitura interpretativa há uma oscilação que o paradigma conterá: entre a interpretação ingénua, digamos, do que é o tempo, o espaço, a massa, a temperatura, etc, que se medem no dia a dia laboratorial (se não houvesse nenhuma interpretação das equações, estas não seriam nada, não haveria experiências), e os debates de maior qualidade epistemológica de alguns físicos, oscilação, em termos de Husserl, entre sedimentações e reduções reactivando evidências. Nos tempos de crise, diz Kuhn. Não, responde Husserl, a crise reside no divórcio entre os laboratórios e a cena da realidade das nossas vidas, onde as ciências têm as suas aplicações e de que elas, enquanto ramos da filosofia, deveriam contribuir para nos dar um melhor conhecimento. Pode-se dizer que Heidegger pensou algo de parecido em 1927, quando trocou Husserl e o primado das suas idealidades científicas pelo mundo vivido dos humanos. Vamos apanhá-lo à chegada, 35 anos mais tarde, em 1962.
Ereignis e paradigma
14. O texto da conferência Tempo e Ser é extremamente abstracto, quem o conhece pensará que não tenha nada a ver com as questões de Kuhn. Após uma introdução, com referência também à globalização[14], ele consta de uma só questão (histórica, que no II Heidegger tudo é histórico) em três partes: a ver com o ser (Heidegger, 1976, 20-25), com o tempo (id., 25-36) e com o que os dá - um-com-o-outro -, o Ereignis (id., 36-48). Há (es geben, é dado) o ser, há o tempo, nenhum deles ‘é’, nenhum existe, não são entes ou fenómenos que se possam encontrar. E o Ereignis será o ‘Es’, o Ele impessoal que os dá.
15. “Um dar que só dá a sua doação, mas que, dando-se assim, se retém e se subtrai, chamamos-lhe destinar. [...] o ser que há [é dado] é o destinado” (id., 23). E continua: “história do ser quer dizer destinação do ser” (id., 24), com épocas (épochê, em grego), num gesto de ter em conta as origens gregas quase paralelo ao de Husserl, que visa a Filosofia e com ela toda a civilização moderna, portanto incluindo as ciências, com “recobrimentos” a “destruir” (o motivo célebre do esquecimento do ser) que não estão longe das sedimentações husserlianas. “Ser quer dizer: vinda do ser, desdobrando-se em presença, deixando-se desdobrar em presença, ser-presente: parousia.” (id., 26). São os entes que são presentes, o ser é simultaneamente a vinda dos entes à presença (-ousia) e o deixar que essa vinda se faça (par-), simultaneamente a doação e o seu retiro.
16. A parte respeitante ao tempo, inédita, creio, e não tratada no seminário que em seis sessões comentou a conferência, é de leitura delicada. Heidegger retoma as três dimensões do tempo, o por-vir (ausente, ainda não presente), o ter-sido (ausente, já não presente) e o presente, a unidade entre os três sendo dita das Reichen (id., 30), arriscando-me a traduzir por recção, no duplo sentido da direcção onde se tende (o sentido) e da regência da regra[15]. A recíproca recção entre as três dimensões: o Aberto, permite o jogo (Tempo-Espaço)[16]. Ora, a recção do ter-sido é impedida, a do por-vir reservada (id., 35), o que me arrisco a interpretar com exemplos: na ‘simples’ pedra, quase não haveria jogo, nem impedimento nem reserva, o ter-sido tenderia ‘totalmente’ para o por-vir; nos ‘complexos’ vivos e nos humanos implicar-se-ia uma complexidade de temporalidades, retenções diversificadas e reservas de possibilidades de estratégias, por exemplo, no espaço aberto de liberdade, regras que jogam em situações aleatórias (basta pensar num automóvel). “A aproximação do que sobrevém, enquanto ainda não presente, traz e produz simultaneamente o que já não está presente, o ter-sido - e inversamente o que já não está presente, o ter-sido, procura o por-vir” (id., 31-2). No primeiro caso, como uma recordação permite entender o que vem inesperadamente; no segundo, como se projecta algo para o futuro. No comentário posterior, Heidegger sublinhará a novidade deste texto, em que o ser é pela primeira vez determinado como ‘presença’, é no tempo que ele repousa. “O tempo verdadeiro, conclui-se, é a proximidade do desdobramento de ser [a vinda à presença, a par-ousia] a partir do presente, do ter-sido e do por-vir [...]” (id., 36). ] Isto é, a radical temporalidade ou historicidade do ser: ele é vinda à presença.
17. O Ereignis (acontecimento em alemão: ‘ser’ e ‘tempo’ indissociavelmente) é o que dá tempo-e-ser, os faz vir à presença no que lhes é próprio, os dá; mas sendo ‘onde’ tempo e ser têm lugar, o Ereignis não é, nem ente (substancial) nem temporal, não é um ‘acontecimento’, não é susceptível de presença, é portanto necessariamente retirado: é a doação que é retirada para que os entes sejam eles próprios, na sua própria temporalidade. O termo que introduz este motivo da propriedade é Eignen (a partir de ‘eigen’, próprio), “fazer vir a si mesmo em sua propriedade” (id., 42). “[...] destinação e recção repousam no movimento de fazer vir a si na sua propriedade”, por isso “é necessário que o retiro pertença ao próprio do apropriamento” (id., 44). A doação dá ser ao ente temporal, o seu retiro deixa-o ser ele próprio: assim ele é destinado em sua autonomia.
18. O que é que me dá direito a interpretar o Ereignis em direcção das ciências? Antes de mais, o paralelismo acima relevado com a ‘démarche’ de Husserl, a indicação das épocas da história do Ser, onde as ciências têm lugar, a época da técnica que delas resultou, o que ele chamou Gestell, corresponde ao Ser da nossa civilização, prefigurando o Ereignis como uma nova época (cf. id., 301-6). É por isso legítimo que o conhecimento humano científico das coisas faça parte dele. É assim que eu leio na direcção das ciências - talvez não exclusivamente - um passo do comentário sobre a conferência em que se explicita que nesta “nada é dito da presentidade característica dos diferentes domínios do ente; isso permanece uma tarefa do pensamento: determinar o não-retiro dos diferentes domínios das coisas”[17] (id., 83).
19. Vamos então à interpretação que proponho, no meu modo de coxear, um pé dentro da filosofia e um outro fora, neste caso nas ciências. Eu diria, com o risco de chocar os heideggerianos, que Zeit und Sein ‘conta’ o nascimento e o crescimento duma leoa: como ela é dada e vem à presença - ente temporal - no parto doutra leoa sua mãe; como ela depois, na temporalidade da sua vida, se alimentará. O que eu pretenderia ilustrar é o impedimento do ter-sido e a reserva da possibilidade do por-vir. Uma leoa tem várias temporalidades: a da circulação do sangue e a da respiração, quase sincrónicas, que se jogam enquanto dorme ou caça, come ou se relaxa com o leão, enquanto que estas outras temporalidades - que se repetem em ciclos, de ter-sido em por-vir - é que não podem ser simultâneas, entre elas há oscilação, umas são retidas, impedidas, para que outras sejam: por exemplo, retidas as hormonas da fome enquanto se caça, retido o sono que ameaça (hormonas específicas) se há que fugir dum predador (como nós numa directa por tarefa urgente ou numa insónia por preocupações graves). Ou seja, o passado não pode jogar ‘todo em simultâneo’, à maneira quase das pedras, e isso é correlativo com a reserva de possibilidades do ‘por-vir’, por exemplo das estratégias de espera que passe o grande rebanho de gazelas para assaltar uma das últimas, deixando outras possibilidades para outra altura. O parto de leõzinhos é uma dessas situações, em que uma leoa retém algumas das suas temporalidades, supondo a da cópula meses antes, para que aqueles nasçam, sejam dados, venham à presença, na sua ‘propriedade’ ou singularidade de serem tal e tal leão/leoa. Quanto à alimentação: um tipo equivalente de oscilações, com retenções e reservas, para que da substância das presas se faça a ‘própria’ substância do que come: eis o que se poderia chamar, como característica essencial dos animais, a alimentacionalidade: a substância de si próprio vir de outrem, pelo nascimento uma vez, pela alimentação diariamente em seguida até morrer. Ora, o que é que dá estes ‘acontecimentos’ de propriação? O que Heidegger chamou Ereignis permite também pensar aquilo que os biólogos chamam ‘espécie biológica’ leonina: sem se confundir com nenhum leão ou leoa e não se dando sem eles, não sendo nada, nem ente nem temporal, é o que dá ente e tempo a cada um destes indivíduos, cuja doação não pode deixar de ser retida.
20. É possível que nem Husserl nem Heidegger o reconhecessem - quem sou eu para falar assim? -, mas esta diferença ereignisiana entre a espécie biológica e os ‘acontecimentos’ (nascimento e alimentação) dos indivíduos temporais que ela dá é herdeira directa, por um lado, da diferença fenomenológica que resulta da redução husserliana e, por outro, da diferença ontológica. De maneira que para chegarmos enfim à compreensão do motivo kuhniano de paradigma, haverá que tentar entender como é que essa diferença se entende das ciências exactas, da maneira de trabalhar dos cientistas. Quando houve a ‘invenção’ da física (herdada da filosofia, geometria e mecânica), com Galileu e sobretudo com Newton, digamos de forma simplificada, a performance deste - já complexa, articulando temporalidades diferentes, experimentações e discursos interpretativo destas, conjunto de vários puzzles - deu-se como unidade-paradigma que atraiu e reuniu cientistas em torno da tentativa de resolução de novos puzzles, cada um destes, neles mesmos unidades-base, estendendo o paradigma na abertura de novas direcções. A observação do historiador só encontra estas unidades-base, já que o paradigma ereignisiano não é senão a doação delas essencialmente dissimulada, retirada: doação quer das técnicas de medida, de experimentação e de escrita, quer dos textos das anteriores performances (anteriores unidades-base), quer dos cientistas enquanto saber-ler-e-fazer física, isto é, resolver puzzles. Assim como a espécie biológica, não ‘existindo’ como ente substancial e temporal, é o que é o mesmo em todos os leões e leoas, também o paradigma, não ‘existindo’ como ente substancial e temporal, é o mesmo em todos os puzzles, a mesma “unidade fundamental” em qualquer das “unidades bases”. Retomando o exemplo da leoa, o nascimento equivaleria à formação do cientista, aprendendo através de puzzles escolares e depois laboratoriais, aprendizagem essa que é totalmente recebida de outrem (físicos-mestres) e o torna capaz de ‘acontecimentos’ que o paradigma dá, com a doação retida[18]. Trata-se novamente de alimentacionalidade, pela qual cada cientista, antes de qualquer iniciativa científica, é totalmente feito - ‘nele próprio’, na singularidade do seu talento - pelos outros cientistas que leu e com quem aprendeu, o que continuará ao longo da sua carreira de investigador, ‘alimentando-se’ do que vai experimentando, lendo e discutindo. A ciência normal tem assim uma tendência enclausurante que diminui drasticamente o leque das oscilações interpretativas, reduzindo-as a sedimentações evidentes e eficazes. Como se a temporalidade se tornasse uma só, com a coerência sólida duma pedra: o que Husserl abominava.
21. O que é que pode quebrar esta solidez e precipitar uma crise? Provavelmente três tipos de factores, quiçá se intercruzando: melhorias técnicas na experimentação, mormente com melhoria de escalas (telescópios, microscópios...), descoberta de novas equações (Einstein), incidência de paradigmas exteriores, científicos (química molecular em biologia) ou até filosóficos (irreversibilidade do tempo em Prigogine). Que alguma destas ‘estranhezas’ se venha inscrutar num novo paradigma e que os cientistas já formados no anterior não sejam capazes do novo nascimento (ou do novo regime alimentar) que aí se implica, é provavelmente o que explica a tese da incomensurabilidade dos paradigmas, que justamente se atém à consciência dos cientistas, como atestam os debates e a grande oscilação da crise inter-paradigmática. Limite quiçá do historiador, no escrúpulo da sua observação, que poderá multiplicar as nuances de rupturas paradigmáticas e que terá talvez maior dificuldade em compreender unidades paradigmáticas maiores: na sincronia, à maneira dos epistemas de M. Foucault, ou na diacronia, à maneira das épocas de Heidegger ou da mesmidade da geometria greco-europeia de Husserl, à maneira pois de filósofos interrogando a história, mais atentos porventura às heranças que escapem à consciência dos que resolvem puzzles.
O divórcio entre o laboratório e o mundo da vida
22. A crise das ciências europeias é um divórcio instaurado sobretudo por Galileu, o texto com esse nome detalha-o longamente: entre, por um lado, a matematização da natureza executada com fórmulas, medidas e experimentações, colocando explicitamente com grande clarividência a técnica como inerente à física de Galileu (Husserl descreve, sem o explicitar, o laboratório como estrutura essencial da actividade científica: o que a filosofia não tem, apenas um ‘escritório’) e, por outro, o nosso mundo da vida quotidiana, o mundo das intuições pré-científicas. Eu creio que é um diagnóstico forte[19], de que o Gestell, segundo Heidegger, a dominação do nosso mundo pelos dispositivos da técnica, é uma sequência. Uma das vantagens de isolar a necessidade do laboratório nas ciências (os paradigmas só valem adentro dos laboratórios, o que Kuhn não entendeu) seria a de obrigar a pôr a questão dessa necessidade e da denegação que ele representa ao discurso determinista dos cientistas: é justamente por a cena da realidade, do nosso mundo quotidiano, não ser determinada estritamente mas conter o imenso aleatório dos ‘acontecimentos’ que o Ereignis heideggeriano doa escondendo-se - o que aí se diz, com a radical temporalidade do ser, é que não há senão acontecimentos, com regras e aleatório, como nos jogos mas também nos automóveis da técnica -, é por isso mesmo que é necessário o laboratório como lugar de criação de condições estritas de determinação. A denegação dos cientistas é eles estenderem ao mundo de todos os dias essa determinação ou causalidade que descobriram, sem terem em conta a necessidade dos muros do laboratório, da separação radical assim criada. Uma parte do divórcio de que Husserl se queixa resulta portanto deste mal-entendido filosófico de fundo: “[...] a substituição, diz ele, - que se cumpre em Galileu - pela qual o mundo matemático das idealidades, que é uma substrução, é tomado pelo mundo real, o que nos é dado verdadeiramente como perceptível, o mundo da experiência real ou possível, em resumo, o nosso mundo-de-vida quotidiano” (Husserl, 1976, 57). O que permanece criticável em contrapartida em Husserl é pensar que esta ‘crise das ciências’ (e da filosofia) possa e deva ser ‘resolvida’ pela filosofia sozinha antes das ciências[20], no antes das origens da geometria e da física de Galileu. Creio, pelo contrário, que só tendo em conta algumas das principais descobertas científicas ao longo do mesmo século XX em que a fenomenologia se desdobrou, é que uma fenomenologia-com-ciências poderá trabalhar filosoficamente na difícil e urgentíssima solução dessa crise. Todavia isso só me parece possível a partir dos trabalhos posteriores de Derrida, que o que aqui tentei dizer pressupunha. Mas em 1962 ele não era ainda Derrida.
Derrida, J., 1962, “Introduction” à Husserl, E., 1962
Gil, F., 1979, “História das ciências e epistemologia: apresentação do debate Popper-Kuhn”, in M. M. Carrilho (ed.), História e prática das ciências, A Regra do Jogo
Heidegger, M., 1976, “Temps et Être”, trad. F. Fédier, in Questions IV, Gallimard, pp. 11-51, “Protocole d’un Séminaire sur la Conférence ‘Temps et Être’”, trad. J. Lauxerois et Cl. Roëls, ibidem, pp. 52-97.
Husserl, E., 1962, L’Origine de la Géométrie, tr. et introd. de J. Derrida, P. U. F., 1962; texto de Husserl nas pp. 173-215
Husserl, E., 1976, La Crise des Sciences Européennes et la Phénoménologie Transcendantale,trad. G. Granel, Gallimard,
Husserl, E., 1989, La Terre ne se meut pas, Minuit
Kuhn, Th., 1983, La Structure des Révolutions Scientifiques, tr. L. Meyer sur l’ed. américaine de 1970, Champs-Flammarion
[1] http://www.fenomenologia.ubi.pt
[2] Contando embora com o pós-fácio de Kuhn de 1969 (pp. 237-284, ed. cit.).
[3] “The nature of a paradigm”, in I: Lakatos e A. Musgrave (ed.), Criticism and the grouth of knowledge, Cambridge, 1970.
[4] Ele dá o exemplo de como, entre os que se iniciam à história da física, os estudantes formados em física são os que têm mais dificuldades à partida, porque “conhecem a resposta justa” posterior (1983, p. 228, n.3).
[5] Também no prefácio, os paradigmas são performances históricas: “as descobertas científicas universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem a uma comunidade de investigadores problemas-tipo e soluções” (idem, p. 11).
[6] O que me parece susceptível de fazer este conceito jogar um papel alargado no conceito sociológico de instituição, enquanto ‘unidade social’ das sociedades industriais, diferente das ‘casas’ tradicionais e das ‘famílias’ modernas, onde se entra por nascimento ou casamento.
[7] Com uma posição ecuménica entre os dois autores, F. Gil aparenta, no texto citado, não ter dado por esta diferença ‘incomensurável’ entre Kuhn e Popper.
[8] Que estas duas “unidades” sublinhadas sejam uma mesma unidade, é a minha tese aqui.
[9] F. Gil (p. 167) considera, nos seus prolegómenos à apresentação do debate Popper / Kuhn, que já um grupo de historiadores das ciências (E. Burtt em Inglaterra, A. Koyré em França, A. Maier na Alemanha) deram um passo no sentido de substituir a ontologia substancial e qualitativa por uma outra relacional e quantitativa. Terão portanto iniciado a dessubstancialização da concepção de ciência que opera este retorno aos paradigmas de Kuhn, como igualmente o fez a intencionalidade husserliana.
[10] Tratada longamente na II parte da Krisis.
[11] Ilustrá-lo-ia o caso de Blaise Pascal, que não foi à escola porque o pai se encarregou exclusivamente da educação dele e que, aos 12 anos e às escondidas do pai, se torna ‘geómetra’ lendo os Elementos de Euclides.
[12] “[...] todas as heranças culturais [...] se tornam, graças a uma incarnação sensível, por exemplo pela linguagem e pela escrita, perceptíveis [...] e operativamente manejáveis” (Husserl, 1976, 31).
[13] “A redução [eidética] é implicitamente operada, simplesmente exercida e ainda não explicitada, desde que se considera a linguagem por ela mesma” (A. de Muralt, cit. p. 58).
[14] “A tentativa de pensar o ser sem que seja uma fundação do ser a partir do ente [...] torna-se uma necessidade, porque sem isso, parece-me, não há mais nenhuma possibilidade de trazer propriamente ao olhar o ser do que é hoje em torno de todo o globo terrestre” (Heidegger, 1976, 13).
[15] No dicionário: “passar, estender [a mão]; ir, estender-se”; parece corresponder à raiz latina reg (rec, rig, rg), ligada à noção de ‘conduzir a direito’: direcção e reger (do rei, com o sentido de guiar direito, como também régua e regra) permite recção, propondo o tradutor francês uma palavra caída em desuso, ‘porrection’, que dizia o ritual litúrgico de estender os braços em frente em sinal de entrega.
[16] “den Zeit-Raum”; em Le Principe de Raison, “den Zeit-Spiel-Raum” (Gallimard, 1962, p. 150).
[17] Julgo que uma boa parte do trabalho filosófico de Derrida depois de 1962 pode ser interpretada como uma resposta a esta injunção, embora não à maneira como Heidegger a previria.
[18] No que diz respeito à aprendizagem da língua, gosto de citar a palavra de Manuel Gusmão dizendo que o poeta não dispõe, para fazer o seu poema, senão das palavras dos outros.
[19] É ele, penso, o responsável primeiro do terrível fenómeno das poluições.
[20] “Só uma questão-em-retorno radical sobre a subjectividade, entendo eu sobre a subjectividade que torna possível de maneira última qualquer validade-do-mundo com o seu conteúdo, e isto em todas as modalidades pré-científicas e científicas, questão que alcança também o quê e o como das performances racionais, pode tornar compreensível a verdade objectiva e atingir o último sentido de ser do mundo” (id., 80). “Uma tal maneira de esclarecer a história por uma questão-em-retorno sobre a fundação original dos fins que ligam a cadeia das gerações vindouras na medida em que eles continuam a vida deles nelas sob formas sedimentadas, mas que ao mesmo tempo podem ser sempre reacordados e restituidos de novo à vida pela crítica [...]” (id.,82-3).