1. Luís
Miguel Cintra deu-lhe o mote, “a voz é o espelho da alma”, Gastão Cruz fez o
poema[1].
“Não chamarei à tua voz um rio
de palavras ainda que ela o seja,
não o dizendo disse o que diria
se o quisesse dizer como devia descrevê-la.
Porém um rio procura a foz, e a voz
busca a nascente de todas as palavras.
Chamarei realidade à água antes da água
já que a voz como os olhos é espelho da alma.
À tua voz não chamarei um rio
de palavras porque
a água da voz é água
anterior à água das palavras”
E o poema chamou-me a glosá-lo, a buscar aprender do poeta que não sabe
dissociar voz e palavras (dis)correntes e acrescenta o rio de água a Platão que também não os dissociava, ao falar do logos dizendo que “a corrente sonora que sai da boca recebeu o nome de discurso” (Sofista 263 e).
2. Comecemos pela metáfora do espelho. Ao espelho,
eu vejo a minha cara, que os meus olhos não ma mostram, não a
vêem. Se os olhos são espelho, é um outro que vê a minha alma, como
quem vê um retrato. Em ambos os casos vê-se o que não é visível habitualmente –
e será o que justifica a metáfora, apesar da incongruência de fazer supor que a
alma está por detrás do espelho, pois que este é um ecrã: nós não nos
reconhecemos filmados num vídeo tal como os outros nos vêem (nem a nossa voz
áudio), o outro não vê a minha alma, aquilo dentro de mim a que só eu tenho
acesso, onde sou ‘animado’ ou nem por isso, que os olhos só revelam a alma
quando o ‘como vemos’ nos toca, quando nos comovemos, dando a quem nos vê o
fulgor de vermos (gentes, coisas de arte...). Esse fulgor é o que os olhos dão
do que vem da alma, bela palavra – hoje despida de qualquer metafisica ou
metapsíquica – que permite dizer do que de nós sabemos e nunca vemos. Ou ainda,
a alma dos olhos é como o olho do cameraman ou do fotógrafo, órgão da arte
deles e sua alma de artista que escolhe o que mostrar.
3. Se for certo, isto é relativamente fácil de
entender no que diz respeito aos olhos, mais complexo será quando se trata da
voz. O que o poema dá é a recepção pelo poeta da metáfora dos olhos espelho
aplicada à voz e a sua busca da inteligência de LM Cintra, procurando entre a
voz e as palavras como entre os olhos e o que eles vêem, corrigindo assim a
metafora, deixando o espelho ser ecrã, já que a voz e as palavras estão do
mesmo lado do espelho, onde agora se ouve o que antes era ver e sem se atentar
nos ouvidos (por isso trouxe o enquadrar do cameraman e do fotografo à colação,
o olho deles e o que eles vêem do mesmo lado do espelho). Conhecesse o poeta ou
não a citação de Platão, porventura que a transformação da ‘corrente sonora’ em
‘rio de água’ tenha a ver com o lugar do espelho inadequado aos sons da voz.
“Chamarei realidade à água antes da água”, à água do rio antes de ter água,
realidade do vale por onde a água corre, mostra que ao poeta voz e palavras do
poema são correntes que dizem, falam de outra coisa ainda que é linda, sem
espelho que não seja voz de palavras poéticas. Mas o filósofo contrastava essa
‘corrente sonora’ com o pensamento da alma sem voz (phonê), para dizer que ele é o mesmo que o logos, mas sem a voz que interessa fundamentalmente LM
Cintra. Claro que a este o texto também interessa muito, mas não aqui, onde a
voz é a da justeza do actor, há pois um deslocamento entre o mote e o poema, deslocamento
que resulta do recurso às palavras. Mas a favor da voz, se dizer se pode, com a
admirável diferença entre o rio que procura a foz e a voz que busca a nascente
das palavras. Onde nascem estas? Pois, com Platão, na alma, no pensamento (e
não nas ideias, que não têm palavras), onde a voz (a “tua voz”, LM) as acolhe,
as palavras que diz.
4. Mas a coisa é mais difícil, que o rio é de água
e “a realidade é uma água antes da água”, o poema sabe dessa dificuldade que
duas vezes como que denega – “não chamarei rio à tua voz” – mas precisando
desse fluir entre foz e nascente, entre um depois e um antes, fluir que seja
duplo como a dupla articulação da linguagem, justamente a da voz (entre os
fonemas ou letras e a palavra) e a do discurso (entre as palavras e a frase e o
poema). O ‘antes’ será o da “água da voz que é anterior à água das palavras”. O
poeta sabe que, como dizia outro poeta, Manuel Gusmão, para fazer o seu poema
ele só tem as palavras dos outros e por aí sabe que essas palavras já cá
estavam antes da sua voz que teve que as aprender. Mas para isso a
anterioridade da água da voz só pode ser não dissociando: as palavras em sua
água só podem ser colhidas à nascente pela voz que já seja sede de palavras.
Sem essa sede, ninguém fala, não haveria palavras, como mostram os jogos hábeis
de entoações dos actores que já as crianças de poucos anos sabem entoar aos
outros em suas vozes. É no chilreio dos bebés como puro brincar sem palavras
que a voz começa a afirmar-se desde o primeiro choro, quando eles são quase só
alma, sem nenhum saber.
5. O que interessa LM Cintra é que temos todos
vozes diferentes com que dizemos as mesmas palavras segundo as mesmas regras da
nossa língua, mas sobretudo que cada um tem voz diferente consoante o seu
estado de espírito, como se diz, a circunstância e as entoações que ela pede. E
é esta voz que ele quer que o actor deixe vir de maneira a ver-se-lhe, a
ouvir-se-lhe a alma quando diz o texto que lhe é dado, de que tem que saborear
o saber, antes de decorar. E aqui ele desmente o poema, que não é a voz que
busca a nascente das palavras mas estas que buscam uma voz inédita para
nascerem teatralmente, uma voz que não se sabia, que só para aquele momento
servia. O que há de admirável na maneira como Cintra fala desta sua arte é como
ele desconfia de técnicas que embaracem a voz e escondam a alma, esta dando-se
na espontaneidade que há de vir, de soltar-se desse saborear.
[1] Luis Miguel Cintra, Cinco
conversas em Almada, 31º Festival de Almada, colecção
O Sentido dos Mestres, 2015, p. 111