1. É porventura a questão de partida
do conhecimento, à qual não se responde facilmente. Há muitas coisas, ‘entes’
diziam os filósofos, como componentes do mundo que nos rodeia, onde somos dia a
dia, há intuitivamente uma organização nesse conjunto de coisas, nas zonas
habitadas por humanos mas também nas florestas onde eles só passam; mas não é
fácil dizer esse conjunto de coisas de maneira a descrevê-lo satisfatoriamente,
pedras e água, árvores e flores, insectos e gatos, utensílios e humanos de
idades variadas, e por aí fora. As lógicas destas ‘coisas’ são bastante
diferentes entre si, como pensar a sua organização, mostrar que ela não é
caótica?
2. Digamos que os Gregos perceberam a diferença
(repouso / movimento?) entre entes estáveis e entes que crescem: phuô é crescer; a phusis supõe quatro elementos fundamentais, a terra
sólida, a água líquida, o ar gasoso e um quarto, diferente, dinâmico, perigoso,
o fogo[1]. Mas para conhecer o ‘mundo’ envolvente, os
filósofos socráticos tiveram que o desorganizar: retirar dele entes semelhantes
e defini-los – em suas essências – fora do contexto, isto é, fora do ‘mundo’, que ficou com o estatuto
implícito do além dos limites da definição, portanto além dos limites do
conhecido. Quando falamos de ‘realidade’, por exemplo, é este mundo
desconhecido que designamos. O lento desenvolvimento das ciências – os reinos
mineral, vegetal, animal, este incluía os humanos mas não os destacava – foi permitindo
conhecer lógicas diferentes ‘regendo’ estes ‘reinos’, mas sem que o nosso
‘mundo’, de que somos e em que somos e que em parte nós mesmos organizamos,
consiga ser conhecido em sua organização de maneira a transpor fronteiras entre
ciências. Basta ver como filósofos, psicólogos, neurologistas e outros, quando
se querem focar nisso que nos envolve fora de nós, o ‘mundo’ ou a ‘realidade’
ou o ‘mundo real’, o fazem designando colecções de coisas e gentes, tipo
factos, acontecimentos, objectos ou coisas, situações, acções, relações,
pessoas, processos, estruturas, indivíduos colectivos, instituições, e por aí
fora, a lista de coisas soltas é infindável.
3. Num texto anterior, defendi que é pela
aprendizagem que nos vem de fora, da nossa tribo ou mundo, que somos
estruturados interiormente (tal como é comendo restos de entes vivos, vegetais
ou animais, que as suas moléculas se tornam as nossas moléculas num processo
biológico parecido com o da aprendizagem: os nossos corpos são feitos dos de
outros). Então a questão põe-se: como dizer o que aprendemos? Pelos seus nomes?
Já no Crátilo, Platão
explicava que saber os nomes não é suficiente para conhecer o que eles nomeiam
e basta perceber como tribos diferentes dão nomes diferentes às mesmas coisas
para se perceber que ele tinha razão, embora os argumentos dele possam ser
melhorados. É mesmo a partir dessa recusa de que, digamos, dos nomes se chegue
às essências, que ele pela primeira vez põe a hipótese das Formas ideais que,
resultantes de definições, abriram a via real do pensamento ocidental. Só que
também essas definições de coisas não chegam, pois delas (e dos nomes) é que
nos ficam as colecções, as listas de entes definidos, isto é, equivalentes em
essência a uns tantos e separados de todos os outros, fora do ‘mundo’.
4.Como dizer o que aprendemos? Não sendo
antropólogo, creio poder oferecer uma solução antropológica – a descrição duma
qualquer unidade social – que será a dos usos e costumes dessa unidade no seu
fazer quotidiano e anual, já que justamente é próprio de cada unidade social,
seja uma família, uma escola, uma oficina ou um escritório, o imperativo da
aprendizagem dos usos da ‘casa’
aos novos, consoante aí nasceram ou nela ingressaram. Pode-se definir uso como uma sequência organizada de gestos com
materiais mais ou menos heteróclitos, de que os próprios humanos fazem parte
como agentes, e que para isso tiveram que aprender a fazer bem, já que
frequentemente os usos são de interesse colectivo, feitos até em equipa. O que
Kuhn chamou paradigma duma
ciência pode ser generalizado a qualquer unidade social, ao conjunto dos usos
dos seus indígenas ao longo do tempo, das respectivas receitas (‘faz-se desta
maneira: começa-se por ...’). Assim quando se fala da mesa da sala de jantar ou
das cadeiras que a rodeiam está-se referindo o uso das refeições, como os
roupeiros referem os usos de vestir, e assim sucessivamente, os nomes das
coisas que usamos referem justamente aos usos delas, à respectiva lógica.
Teremos então uma maneira de descrever a organização do ‘mundo’ desses indígenas
adentro dessa unidade social a que pertencem, descrever o respectivo paradigma; em regra geral,
nas sociedades de hoje há ao menos dois tipos de paradigmas de pertença, um
familiar e outro profissional ou escolar complementares temporalmente: onde se
trabalha e onde come e dorme e vive além do tempo de trabalho; creio que esta dupla é o ponto nevrálgico da liberdade
individual, na medida em que a
pertença a dois paradigmas permite em princípio escapar a uma única autoridade,
paternal ou patronal.
5.Mas estas unidades são abertas: em contraponto
com as autarcias das casas agrícolas de antanho, as profissionais são
especializadas e portanto abertas a trocas, tal como as familiares que, com os
salários das outras, compram o que as sustenta. Abertas à tribo, a outras
unidades vizinhas, como aldeias e bairros, conhecidos e amigos. A continuação
da compreensão do ‘mundo’ em que somos nas redes mais ou menos complexas das unidades
sociais (cidades e regiões, nações e inter-nações) depende de outros níveis
científicos, sociológicos e económicos nomeadamente, que não incidem já
directamente na categoria ‘ser no mundo’, ao contrário do que advém da relação
da escola e dos médias de massa (dos livros aos jornais, das imagens dos
cinemas e televisões às músicas) com os vários indígenas de cada unidade
social, o que provavelmente intervirá na análise que seja possível dos
paradigmas.
6. Há todavia uma zona dos ‘seres no mundo’ que
não fica considerada com a alusão feita a estes paradigmas das unidades locais,
a da alimentação e saúde, que depende da relação, tanto biológica como cultural
(culinária, higiénica, terapêutica) com vegetais, animais e atmosfera.
Heidegger falou da angústia, metafísica porventura, perante a morte, o meu
amigo Jorge Vilaça, pintor marginal com vários filhos e pouco dinheiro,
falou-me uma vez do “medo da fome”, medo que é o de muitas gentes por esse
mundo fora, como aliás medo de doenças também: como dizer a parte destes medos
e das tensões para os evitar naquilo que faz de nós ‘seres no mundo’? O que é
que desses medos se aprende no que aprendemos?
7. O que me faz hesitar nesta questão, que sinto
não saber colocá-la de forma satisfatória, é a perplexidade diante da tentativa
de descrever fenomenologicamente a categoria ‘ser no mundo’ contando para isso
com os contributos vindos de níveis científicos diferentes, que julgo ter
conseguido articular entre si nos capítulos 13 e 14 do meu Le Jeu des
Scinces avec Heidegger
et Derrida, passando de uns aos
outros desde os átomos da Física e da Química[2] pela evolução biológica e pela história das
sociedades ocidentais e a dos seus textos de saber. Como articular biologia,
antropologia e linguística (além de músicas e filmes) numa descrição
fenomenológica, com alguma coerência, nem digo unidade, que a torne
interessante? Comecei este texto com esse fito, com a convicção imodesta que
tenho de que esse trabalho permite descrever a Terra (e colocá-la no conjunto dos astros)[3] enquanto uma complexidade sem fim de cenas de
circulação de ‘coisas’ ou ‘entes’
– graves, vivos, humanos, textos – como sendo os contextos do que se define / analisa laboratorialmente
retirando dos contextos, mas não dos acontecimentos, que estes misturam
alegremente os diversos níveis em que instituem as ciências, e portanto os contextos
também ficam indecifráveis, num contexto só, ou quiçá em vários consoante a
variedade dos protagonistas. Mas isto pertence ao registo dos sonhos dos filósofos.
8. Esta digressão permite talvez entender que a
categoria ‘ser no mundo’ dificilmente terá utilidade em descrições
sociológicas, ficará quiçá restrita aos fenomenólogos, podendo ser todavia útil
aos cientistas sociais e humanos como defesa contra o dualismo sujeito /
objecto, sujeito / mundo, de que padecem sem saber.
[3] As ciências são todas
ciências da Terra, incluindo a astrofísica, que não só é feita a partir da Terra como é feita em laboratórios da Terra, confrontando os fenómenos
observados da estratosfera com os dados comprovados laboratorialmente da
própria Terra.