1. Na escrita do 2º texto sobre o
conhecimento descobri espantado – o espanto é o começo da filosofia,
lembram-se? diziam Platão e Aristóteles – que a fotografia e o cinema são
“escritas de luz”, como aliás também os ecrãs dos nossos computadores. É que a
noção de escrita propõe a permanência: verba volent, scripta manent, diziam os Latinos que as palavras voam e os
escritos permanecem. É certo que na fotografia a luz escreve sobre película (ou
equivalente) que permanece, como uma ‘verdadeira’ escrita e também no cinema há
película escrita previamente à projecção na sala escura, mas é nela que se
passa algo de estranho, podemos ver uma corrente luminosa vinda detrás de nós que vai ‘escrever’ no ecrã
movimentos de gentes e coisas, planos e sequências. Ora, acontece que a fala
oral, a voz, tem também algo de parecido, é uma corrente de ar que vem de dentro para fora (ex-) fazendo
–pressão, uma expressão que depois vai de fora para dentro no ouvido do outro
(im-) pressionar, im-primir-se pelo menos o tempo duma memória, o tempo que
dura a lembrança da escrita do sopro ouvido; ‘-pressão’ lembra que o sopro é uma energia que se verte com
atenção, em intenção, para outro sopro em con-versa, banal ou tal que pode dar
conversão, seja a aceitação do que aprende com o que ouve, seja um amor que
resulte em desejo de não mais quebrar o conversar recíproco. Também aprender a
falar releva desta im-pressão que no longo tempo suscita ex-pressão, o que
também é um fenómeno de grande espanto, olhando esta corrente de ar, de sons
com modulações diversas que os fonéticos estudam, nasais, labiais, dentais,
palatais, alveolares e por aí fora, modulações complexas que se compõem entre
si em jogos diferenciais e que vão repetir-se no bebé a pouco e pouco até ter
uma voz dele, uma ex-pressão que vem do seu aparelho de fonação. Não há aqui
hipótese nenhuma de ‘imitação’, a coisa repete-se no bebé sem ele saber como, é a partir dessa voz conseguida que ele virá a
ter mais tarde o saber de si que chamamos ‘consciência’ e que seria necessário
para haver imitação, ser ele a ter a iniciativa de imitar. A iniciativa vem dos
pais e outros tribais, que falando são ouvidos e se imprimem sinapses nos
neurónios passivos, criando grafos (Changeux) que resultarão em fonação activa, nos músculos da voz. Como
escrevi no 1º texto sobre o conhecimento, um dos canais de grafos fundamentais
é justamente este da audição / fonação. De tudo isto ensinam os neurologistas a
acústica, a química, a electricidade iónica, mas em cérebros tão complexos na
imensidade dos seus neurónios, praticamente perpétuos como condição de se
manter memória e saber ao longo duma vida, que o fenomenólogo será levado a
insistir no enigma do estilo
singular de cada indivíduo que cresce no aleatório das falas ouvidas e das
respostas dadas. Pois não é que as vozes saem diferentes entre irmãos próximos,
e ainda mais os saberes, os talentos?
2. Esta diferença entre singulares é
um grande bem mas faz parte do caos das coisas que sempre apoquentou os
pensadores, os estimulou a buscar o que há de semelhanças no meio das
diferenças. Foi o que moveu os dois grandes socráticos do espanto citados acima:
se tudo é diferente, não apenas entre coisas mas na terra sobretudo os próprios
vivos mudam ao longo da vida, se tornam diferentes deles mesmos, como podemos
conhecer, pensar? O que é que há que não mude? As Formas ideais de que as
coisas são efeitos em seus defeitos, achou Platão depois de ter desistido, no Crátilo, das palavras para as conhecer, acrescentando-lhes
a alma imortal que as conheceu antes de vir ao corpo, a imortalidade sendo algo
que convém à virtude e que distingue a alma do corropio das gerações e
corrupções dos vivos. Aristóteles criticou a separação entre as Formas
imutáveis e as coisas que delas são efeito, mas não renunciou à questão, à
dificuldade que a mudança e a diferença põem ao conhecimento: o motivo de ousia, em que a ‘substância’ de cada ente coincide com
a ‘essência’ que ele tem em comum com os da sua espécie (substância e essência
sendo traduções latinas da mesma palavra grega, ousia: nas Categorias, são respectivamente a ousia primária e a ousia secundária), a ousia pois é o que em cada ente não muda, o que lhe
sobra são os ‘acidentes’, as suas diferenças resultantes dos seus percursos
singulares, justamente. Mais: Aristóteles ligou o conhecimento aos órgãos dos
sentidos, valorizando a aprendizagem que o Mestre secundarizara, coisa que usam
os não filósofos. Mas criticando-o, não deixou de guardar a relação da alma com
as essências (imutáveis) como o âmago do conhecimento pelo logos. Ora, este era o pensamento (inteligível) do
discurso grego, logos sem
lugar no tratado Da alma, como
se implicando consigo a voz, o
que chamei a escrita do sopro, fosse necessário apagar-lhe a corporalidade na
intimidade da alma que pensa dentro dela. É onde está o busillis desta questão, o que Derrida chamou logocentrismo: só o que se passa dentro da alma, onde a voz é
vizinha próxima que se pode apagar no silêncio do seu pensamento, merece o privilégio
filosófico. O ‘centro’ no ‘logos’ significa assim que o que é exterior é
excluído, até mesmo o que vem da boca do filósofo, como seu ‘filho’ (Fedro) e que o escriba fixa no papiro, se afasta do
autor e lhe sobrevive, supera a morte: sem este a responder pelo escrito e a
defendê-lo de interpretações falsas, ‘bastardo’ oferecido aos auto-didactas, o
texto escrito jaz na exterioridade, proscrito pelo pensamento ocidental que não
existiria sem ele até aos nossos tempos, até que Derrida, leitor de Blanchot,
tenha levantado a questão da essencialidade escritural, se se pode dizer, da
filosofia e da ciência.
3. A escrita do sopro oral, eis a
questão. Quando Derrida dizia que a escrita era prévia à oralidade, as pessoas
riram-se, que patetice, toda a gente aprende a escrever depois de saber falar.
Mas só se aprende a falar porque já outros falam e serem estas falas que se imprimem na memória cerebral que tornam possível a voz que
nasce de dentro. Pareceria ser a fluidez da ‘corrente de ar’, do sopro articulando
os sons com jeitos das várias partes da boca, que a torna despercebida no
processo da aprendizagem, que ninguém nega, creio eu, mas se entende numa
óptica de primazia do dentro: a imitação. O que é certo é que aprendemos a vida
toda a falar, a saber, ganhando experiência, como se diz. Para quê dizer escrita
do sopro? Por uma razão parecida
com o que se chama “literatura oral”, em que o primeiro termo reenvia para a
escrita alfabética, para as ‘letras’, tratando-se no entanto de lendas, contos,
provérbios, aonde se consignam as sabedorias das populações não alfabetizadas e
que são reproduzidos de geração em geração, por vezes com pequenas alterações,
como fazendo parte da língua. Ora, esta só funciona porque tem regras estritas,
aprendidas antes de serem conhecidas e sofrendo correcção a cada erro, e é
justamente este carácter institucional – de ‘coisas’ que se repetem
estritamente sem outra utilidade do que a compreensão social duma população –
que define uma ‘escrita’: “inscrição e antes de mais instituição duradoura dum
signo (é o único núcleo irredutível do conceito de escrita”)[1].
Todos nós temos a experiência da transição imediata dum texto alfabético em
oralidade quando lemos em voz alta; quando lemos sem dizer os sons,
mentalmente, o fenómeno é o mesmo, com uma particularidade, a de os sons se
‘apagarem’ sem deixarem de ter efeitos de pensamento enquanto jogo de
diferenças sonoras ou gráficas, como dizia Saussure, na língua não há senão
diferenças, que os sons pertencem às vozes, não à língua.
4. A questão que quereria procurar perceber é a da
maneira como um especialista, como somos quase todos, temos uma parte da nossa
tribo com leituras de textos gnosiológicos, que fomos aprendendo desde o liceu,
e que os nossos familiares e amigos em geral não partilham, mas apenas os
colegas de ofício. Como é essa situação de articulação entre o que, como dizia
Ricœur, se aprende nos livros, e o que fazemos com nossas mãos e voz nos usos
tribais especializados, em laboratórios por exemplo? Sobram ‘acidentes’ tribais
que sejam obstáculo irredutível ao conhecimento do especialista? Não se trata
de beber um golo de água durante uma conferência, é claro, mas de algo que
tenha a ver com o ‘uso especializado’ aprendido, os casos interessantes sendo
as ignorâncias que ainda se tem e se quer entender, diferenças que se dão
empiricamente e se quer integrar num paradigma teórico. Não é fácil dar um
exemplo quando se trabalha em filosofia e portanto não se tem laboratório,
apenas escritório, hoje um computador além dos livros nas estantes. O exemplo
que estaria mais próximo do fenomenólogo, se tivesse competência para tal, é o
da psicanálise num divã entre duas escritas de sopro, uma que se cala atenta à
outra que procura dizer, deixar vir espontaneamente à con-versa associações não
censuradas, o calado buscando ligar as dificuldades e hesitações do sopro
falado do seu paciente. Trata-se do que se pode dizer a semiótica dum texto
singular, em sua acidentalidade corrente, cuja interpretação se conseguida
lenta e pacientemente resultará no desvanecer do sofrimento que justificou a
demanda psicanalítica, o sopro dum trabalhado pelo jogo do sopro do outro, que
sabe da teoria que doutras psicanálises, desde Freud, se foi elaborando. Não o
podendo dar como exemplo, tentarei então dizer algo da minha prática inspirada
na semiótica do S/Z, un essai, de Roland Barthes: como aprender a ler um texto na sua singularidade? (sendo que o singular escapa à ciência, dizia
Aristóteles e é o que está aqui em questão). Quando a questão se põe a alguém,
que escolhe por exemplo um texto como objecto duma dissertação, essa pessoa já
tem uma mais ou menos longa prática de leitura de livros dessa especialidade,
pode suceder que, após uma ou duas leituras – orais ou mentais, isto é seguidas
–, tenha recolhido algumas questões do texto e talvez algumas estranhezas dele,
a tentação, ou talvez a tendência dominante, seja a de se dedicar a essas
questões e estranhezas e trabalhá-las, vindo com o tempo a escrever o que desse
trabalho resultar. O que aprendi com o admirável ensaio de Barthes, foi que há
o risco desse trabalho sobre questões do texto esquecer-se progressivamente
deste, pois pode suceder que haja outras e melhores questões do texto, que se
deva alterar a ordem, ser primeiro o texto a ler quase exaustivamente e
deixá-lo ser ele a propor as suas questões, que às primeiras leituras seguidas
não apareceram. É aqui que pode ganhar relevo um detalhe, e depois outro, e
outro ainda, sucessivamente, detalhes que não se deu por eles inicialmente, nem
sequer eram ‘acidentes’, que conduzam a uma compreensão da lógica do texto em
que este se ‘contradiz’. Então, não havendo métodos para encontrar detalhes
significativos, a única maneira é fazer uma lenta e minuciosa leitura dos
diversos códigos de que ele é tecido e tentar depois articulá-los entre eles,
na sua literalidade e não nos seus ‘significados’ prévios. A grande ascese
intelectual é a de nunca decidir sentidos de palavras ou expressões pelo
recurso ao ‘referente’ plausível mas pelo jogo das diferenças com outros passos
do texto em que elas aparecem; claro que tem que se ter competência de leitura,
recurso a dicionários, mas ao serviço do texto: é ele quem sabe de si. Uma tal leitura depende dos preconceitos
filosóficos do leitor, como é óbvio, mormente das questões que o moveram na
escolha daquele texto, preferências ou relutâncias consoante, depende também do
rigor das leituras, do tempo e da energia que se lhes pode consagrar (os textos
não devem ser grandes, o investimento de leitura é sempre muito forte), mas o
tal rigor terá como recompensa que seja o próprio texto que se deixa atingir e
reage, mostrando onde sofre vulnerabilidades de quem o escreveu em sua época.
Mas também o leitor é atingido nos seus preconceitos, nas suas questões, na sua
grelha de partida que é posta em questão pelo próprio texto, se dizer se pode.
Os dois exemplos maiores de exercícios meus foram as leituras do evangelho
de Marcos (1974) e da Poética de Aristóteles (1994): curiosamente, sendo os
dois textos de culturas tão diferentes, uma narrativa e um tratado, foi em
ambos o cuidado de traduzir sempre o termo logos pela mesma palavra nas nossas línguas actuais que
permitiu dar conta da montagem contraditória de cada um. Já agora, o ensaio de
leitura dos diálogos de Platão que tenho no outro blogue de Filosofia com
Ciências mostrou-me, desculpem-me a imodéstia, como esses exercícios
barthesianos, juntamente com as leituras de Heidegger e Derrida é claro, me
tinham aguçado o olhar para certo tipo de detalhes que parecem retóricos e me
deram a entender várias coisas que os especialistas de Platão parece não terem
enxergado, com grande admiração minha: vão às ‘questões de filosofia’, lêem
pedacinhos de texto e não dão pelo texto, em sua escrita, do grande pensador,
por vezes maliciosa como quem pisca o olho ao leitor.
5. Que têm os meus dois exemplos de testemunho
pessoal a ver com a escrita do sopro? A dizer verdade, esta é uma maneira de dizer ‘pensamento’, ‘escrita’
reenviando para as modulações diferenciais, fonéticas e sintácticas, ‘sopro’
para a energia; os exemplos mostram que pensar e ler não vem de dentro para
fora, que fora e dentro não se dissociam, jogando com o sopro do leitor a
acordar o sopro do escritor que por sua vez liberta o sopro do leitor que
escreve: supõe muita recepção anterior da leitura de médias livrescos num
percurso tribal de aprendizagem especializada que desagua no que se chama investigação: esta faz-se sobre textos vindos de longe que são
trabalhados no tribal de tal especialista. A diferença em relação a outras
leituras, de livros ou jornais, está neste trabalho de escrita, que tanto se pode dizer ‘mental’ no sentido do
que se ‘sabe’ na rede neuronal (Damásio) como ‘soprado’, sublinhando a energia
dispendida nesse ‘labor’. Tratando-se nos dois casos de tantos séculos de
distância, é algo de incrivelmente gratificante, mas que teria sido impossível
sem a leitura de tantos textos de Derrida, que lia sempre outros textos, tanto
filosóficos como de ciências sociais e literários, poéticos: esta sua maneira
de nunca escrever senão enquanto leitor, a sua arte inimitável de desconstruir
os textos encontrando detalhes aparentes que se revelam como pontos cegos de
apoio logocêntrico do texto, jogando a sua aposta na escrita como différance
ou trace ou vários outros motivos gramatológicos que a
diversidade das leituras revela. Desconstrução implica detectar lugares do texto onde o
privilégio da interioridade, do inteligível, do poder patriarcal, deixe um
rasto, um vestígio, e num primeiro tempo inverter a relação promovendo o
‘inferior’, num segundo tempo deslocar a relação de forma a deixar perceber o
que, anterior ao diferendo logocêntrico, o tornou possível e durável, dando a
ver uma paisagem textual inédita. Este jogo de leitura-escrita que vai
percorrendo lugares do texto e levantando detalhes que se revelarão desconstrutivos,
sempre diferente de obra para obra, torna impossível apresentar, expor o que
seria o ‘pensamento de Derrida’: ele não se dá no resumo, apenas no trabalho de
ler. Há exemplos em cada texto dele, um que me lembra sem ter que ir folhear
nos livros a buscar outros foi na sua leitura de Freud em L’écriture et la différence, um pequeno texto de 1925 a que nunca ninguém
tinha dado importância sobre uma “maquineta de escrita” que se podia apagar e
escrever de novo mas ficando marcas do apagado (conheci um objecto desses na
minha adolescência) e que Freud usou como ilustração do psiquismo, culminando
na leitura de Derrida a convergencia que vinha fazendo desde 1895 entre escrita
e psíquico. ‘Inimitável’, disse acima, querendo dizer que não sou derridiano
porque não sou capaz, apenas colho dele inspiração, buscando que o que faço à
minha tosca maneira seja compatível com o que dele aprendi, a não fundamentar,
não fechar a escrita, se me for possível.
P. S. No 2º texto deste blogue criticando a noção
de ‘bíblia grega’ de F. Lourenço, pus a questão de saber se o termo grego pneuma, que Platão ignora e para Aristóteles significa a
respiração corporal, isto é, o sopro antes mesmo da fala, se no novo Testamento
cristão não há precipitação dos tradutores em meterem logo o “espírito santo”
aonde a tradição hebraica obrigaria a verificar se não se trata de um “sopro
santo”, o sopro de Deus que pela palavra profética sopra para a conversão, a
mudança da orientação de vida por se ganhar um novo sopro ético. Orígenes, no
início do século III, diz que este pneumaı não é ‘sopro’ (contra: “[Jesus] soprou sobre eles
e disse-lhes: ‘recebei o sopro santo’ ”, evangelho de João, 20, 22) nem ‘fogo’
(contra: “no dia de Pentecostes [...] veio do céu um barulho como dum vento
violento que encheu toda a casa onde estavam; viram aparecer línguas como de
fogo, que se dividiam e repousavam uma sobre cada um; todos foram então cheios
do sopro santo”, Actos dos Apóstolos 2,1-4, até o vento se diz ‘pneuma’ em
grego, embora não seja este o termo aqui) e define o “espírito santo” como
“hipóstase intelectual”, à maneira platónica das Formas ideais e contra as
coisas materiais. O sopro tornou-se em ‘espírito’ um equivalente de ‘alma’ nas
nossas línguas cristãs.