1. Teoria de Tudo cumpre muito bem o milagre do cinema, o de
fazer-nos aceder à intimidade do percurso fascinante de Jane e Stephen Hawking.
Fui especialmente sensível, porque me fazia confusão do que sabia da história
deles, à maneira delicada como, após um amor impossível tão fecundo, eles
vieram a se separar, cada um a formar um novo casal. Poder-se-ia dizer que a
história que nos é oferecida dava uma parábola do pensamento teórico ocidental:
mostra até ao extremo da privação da voz como ele quase não precisa de corpo
humano para ser alcançado, que desse corpo lhe basta a paixão de compreender.
Como se perder a voz e quase o corpo se tivesse tornado condição da busca de
compreender tudo. ‘Tudo’ de quê? de cosmologia, do ‘todo’ do cosmos – “uma teoria completa que descreveria o
universo e tudo o que nele existe”, escreveu Hawking[1]
–, mas o filme não chega lá pela boa razão que foi o físico quem não alcançou o
que o título prometia. E foi essa promessa que me espevitou a pôr a questão das
dificuldades que uma tal teoria põe na actualidade.
2. Começarei por um levantamento de dificuldades,
algumas das quais Hawking não previu, já que para ele a ‘teoria de tudo’ não é
tanto “tudo o que n[o universo] existe”, mas o problema da conciliação entre as
duas grandes físicas do século XX, a da relatividade e a quântica, entre big
Bang, buracos negros e destino de ‘tudo’. Ora, para se tratar de ‘tudo’,
haveria que descrever a lógica dos grandes patamares do universo, incluindo o
terrestre: o da gravitação,
dos astros e dos graves, sem dúvida, mas também o da alimentação, dos que nascem e morrem, e ainda o da habitação das sociedades humanas, em suas técnicas e leis,
bem como o da comunicação pela
palavra. É previsível que uma única ciência não seja suficiente para um
propósito verdadeiramente abrangente de ‘tudo’, bem mais além do que uma
difícil equação como sonhava o jovem Stephen, nos limites da sua cosmologia
astral, como é previsível igualmente que uma filosofia sem as ciências do
século XX também não iria longe. Seria com efeito necessário descrever as
lógicas de cada patamar segundo as respectivas ciências, mas conseguir fazê-lo
de maneira a serem comparáveis umas com as outras e poderem articular-se entre
elas, dar conta dos saltos dos inertes para os vivos e destes aos humanos, à
variedade dos seus usos e línguas. Primeira dificuldade, como articular os
resultados das várias ciências que se ocupam deste ‘tudo’ terrestre, bem mais
complexo do que o do universo cósmico? De qualquer forma, como nenhuma ciência
pode sair sozinha do seu âmbito para se ligar a outra vizinha, haveria
porventura que contar com algo da ordem da filosofia para conseguir tais articulações.
Levantamento de algumas dificuldades
3. Adentro da área da Física, a
questão das suas duas teorias, a do macrocosmos e respectiva velocidade da luz
e a do microcosmos em suas dimensões infra-atómicas (sem falar na física
newtoniana dos engenheiros nas nossas dimensões), coloca o problema da
irredutibilidade dos seus laboratórios[2],
das respectivas técnicas de medição. O astrofísico francês Laurent Nottale, La relativité dans tous ses états. Au-delà de
l’espace-temps (Hachette, 1998) propôs para a relatividade restrita uma equação
cujas variáveis incluem as escalas dessas medições, sem que eu tenha
competência para avaliar o que conseguiu. A dificuldade cosmológica a que sou
mais sensível é a de saber como é que esse ‘tudo’ da teoria explica que um
nevoeiro de partículas pós big Bang se organiza em átomos e moléculas, já que
não parece que se tenha alguma vez conseguido experimentalmente essa performance
nos aceleradores de partículas.
4. Outra dificuldade é da ordem da
passagem da química mineral à bioquímica, tem a ver com a origem da vida. Aqui
é o lindíssimo livro do biólogo italiano Marcello Barbieri, Teoria Semântica da Evolução[3], que abre uma excelente
pista com o relevo dado aos ribossomas (ácidos ribonucleicos, ARN) com as suas
propriedades de sintetizarem proteínas que terão jogado durante o bilião de
anos que precedeu as primeiras células. O que escapa todavia à explicação
físico-química, quero crer, é como é que se foram originando as diversas
espécies e nomeadamente se ‘inventou’ a sexualidade, já que os mecanismos da
reprodução das células são estruturalmente conservadores, servem para
reconstituir o mesmo, são anti-evolutivos. Sendo essa a sua maior objecção, não
consta que a teoria da evolução recorra às ciências físicas e bioquímicas para
lhe responder[4].
5. Uma outra dificuldade para estas
ciências é a da sua intervenção na relação dos sistemas ecológicos com as muito
diferentes organizações sociais das primeiras sociedades humanas, com usos
técnicos variados e línguas que também diferem entre elas. A solução que Claude
Lévi-Strauss propôs para a relação entre biologia e antropologia em Les
structures élémentaires de la parenté (PUF, 1947) é genial: o interdito do incesto é uma regra social que visa uma dimensão biológica, articula a estrutura dos vivos com a da
respectiva sociedade. Com efeito, esse interdito tem como correlativo a exogamia, que em cada casamento liga duas famílias na
nova: em qualquer família havendo associação indissociável de duas famílias, é
esta aliança entre famílias que constitui a sociedade.
6. Para tornar clara a dificuldade
desta maneira de compreender as articulações entre estratos diferentes da
realidade terrestre, do grave mineral ao vivo, do vivo ao social, técnico e
linguístico, dificuldades que aparecem entre praticantes das várias ciências,
tomo a questão das línguas humanas que nos tornam estrangeiros uns aos outros
de sociedade em sociedade, ainda quando os nossos ouvidos biológicos podem
ouvir as frases e palavras dos outros mas sem as compreender. Foi o que a
linguística de Saussure explicou: os sons que ouvimos nas falas não fazem parte
da língua, são as diferenças entre esses sons que os indígenas entendem e os estranhos não. Há
uma lógica sistémica das regras a que as falas obedecem que, disse o linguista
suíço, é imotivada em relação
ao contexto social dos usos e nomes, não se explica por causalidade do sistema
ecológico. Milhares de línguas diferentes foram geradas nas sociedades humanas,
sem dúvida que umas das outras na maioria dos casos: é talvez o patamar onde é
mais claro que o ‘tudo’ escapa à lógica da física e da acústica, da bioquímica
e da fisiologia da fonação. Um caso parecido é o dos diversos desportos cujas
regras, diferindo duns para os outros, não são explicáveis por causas sociológicas
ou psicológicas exteriores a cada um deles: porquê o futebol ou o ténis ou o
salto em altura?
Determinação e aleatório
7. A questão vem então a ser a de
saber se é possível encontrar uma mesma lógica para estes diversos patamares do
nosso universo, uma lógica que dê para compreender “tudo” destes patamares e
das respectivas articulações. Se é precisa uma filosofia que acompanhe os
resultados das diversas ciências, há que indagar se a que se aprende nos liceus
é boa para a tarefa ou se, pelo contrário, ela não terá deixado um obstáculo de
monta no coração das próprias ciências, o determinismo que parece ser, ao
ler-se o que escrevem os cientistas, o que os legitima na sua actividade de
investigação, em busca de ‘leis’ que se cumpram sempre e em qualquer lugar.
Esse determinismo assenta num equívoco que vem de não ser costume, dos
cientistas nem dos filósofos das ciências, perguntarem porque é que as ciências
precisam de laboratório. A resposta é relativamente simples: o laboratório cria
condições de determinação que não existem fora dele, na dita realidade, onde
os jogos de causa e efeito, como se diz, são múltiplos e se confundem uns aos
outros. O equívoco consiste em estender sem mais às cenas da dita realidade os
resultados da experimentação do laboratório: como é que o que é válido no
laboratório passa a ser também fora dele, que antes não era? Como é que actua a
‘teoria’ para sair do laboratório?
8. Um automóvel ilustra claramente
esta questão. Todas as suas peças são testadas laboratorialmente de forma a
que, uma vez montadas, elas funcionem correctamente no andamento do carro. Os
vários engenheiros especialistas, de física e de química, são responsáveis pela
correspondência entre as peças para que elas joguem na estrada tal como foram
estudadas no laboratório. Mas estes laboratórios são irredutíveis uns aos
outros, as suas experimentações são por definição fragmentárias, implicando a
necessidade dum tempo ‘teórico’ – ‘a teoria de tudo’ aplicada ao carro ‘todo’ e
ao ‘tudo’ dos outros carros no tráfego, digamos assim – que tem em conta estas determinações das peças, caso a caso, mas que sabe também que o
conjunto é feito para funcionar em estradas em que conta o aleatório[5] do destino da viagem e do trânsito que se
encontra, das curvas e todas as manobras que é preciso fazer, travar, acelerar,
desviar, etc. Teoria e laboratório fazem unidade assim: a determinação
laboratorial das regras está ao serviço do aleatório do funcionamento do ‘tudo’
fora do laboratório.
9. É fácil demonstrar que as ciências dos vivos e
dos humanos também jogam assim. Há um ciclo biológico do carbono – cujos átomos
vêm na fotossíntese do CO2 da atmosfera às plantas, destas aos
herbívoros e destes aos carnívoros – que resulta de todas as moléculas dos
vivos, excepto a água, exigirem átomos de carbono, donde que uns tenham que
comer os outros: as anatomias animais são constituídas no pormenor de cada
órgão segundo esta lei da selva, para caçarem e evitarem ser caçados, de forma
aleatória. Quando se pensa nela, é uma lógica inacreditável! As línguas
oferecem outro espanto: as regras gramaticais são igualmente usadas quando
falamos ou escrevemos em função do aleatório da conversa ou da questão, sem que
nós tenhamos consciência do jogo incessante delas, regras bem complexas até nas
crianças, que não as aprenderam uma a uma. Também a psicanálise mostrou o jogo
dos nossos afectos nas relações com próximos ou com rivais, sendo o seu
aleatório que dá alguma cor à vida, aos romances, aos filmes. Mas mesmo numa
ciência de inertes como a geologia, vulcões e sismos relevam do aleatório da
constituição da terra, assim como a erosão afecta as rochas e as nossas
máquinas se oxidam fácil e aleatoriamente.
Uma mesma lógica fenomenológica
10. A questão duma teoria pomposamente dita
“teoria de tudo” consistiria então em tentar perceber se estes jogos em cenas
aleatórias – a cena da gravitação, a da alimentação dos
vivos, a da habitação social dos humanos e da sua comunicação – implicam lógicas comparáveis entre elas. Para o
saber é necessário conhecer as principais descobertas das ciências do século
XX, completá-las com o motivo de produção entrópica de Ilya Prigogine e interpretá-las com uma
fenomenologia adequada, fornecida no caso pelo pensamento do filósofo francês
Jacques Derrida. Foi o motivo de duplo laço (do psicólogo americano Gregory Bateson) que ele
propôs que tornou possível encontrar uma mesma lógica fenomenológica em vários
tipos de fenómenos e reconhecê-los como as principais descobertas científicas do século XX. Com efeito, em áreas científicas cujos fenómenos
foram recebidos do século XIX, é possível reconhecer que o século XX postulou
uma zona não fenoménica, de
‘coisas’ retiradas do campo
dos ditos fenómenos. Dito a correr: os átomos têm um núcleo de protões e
neutrões que não interferem na cena terrestre da gravitação nem nas transformações
químicas dos graves; as células guardam o ADN em núcleos, ao abrigo da degradação química no metabolismo, para poderem guiar as sínteses
operadas pelos ARNs; o interdito do incesto retira este do coração familiar onde se reproduz
quotidianamente a sociedade; o sistema das letras das palavras é retirado da significação (as letras não querem dizer nada)
como condição de poderem formar palavras e frases que dizem sentidos; enfim, a
psicanálise foi destas várias ciências a única que teve em conta esta lógica de
‘duplos laços’, o recalcamento das pulsões incestuosas e agressivas sendo condição da maior ou menor
liberdade dos jogos afectivos. Ora, também o automóvel de que demos exemplo tem
o seu cilindro onde se dá a explosão da gasolina como motor retirado, inexpugnável ao resto do carro: estes dois laços de peças são por um lado
inconciliáveis (é o inexpugnável do retiro) mas também indissociáveis: nenhum deles vale sem o outro, não ‘dois
laços’ mas ‘um duplo laço’, um e contraditório. É possível detalhar de forma
geral como as coisas se passam no caso de cada uma das ciências em questão[6].
11. Ao escrever Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (L’Harmattan, 2007), nunca me passou pela cabeça
chamar “teoria de tudo” a esta visão geral das principais ciências em aliança
com a fenomenologia, mas reconheço que se trata de algo que vai no sentido
desse título ambicioso, no sentido da tradição sistemática das grandes sínteses
do saber ocidental, sendo todavia que o lugar central do aleatório no
jogo do mundo contraria o determinismo da noção de sistema dessa tradição
europeia, implica que cada coisa seja na realidade indeterminada, é por isso, disse-se, que é necessário o laboratório.
Desde os inertes, rochas, águas e ares, abertos à gravidade e à transformação
química, que tal indeterminação cresce com a complexidade dos vivos, dos
invertebrados ao duplo cérebro de aves e mamíferos, até chegar ao enigma dos
humanos desde a pré-história até hoje, ao enigma da liberdade de cada um, cuja
fecundidade atinge os pontos mais altos nos santos, pensadores, artistas,
inventores, heróis, naqueles que dão incentivo à nossa esperança. Um deles é
Stephen Hawking, e a sua Jane também.
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