quarta-feira, 18 de março de 2015

“Teoria de Tudo”



1. Teoria de Tudo cumpre muito bem o milagre do cinema, o de fazer-nos aceder à intimidade do percurso fascinante de Jane e Stephen Hawking. Fui especialmente sensível, porque me fazia confusão do que sabia da história deles, à maneira delicada como, após um amor impossível tão fecundo, eles vieram a se separar, cada um a formar um novo casal. Poder-se-ia dizer que a história que nos é oferecida dava uma parábola do pensamento teórico ocidental: mostra até ao extremo da privação da voz como ele quase não precisa de corpo humano para ser alcançado, que desse corpo lhe basta a paixão de compreender. Como se perder a voz e quase o corpo se tivesse tornado condição da busca de compreender tudo. ‘Tudo’ de quê? de cosmologia, do ‘todo’ do cosmos –  “uma teoria completa que descreveria o universo e tudo o que nele existe”, escreveu Hawking[1] –, mas o filme não chega lá pela boa razão que foi o físico quem não alcançou o que o título prometia. E foi essa promessa que me espevitou a pôr a questão das dificuldades que uma tal teoria põe na actualidade.
2. Começarei por um levantamento de dificuldades, algumas das quais Hawking não previu, já que para ele a ‘teoria de tudo’ não é tanto “tudo o que n[o universo] existe”, mas o problema da conciliação entre as duas grandes físicas do século XX, a da relatividade e a quântica, entre big Bang, buracos negros e destino de ‘tudo’. Ora, para se tratar de ‘tudo’, haveria que descrever a lógica dos grandes patamares do universo, incluindo o terrestre: o da gravitação, dos astros e dos graves, sem dúvida, mas também o da alimentação, dos que nascem e morrem, e ainda o da habitação das sociedades humanas, em suas técnicas e leis, bem como o da comunicação pela palavra. É previsível que uma única ciência não seja suficiente para um propósito verdadeiramente abrangente de ‘tudo’, bem mais além do que uma difícil equação como sonhava o jovem Stephen, nos limites da sua cosmologia astral, como é previsível igualmente que uma filosofia sem as ciências do século XX também não iria longe. Seria com efeito necessário descrever as lógicas de cada patamar segundo as respectivas ciências, mas conseguir fazê-lo de maneira a serem comparáveis umas com as outras e poderem articular-se entre elas, dar conta dos saltos dos inertes para os vivos e destes aos humanos, à variedade dos seus usos e línguas. Primeira dificuldade, como articular os resultados das várias ciências que se ocupam deste ‘tudo’ terrestre, bem mais complexo do que o do universo cósmico? De qualquer forma, como nenhuma ciência pode sair sozinha do seu âmbito para se ligar a outra vizinha, haveria porventura que contar com algo da ordem da filosofia para conseguir tais articulações.

Levantamento de algumas dificuldades
3. Adentro da área da Física, a questão das suas duas teorias, a do macrocosmos e respectiva velocidade da luz e a do microcosmos em suas dimensões infra-atómicas (sem falar na física newtoniana dos engenheiros nas nossas dimensões), coloca o problema da irredutibilidade dos seus laboratórios[2], das respectivas técnicas de medição. O astrofísico francês Laurent Nottale, La relativité dans tous ses états. Au-delà de l’espace-temps (Hachette, 1998) propôs para a relatividade restrita uma equação cujas variáveis incluem as escalas dessas medições, sem que eu tenha competência para avaliar o que conseguiu. A dificuldade cosmológica a que sou mais sensível é a de saber como é que esse ‘tudo’ da teoria explica que um nevoeiro de partículas pós big Bang se organiza em átomos e moléculas, já que não parece que se tenha alguma vez conseguido experimentalmente essa performance nos aceleradores de partículas.
4. Outra dificuldade é da ordem da passagem da química mineral à bioquímica, tem a ver com a origem da vida. Aqui é o lindíssimo livro do biólogo italiano Marcello Barbieri, Teoria Semântica da Evolução[3], que abre uma excelente pista com o relevo dado aos ribossomas (ácidos ribonucleicos, ARN) com as suas propriedades de sintetizarem proteínas que terão jogado durante o bilião de anos que precedeu as primeiras células. O que escapa todavia à explicação físico-química, quero crer, é como é que se foram originando as diversas espécies e nomeadamente se ‘inventou’ a sexualidade, já que os mecanismos da reprodução das células são estruturalmente conservadores, servem para reconstituir o mesmo, são anti-evolutivos. Sendo essa a sua maior objecção, não consta que a teoria da evolução recorra às ciências físicas e bioquímicas para lhe responder[4].
5. Uma outra dificuldade para estas ciências é a da sua intervenção na relação dos sistemas ecológicos com as muito diferentes organizações sociais das primeiras sociedades humanas, com usos técnicos variados e línguas que também diferem entre elas. A solução que Claude Lévi-Strauss propôs para a relação entre biologia e antropologia em Les structures élémentaires de la parenté (PUF, 1947) é genial: o interdito do incesto é uma regra social que visa uma dimensão biológica, articula a estrutura dos vivos com a da respectiva sociedade. Com efeito, esse interdito tem como correlativo a exogamia, que em cada casamento liga duas famílias na nova: em qualquer família havendo associação indissociável de duas famílias, é esta aliança entre famílias que constitui a sociedade.
6. Para tornar clara a dificuldade desta maneira de compreender as articulações entre estratos diferentes da realidade terrestre, do grave mineral ao vivo, do vivo ao social, técnico e linguístico, dificuldades que aparecem entre praticantes das várias ciências, tomo a questão das línguas humanas que nos tornam estrangeiros uns aos outros de sociedade em sociedade, ainda quando os nossos ouvidos biológicos podem ouvir as frases e palavras dos outros mas sem as compreender. Foi o que a linguística de Saussure explicou: os sons que ouvimos nas falas não fazem parte da língua, são as diferenças entre esses sons que os indígenas entendem e os estranhos não. Há uma lógica sistémica das regras a que as falas obedecem que, disse o linguista suíço, é imotivada em relação ao contexto social dos usos e nomes, não se explica por causalidade do sistema ecológico. Milhares de línguas diferentes foram geradas nas sociedades humanas, sem dúvida que umas das outras na maioria dos casos: é talvez o patamar onde é mais claro que o ‘tudo’ escapa à lógica da física e da acústica, da bioquímica e da fisiologia da fonação. Um caso parecido é o dos diversos desportos cujas regras, diferindo duns para os outros, não são explicáveis por causas sociológicas ou psicológicas exteriores a cada um deles: porquê o futebol ou o ténis ou o salto em altura?

Determinação e aleatório
7. A questão vem então a ser a de saber se é possível encontrar uma mesma lógica para estes diversos patamares do nosso universo, uma lógica que dê para compreender “tudo” destes patamares e das respectivas articulações. Se é precisa uma filosofia que acompanhe os resultados das diversas ciências, há que indagar se a que se aprende nos liceus é boa para a tarefa ou se, pelo contrário, ela não terá deixado um obstáculo de monta no coração das próprias ciências, o determinismo que parece ser, ao ler-se o que escrevem os cientistas, o que os legitima na sua actividade de investigação, em busca de ‘leis’ que se cumpram sempre e em qualquer lugar. Esse determinismo assenta num equívoco que vem de não ser costume, dos cientistas nem dos filósofos das ciências, perguntarem porque é que as ciências precisam de laboratório. A resposta é relativamente simples: o laboratório cria condições de determinação que não existem fora dele, na dita realidade, onde os jogos de causa e efeito, como se diz, são múltiplos e se confundem uns aos outros. O equívoco consiste em estender sem mais às cenas da dita realidade os resultados da experimentação do laboratório: como é que o que é válido no laboratório passa a ser também fora dele, que antes não era? Como é que actua a ‘teoria’ para sair do laboratório?
8. Um automóvel ilustra claramente esta questão. Todas as suas peças são testadas laboratorialmente de forma a que, uma vez montadas, elas funcionem correctamente no andamento do carro. Os vários engenheiros especialistas, de física e de química, são responsáveis pela correspondência entre as peças para que elas joguem na estrada tal como foram estudadas no laboratório. Mas estes laboratórios são irredutíveis uns aos outros, as suas experimentações são por definição fragmentárias, implicando a necessidade dum tempo ‘teórico’ – ‘a teoria de tudo’ aplicada ao carro ‘todo’ e ao ‘tudo’ dos outros carros no tráfego, digamos assim – que tem em conta estas determinações das peças, caso a caso, mas que sabe também que o conjunto é feito para funcionar em estradas em que conta o aleatório[5] do destino da viagem e do trânsito que se encontra, das curvas e todas as manobras que é preciso fazer, travar, acelerar, desviar, etc. Teoria e laboratório fazem unidade assim: a determinação laboratorial das regras está ao serviço do aleatório do funcionamento do ‘tudo’ fora do laboratório.
9. É fácil demonstrar que as ciências dos vivos e dos humanos também jogam assim. Há um ciclo biológico do carbono – cujos átomos vêm na fotossíntese do CO2 da atmosfera às plantas, destas aos herbívoros e destes aos carnívoros – que resulta de todas as moléculas dos vivos, excepto a água, exigirem átomos de carbono, donde que uns tenham que comer os outros: as anatomias animais são constituídas no pormenor de cada órgão segundo esta lei da selva, para caçarem e evitarem ser caçados, de forma aleatória. Quando se pensa nela, é uma lógica inacreditável! As línguas oferecem outro espanto: as regras gramaticais são igualmente usadas quando falamos ou escrevemos em função do aleatório da conversa ou da questão, sem que nós tenhamos consciência do jogo incessante delas, regras bem complexas até nas crianças, que não as aprenderam uma a uma. Também a psicanálise mostrou o jogo dos nossos afectos nas relações com próximos ou com rivais, sendo o seu aleatório que dá alguma cor à vida, aos romances, aos filmes. Mas mesmo numa ciência de inertes como a geologia, vulcões e sismos relevam do aleatório da constituição da terra, assim como a erosão afecta as rochas e as nossas máquinas se oxidam fácil e aleatoriamente.

Uma mesma lógica fenomenológica
10. A questão duma teoria pomposamente dita “teoria de tudo” consistiria então em tentar perceber se estes jogos em cenas aleatórias – a cena da gravitação, a da alimentação dos vivos, a da habitação social dos humanos e da sua comunicação – implicam lógicas comparáveis entre elas. Para o saber é necessário conhecer as principais descobertas das ciências do século XX, completá-las com o motivo de produção entrópica de Ilya Prigogine e interpretá-las com uma fenomenologia adequada, fornecida no caso pelo pensamento do filósofo francês Jacques Derrida. Foi o motivo de duplo laço (do psicólogo americano Gregory Bateson) que ele propôs que tornou possível encontrar uma mesma lógica fenomenológica em vários tipos de fenómenos e reconhecê-los como as principais descobertas científicas do século XX. Com efeito, em áreas científicas cujos fenómenos foram recebidos do século XIX, é possível reconhecer que o século XX postulou uma zona não fenoménica, de ‘coisas’ retiradas do campo dos ditos fenómenos. Dito a correr: os átomos têm um núcleo de protões e neutrões que não interferem na cena terrestre da gravitação nem nas transformações químicas dos graves; as células guardam o ADN em núcleos, ao abrigo da degradação química no metabolismo, para poderem guiar as sínteses operadas pelos ARNs; o interdito do incesto retira este do coração familiar onde se reproduz quotidianamente a sociedade; o sistema das letras das palavras é retirado da significação (as letras não querem dizer nada) como condição de poderem formar palavras e frases que dizem sentidos; enfim, a psicanálise foi destas várias ciências a única que teve em conta esta lógica de ‘duplos laços’, o recalcamento das pulsões incestuosas e agressivas sendo condição da maior ou menor liberdade dos jogos afectivos. Ora, também o automóvel de que demos exemplo tem o seu cilindro onde se dá a explosão da gasolina como motor retirado, inexpugnável ao resto do carro: estes dois laços de peças são por um lado inconciliáveis (é o inexpugnável do retiro) mas também indissociáveis: nenhum deles vale sem o outro, não ‘dois laços’ mas ‘um duplo laço’, um e contraditório. É possível detalhar de forma geral como as coisas se passam no caso de cada uma das ciências em questão[6].
11. Ao escrever Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (L’Harmattan, 2007), nunca me passou pela cabeça chamar “teoria de tudo” a esta visão geral das principais ciências em aliança com a fenomenologia, mas reconheço que se trata de algo que vai no sentido desse título ambicioso, no sentido da tradição sistemática das grandes sínteses do saber ocidental, sendo todavia que o lugar central do aleatório no jogo do mundo contraria o determinismo da noção de sistema dessa tradição europeia, implica que cada coisa seja na realidade indeterminada, é por isso, disse-se, que é necessário o laboratório. Desde os inertes, rochas, águas e ares, abertos à gravidade e à transformação química, que tal indeterminação cresce com a complexidade dos vivos, dos invertebrados ao duplo cérebro de aves e mamíferos, até chegar ao enigma dos humanos desde a pré-história até hoje, ao enigma da liberdade de cada um, cuja fecundidade atinge os pontos mais altos nos santos, pensadores, artistas, inventores, heróis, naqueles que dão incentivo à nossa esperança. Um deles é Stephen Hawking, e a sua Jane também.



[1] A minha breve história, Gradiva, p. 85.
[2] Em blogue : Porque é que as ciências precisam de laboratório ?
[3] Fragmentos, 1987, que lástima que esteja esgotado.
[5] Aleatório não é acaso: se choco com um carro, isso faz parte da minha azelhice no aleatório da lei do tráfego; se nesse carro vai um amigo de liceu, isso é acaso.

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