1. Nós aprendemos e o que aprendemos
torna-se habitual, não é preciso pensar mais nisso, mas é a partir do que vamos
aprendendo que temos evidências em novas aprendizagens. Com o tempo, há coisas
que vêm bulir com o que se aprendeu antes, com o que já se sabia, geram-se
confusões, contradições, há quem queira perceber. Platão e Aristóteles disseram
ambos que o espanto é a origem da sabedoria, é sobre o que já se sabe que ele incide:
Sócrates chegou ao ponto de achar que só sabia que nada sabia, ao ponto de
desdizer tudo o que tinha aprendido, ao ponto do grande espanto. Vieram outros
a espantarem-se no rasto destes e doutros, até nós.
2. Há dias, a propósito de coisas que
li no imenso nº do Público de
5 de Março dos seus 25 anos, não me lembro ao certo o quê, veio-me um espanto,
um ‘inacreditável!’ e ao dar-me conta que o meu blogue habitual estava no nº
99, resolvi fazer o nº 100 sobre ele, mas acrescentando-lhe mais dois que já
tinha, por onde começarei porque ajudam a perceber o que veio de novo.
3. Quem me lê por vezes já saberá,
mas continuo a achar que a lei da selva é inacreditável, e creio que o é para toda a gente, até porventura para os
biólogos, já que eles, tendo-a no dia a dia do seu material, não parecem dar
por ela. Teresa Avelar, a quem mandei o texto em que falava dela e a propunha
como chave da evolução e da selecção natural de Darwin, reagiu negativamente,
sem que eu tenha conseguido perceber como motivo que haja algo no paradigma
biológico que impede tal percepção. Ora, a argumentação é fácil de fazer. Há
uns 30 e tal anos, admirei-me que houvesse evolução no sentido de se criarem de
novo moléculas com átomos de carbono que não haveria, cuidava eu, à partida da
invenção da vida. Foi uma bióloga do Porto que encontrei em Coimbra, não me
lembro do nome, tenho pena de não a poder citar, tanto que lhe devo, que me
esclareceu: a atmosfera da época não tinha oxigénio mas era abundante em
anidrido carbónico, foram esses átomos de carbono que, por efeitos de tipo
fotossíntese, a atmosfera cedeu às células. Deslumbrei-me e a pouco e pouco das
leituras fui percebendo a lógica inacreditável da vida que tem no seu coração a
necessidade incessante de átomos de carbono (e doutros, claro, mas este chega
para o argumento) que as plantas recebem com a luz, como glicose. O problema é
o dos animais, que não sabem fazer ou receber fotossíntese e têm como única
fonte de carbono as plantas. ‘Única’ enquanto não houve número suficiente de
herbívoros, vertebrados ou invertebrados, para se tornarem por sua vez fontes
de carbono para os carnívoros. Até aqui, parece que a lógica joga bem. O que
vem a seguir é mais polémico: o que se chama, sempre em uso metafórico aplicado
aos humanos, a lei da selva, é
literalmente a lei da biologia animal! E que se trata duma lei, derivada deste
ciclo biológico das moléculas de carbono, pode-se deduzir do facto da anatomia
dos animais, todos, herbívoros como carnívoros, estar feita para este processo
de aquisição de moléculas de carbono. Anatomias sempre diferentes segundo as
espécies, são determinadas (sem determinismos, claro, a variação das anatomias
é argumento suficiente) por essa lei da selva. É essa lei que é inacreditável!
Contra o romantismo da harmonia da Natureza e da sua beleza, Nietzsche sabia
que ela era bela e cruel. Mas nunca dei por se encontrar nesta lei uma objecção
contra a bondade de Deus (ele seria pelo leão ou pelo veado?), embora a Bíblia
tenha contornado o problema, no seu primeiro capítulo sobre a criação, texto
belíssimo de razão anterior a Platão, os animais e os humanos são todos criados
como vegetarianos, só mais tarde é que Deus deixou que comessem carne, mas não
o sangue. Ora bem, essa lei é ignorada (fui eu que a descobri?) ou é
silenciada? Seja como fôr, é
inacreditável! É aliás onde está a origem do mal, da violência, já que as
espécies têm que desenvolver formas de atacar e de se defender, nas mais
evoluídas isso resultou em músculos e em astúcias de agressão, que os humanos
herdámos.
4. A outra coisa que é inacreditável
é a invenção da sexualidade pela evolução, que sem ela não teria ido muito
longe. É que a lógica da reprodução normal das células, das nossas mas também
dos unicelulares e das primeiras colónias de unicelulares, é de reproduzirem-se
sempre as mesmas, como os clones. Sejam quais sejam as formas de alimentação
desses bicharocos, vermes e hidras de água doce, eles não morrem (a não ser que
os comam), crescem e depois uma parte deles separa-se e continuam a crescer e a
separar-se. Antes, a lógica da vida – invenção da reprodução das células –
vencera o acaso que jogou nessa invenção, mas em ambientes pouco hospitaleiros,
as possibilidades dessa reprodução implicando alguma aleatoriedade eram
reduzidas. A invenção da sexualidade inverte isto, é como que uma segunda
invenção da vida (esta, segundo Marcello Barbieri, no extraordinário Teoria
semântica da evolução, durou um
bilião de anos para se conseguir): reintroduz o acaso para reforçar o
aleatório. Torna-se necessário que uma fêmea acolha um macho e daí resulte um
terceiro, muitos terceiros aliás, distintos dos progenitores, isto é, outros
indivíduos, macho ou fêmea (com indistinção inicial) que ficam lá quando eles
morrerem. Ou seja, inventou-se duma vez só: fêmea e macho, indivíduos
separados, o nascimento e a morte, a possibilidade futura de aprender. E para
isso, plantas também aliás, geram-se quantidades astronómicas de gâmetas em
pura perca, já que a lógica é estatística, apenas 1 ou poucos em milhões (aqui
é claro que hesito, não sei que chegue). Em nós, que não temos o cio das fêmeas
que limita os efeitos terríveis da sexualidade a alguns dias de vez em quanto,
as pulsões sexuais são tais que têm que ser reprimidas por interditos do
incesto desde sempre para tornar viável o convívio sexual, sem se perder o
entusiasmo; mas como houve repressão dela durante milénios! Tanto no seu passo
biológico como na história das sociedades humanas até Maio 68, não é inacreditável
a sexualidade?
5. Tanto a lei da selva como a
sexualidade pertencem a uma história cheia de aleatórios e de acasos, de acasos
que se estabilizam como aleatórios. O meu terceiro espanto é este: a Terra é
uma excepção cosmológica. Tanto
quanto nós conhecemos, só ela tem condições para a vida evoluindo até aos
humanos e estes até à modernidade que se globaliza a nossos olhos. Não sei
argumentar sobre a história geológica, porquê os oceanos e o seu sal e a
atmosfera de anidrido carbónico, as condições da gravidade que temos, a pressão
e as temperaturas capazes de a vida suceder. Imagino facilmente que essas
condições implicaram no tempo e implicam hoje ainda muito acaso e é justamente
o ter-me conseguido libertar – devido à fenomenologia e a Prigogine – do
determinismo científico, de ter conseguido compreender que as regras que as
ciências descobrem jogam em situações aleatórias, como o automóvel exemplifica,
é por isso que esta excepção cosmológica da Terra me parece inacreditável. A
outros também mas ao contrário, custa-lhes a crer, apostam que haverá outros
planetas habitados, mas do que nos contam percebe-se que seriam precisos muitos
séculos para os encontrar. Ora, a evolução à base da lei da selva e da
sexualidade implica tanto e tanto acaso e correlativo sucesso aleatório que,
ainda que se soubesse dum planeta geologicamente parecido com o nosso, era mais
que improvável que lá tenha acontecido vida e sociedades humanas. O
inacreditável não se repete.
Faz hoje dois anos que morreu o arquitecto Manuel Vicente, meu cunhado. Ele havia de gostar disto.
Faz hoje dois anos que morreu o arquitecto Manuel Vicente, meu cunhado. Ele havia de gostar disto.
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