1. Algum tempo antes da sua vinda a Coimbra em novembro de 2003, escrevi a
Jacques Derrida perguntando-lhe como é que na Física se punha a questão do
rasto, da trace ou différance. Quando cá esteve, disse-me sorrindo que eu lhe
punha questões muito difíceis, o que compreendi como significando que não
frequentava pela leitura esse tipo de ciências. Tendo depois encontrado,
nomeadamente num seu livro em diálogo com Elisabeth Roudinesco (De quoi
demain..., Fayard/Galilée), mais duma
vez a expressão trace vivante,
depreendi que esta fora inventada com a vida e não tinha cabimento nos inertes
de que Física e Química se ocupam. Átomos e moléculas formam graves, sejam do
mesmo tipo de moléculas, sejam misturando-as como nos granitos, por exemplo,
mas não constituem enquanto tais, nem nos astros, estrelas em combustão ou
planetas áridos, tanto quanto eu (não) sei, estratos mineralmente acima do que
são as moléculas, digamos, apesar dos campos que os sustentam, como o da
gravidade. Tal como as garrafas ou as lâmpadas produzidas numa cadeia de
fábrica, os graves não são nomeáveis individualmente, apenas susceptíveis de
numeração, enquanto que os vivos são novas assemblagens de moléculas, criam a
possibilidade de indivíduos
empiricamente distintos, não idênticos, serem da mesma categoria
que outros, pertencerem à mesma espécie. Os inertes não têm espécie, eles oferecem os elementos empíricos de que
se fabricaram as espécies vivas.
2. A questão não fica todavia resolvida, percebo agora. No texto de Derrida
De la grammatologie (Minuit,
1967), a trace ou différance é por duas vezes dita triplamente: “a estrutura
geral do rasto imotivado faz comunicar na mesma possibilidade e sem que se os
possa separar senão por abstracção, a estrutura da relação ao outro, o
movimento da temporalização e a linguagem como escritura” (p. 69, cf p. 88). O
“movimento da temporalização” será doutras vezes dito espácio-temporalização
(no texto citado umas linhas abaixo) e implica que um vivo ou um texto individuais em suas células ou frases, na sua ‘substância’
espacial e na temporalidade que é a sua (crescer, num caso, escrever-se e
ler-se no outro), relevam dum mesmo prévio, o da espécie ou a da língua que, sendo substancialmente ‘nada’,
são (n)este vivo ou (n)este texto o que o faz/fez/fará esse indivíduo vivo ou
textual não idêntico a outros. A esta indissociabilidade entre o mesmo e o não
idêntico, a economia e o excesso, chamará em “La différance” (Marges. De la
Philosophie, Minuit, p. 20,
existe tradução na Rés), o “enigma” deste motivo gramatológico. “A estrutura da
relação ao outro” diz como um vivo vem doutro vivo, esse ‘vir de’ relevando da
mesma espécie e ainda que o animal se alimenta de vegetai ou animais, assim
como um texto vem doutro e a outro vai, na mesma língua de que são originados.
“A linguagem como escritura”, dita doutras vezes a origem da linguagem como
escritura, marca um dos primeiros escândalos provocados por Derrida, ao
pretender que a linguagem oral é posterior à escritura: a interioridade oral
releva duma impressão vinda de fora, da inscrição pela aprendizagem. Foi este o motivo que Derrida
introduziu em filosofia como questão que a desconstrói, esta mesma que estou
dizendo. É esta estrutura tripla que permite compreender a biologia, a linguística,
qualquer ciência do social, o mesmo sendo o que os respectivos cientistas buscam aclarar em análises sobre indivíduos
não idênticos, que
necessariamente reduzem ao abstraírem as suas experimentações.
3. A questão agora é: se for verdade, como creio ter
percebido então, que os inertes da Física e da Química são prévios à trace ou différance, isso implica que esta estrutura tripla não
tenha relevância nessas ciências? O que pode ser ela em ciências sem espécie
nem sociedade nem língua? Julgo que é o motivo do campo de forças que tem o lugar desses motivos, mas há que
acrescentar que essa afirmação seria inaceitável pelos seus praticantes, como
já sugeria o meu texto neste blogue Questão prigoginiana sobre energia,
força e entropia. Vejamos então
as incidências da tripla estrutura do campo de forças com o exemplo do sistema
planetário e partindo da frente para trás. A “origem da linguagem como
escritura” significa aqui que o motivo de campo de forças de gravidade seja
epistemologicamente colocado previamente aos astros que o campo em suas forças
sustenta, planetas e sol, embora não exista sem ser a resultante delas, tal
como a espécie biológica tem privilégio epistemológico sobre os seus
indivíduos, sem os quais ela não é, a língua sobre os textos, a sociedade sobre
as suas populações. Por outro lado, olhando os graves do mundo
terrestre, “a origem da linguagem como escritura” posiciona a Química
em relação à Física, colocando-a como a ciência da ‘origem’ das moléculas e dos
graves, antes de a Física inquirir dos seus diversos movimentos: a uma a
‘substância’, à outra o ‘movimento’. “A estrutura da relação ao outro” tem a
ver com a definição mesma do campo de forças de gravidade, com a alteridade dos
planetas e do sol uns em relação aos outros, sendo todavia que apenas o sistema
da alteridade dessas forças dá conta da posição de cada um dos planetas e do
sol: distinção epistemológica, não cronológica. O “movimento da temporalização”
ou espácio-temporalização é sem dúvida o que poderia provocar maior escândalo
se houvesse físicos para lerem este blogue. É que isto implica que não exista
neles mesmos, isoladamente, nem o espaço nem o tempo nem o espaço-tempo que
estão no coração das especulações da teoria da relatividade: apenas há
graves e astros espácio-temporais. Não se trata de voltar a Kant, porque não há aqui ‘sujeitos’ que vêem,
ouvem e mexem, apenas matérias e suas leis físicas e químicas.
4. Ora, isto põe uma dificuldade, que é típica do
pensamento derridiano, que coloca a repetição como origem, num paradoxo que significa
que não há acesso humano a origens. A língua ser anterior às palavras significa
que só há palavras como repetições encadeadas sintacticamente: ninguém inventa
palavras, quando isso parece suceder é porque muita gente começou a repetir. A
espécie anterior aos seus indivíduos significa que nem galinha nem ovo são
primeiros, mas sempre já indivíduos que se reproduzem. Também só há célula
quando se reproduz, se repete. As sociedades igualmente: os colonos duma ilha deserta
repetem, quanto podem, o que das suas sociedades sabiam.
5. Em física, isto implica que não se começa por
partículas ou electrões ou núcleos atómicos, não há forças nucleares já lá que
depois congregam protões e neutrões, como não haverá forças electromagnéticas
que congregam núcleos atómicos e electrões para fazerem átomos, nem haverá
forças de gravidade antes de haver astros. Que haja físicos, todos
provavelmente, para acharem que sim, significa que, não havendo, que eu saiba
(nunca li), experiências laboratoriais dessas congregações, antes pelo
contrário, não há partículas antes de átomos em seus campos nucleares e
electromagnéticos que se fazem explodir nas centrais e nos aceleradores do CERN. Sobre estas experimentações, de partículas a
partirem em todos os sentidos depois de largadas pelos campos que as retinham,
pode-se especular a sua retroversão, uma explosão de partículas a voltarem para
trás e reformarem átomos com núcleos, mas é especulação, ainda que se possam
propor cálculos e equações de como isso se faria, só restando fazer. Não há
origem, apenas os cálculos dela, não há big Bang senão como mito (ateu) de criação
do universo. Não há partículas sem campos, é a sequência do big Bang até às
estrelas (claro que poderá haver algo antes delas) que se revela igualmente
mítica, isto é, especulativa, filosófica, insusceptível de laboratório
CERNético que a confirme. Onde os laboratórios físicos alcançam, encontram
sempre já como sua condição campos de gravitação e portanto electromagnéticos e
nucleares.
6. Porque é que um filósofo se mete em coisas que
não são da sua lavra? Mas eu não discuto física nem biologia, mas sim
filosofia, uma fenomenologia em que as ciências jogam um papel, do que elas nos
ensinaram sobre os fenómenos que estudam, que a um outro nível, são da lavra fenomenológica também. Houve uma maneira de raciocinar científica partindo do elementar
mais elementar uma maneira
cartesiana que inaugurou o “método” que foi adoptado pelo pensamento cientifico
e filosófico durante séculos: começar pelos objectos mais simples e mais fáceis
de conhecer para ir subindo pouco a pouco, como por degraus ao conhecimento dos
mais compostos. Ora, esta maneira foi denunciada no século XX de vários lados,
que propõem a noção de complexidade, por exemplo de Edgar Morin, ou de
estrutura, com exemplos variados nos estruturalismos dos anos 60, de sistema,
etc. É certo que o meu trabalho de Fenomenologia como Filosofia com Ciências, onde a gramatologia de Derrida se
revelou de grande fecundidade, foi desenvolvido a partir da Biologia, da Linguística,
da Antropologia de Lévi-Strauss e da Psicanálise, e só de seguida aplicada à
Química Física, o que obviamente não deve agradar aos praticantes da ciência
que sempre ocupou o primeiro lugar, no prestígio como na eficácia técnica
demonstrada (felizmente para os físicos que há outras filosofias mais crentes
nos seus mitos).
7. Mas eu presumo que possa haver alguma
fecundidade na proposta que fiz, sabendo embora que o risco de não haver
físicos para ligarem a ela é inevitável, ou se rirem da minha ingenuidade. E a
razão é esta: a história da filosofia europeia, onde Descartes é peça decisiva,
deixou nas ciências que dela se pariram um obstáculo epistemológico de predomínio do interior sobre o exterior que
continua a jogar nos paradigmas dessas ciências, o que na Física é o predomínio
das substâncias (astros, graves, átomos, cargas eléctricas...) sobre os
respectivos campos, como parece que persiste na física das partículas: quarks e
gluões e sopas delas, como se o universo tivesse começado por aí. É como se não
soubessem o que fazer da noção de força atractiva, que parece ser interpretada como uma banal força
local, tipo bola de bilhar em movimento que faz andar uma em repouso com que
choca.
8. A proposta fenomenológica consiste em
compreender cada realidade do universo terrestre através de duplos laços dos
seus elementos. No caso da Química Física, o duplo laço do átomo é por um lado
o das forças nucleares que retêm protões e neutrões, e por outro o das forças
electromagnéticas que retêm electrões. Duplo pois, mas ‘um’ apenas, nenhum
tendo sentido físico sem o outro: o primeiro garante a impenetrabilidade do átomo por qualquer coisa de outro do que ele,
resiste à explosão do núcleo, o segundo ciente dessa impenetrabilidade
oferece-se à troca de electrões com outros átomos para formar moléculas, a
partir das quais o conjunto delas se presta à atracção das forças de gravidade
as quais retêm e atraem graves e astros. Quando o que é assim retido se solta
dessas forças, expande-se como nas explosões de gasolina ou nucleares, as
sondas deixam a gravidade terrestre e fogem por inércia. Ou ainda: se a força de gravidade se
detecta apenas nos astros, como pretender que ela se exerça nas partículas à
solta do mundo quântico? O que a física ensina é que a estabilidade do que
chamamos matéria tem aí a sua
base, dependente das condições da temperatura.
9. Se estas três forças estruturam o universo dos
astros e a explosão das primeiras dá origem a partículas desenfreadas, quase
todas instáveis em prazos curtíssimos, é difícil de pensar, a crer nos laboratórios, que se trate aí de
algo de consistente, a crer nos laboratórios: é-se tentado a pensar, como
fenomenólogo que não tem que propor números nem equações, que a estrutura do
átomo e da molécula resulta da maneira como os duplos laços retiveram as respectivas
partículas impedindo-as de fugirem segundo a inércia, tentado a pensar que se
trata de fenómenos do primeiro nível da entropia positiva de Prigogine. É que todos os duplos laços
seguintes, a começar pelo das células, são sempre fenómenos de ligações entrópicas de elementos que os tornam
capazes de movimentos aleatórios que seguem as regras que as respectivas ciências
vão descobrindo.
10. Parece que o motivo de campo de forças não é um motivo estrutural da teoria física, sem
que eu saiba perceber que contradições isso tem nela. Não me parece que haja
campo de forças em Mecânica quântica. Que a impenetrabilidade do átomo seja
devida ao seu núcleo implica o primado absoluto da exterioridade, do campo de
forças, ao substancial, ao material. As galáxias não serão os grandes campos
cósmicos?
11. Só um não cientista pode ter audácias destas.
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