1. A minha vida intelectual foi cheia
de surpresas, as maiores deste jeito: pegar em textos muito lidos por
especialistas e descobrir-lhes lógicas textuais inéditas que transformaram a
leitura deles. Foi o caso antes de mais do evangelho de Marcos, mas depois da Poética de Aristóteles, do 4º capítulo do Discurso do
Método de Descartes, dum bom
conjunto de livros da Bíblia, da hebraica (após revolução da exegese do Pentateuco:
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2013/09/a-biblia-hebraica-revisitada.html)
e do novo Testamento cristão, dos diálogos de Platão, enfim. É claro que não se
trata de habilidade minha, a não ser a que me veio da admirável leitura textual
do Sarrasine de Balzac, S/Z, por Roland Barthes (é certo que esta, que eu saiba, não proliferou assim em
mais ninguém), da leitura sintomal de Althusser com Bachelard por detrás, da
gramatologia de Derrida. O que se passou em cada uma destas descobertas, tanto
quanto me apercebo, sem conhecer na maior parte dos casos quase nada do dossier
respectivo, foi que a abordagem da problemática textual aos textos inovou em
relação a ‘leituras referenciais’ – se dizer se pode assim a ausência de
métodos de leitura adequados à textualidade
–, leituras por assim dizer ‘pedaço a pedaço’, referindo cada um deles à ‘realidade’
de que fala, consoante as questões do leitor investigador que, à leitura
textual, se revelam não serem as do texto. Claro como água no chamado método
histórico crítico da exegese bíblica (os exegetas, crentes ou ateus, vão em
busca dum livro ‘religioso’ e não entendem a sua dimensão ‘política’
indissociável), mas também única explicação no caso de Aristóteles, como no de
Platão, de que vai ser questão aqui.
2. Com efeito, quando há uma dezena
de anos, ao começar uma leitura das cartas de Paulo de Tarso, decidi
interrompê-la para realizar um desejo antigo, o de ler de seguida os diálogos
de Platão, de que só conhecia bem o Crátilo e o Sofista e alguns passos de outros, nomeadamente da República – e já aí me tinha espantado, ao saber na
introdução de Mª Helena Rocha Pereira à sua tradução na Gulbenkian do que os
especialistas chamavam “a grande digressão”, sem pelos vistos terem dado pelo
pequeno episódio de cochicho que serve de introdução e conclusão dela como
óbvio mecanismo de inserção (ver http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2015/07/mulher-e-homem-casa-e-alma-luce.html) posterior – quando comecei a ler ingenuamente,
seguindo uma cronologia deles que previra e ia tacteando, em busca de
compreender a génese das Formas ideais e da alma imortal, com a questão também
de saber quanto daquilo provinha tal e qual de Sócrates e que coisas eram já do
geómetra Platão, dei por encontrar no Crátilo, no que já presumia ser a primeira referência dos
diálogos às Formas ideais, que se tratava dum sonho que Sócrates tivera. Ora,
pareceu-me logo óbvio que o ‘sonho’ era um sintoma textual de que se tratava
de invenção de Platão. Donde que
fosse fácil em seguida ir detectando outros sintomas que pudessem dar a
perceber aonde Platão assinalava aquilo que conscientemente estava a acrescentar
ao seu mestre: como é que tantos e tão doutos especialistas não davam por algo
que o neófito percebia? o espanto da República crescia, enigmas do que Khun chamou paradigmas.
Mesmo quando rompe em certos pontos, essas rupturas seriam exigências de
‘fidelidade’. Mas ele não deixa de assinalar apesar de tudo essas rupturas,
deslocando Sócrates do seu papel de condutor do diálogo que devolve a Parménides,
a um estrangeiro de Eleia ou a Diótima. Ora, como esse texto tem mais de 40 páginas,
Sócrates e Platão, ensaios de leitura, que se pode encontrar no blogue http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2012/02/socrates-e-platao-ensaios-de-leitura.html,
pareceu-me que poderia ter algum interesse sublinhar essas novidades da leitura.
3. A maior parte dos textos são
diálogos entre Sócrates e um ou dois interlocutores, sem outras circunstâncias
ou muito poucas. O que sublinha o contraste com o enquadramento de alguns – Protágoras,
Górgias, República e Banquete –
com assistência abundante, em casa dum rico anfitrião. Eles são aliás
relativamente contemporâneos uns dos outros. A minha hipótese parte de Chambry,
a propósito do Górgias e da
“violência dos seus ataques contra a retórica”: “Platão acabava de fundar a Academia.
Renunciara desde então à politica activa para se dedicar à filosofia. O Górgias foi o manifesto da nova escola. Tratava-se de
atrair os jovens que a retórica atraía sozinha” (Garnier-Flammarion, p. 160).
Foram provavelmente esses quatro os textos que Platão publicou, os outros terão
sido sobretudo destinados ao uso da Academia. O quadro destes textos diria a
ruptura com a maneira socrática de fazer politica: já não na ágora, mas num
espaço privado, retirado, onde haverá todavia bastante público tomando parte
nos diálogos do mestre. Pois se a Academia deverá fazer concorrência a outros,
como diz Chambry, é porque ela é uma instituição de aprendizagem com fim
politico: ela deve ensinar jovens cidadãos que se tornarão homens políticos.
4. A ponta da fidelidade de Platão ao seu mestre
seria a procurar no que Chambry diz a propósito do Hípias menor: “esta ideia fundamental do dialogo, que a
ciência e a virtude se confundem, Platão guardá-la-á toda a sua vida”
(Garnier-Flammarion, p. 61), o objectivo socrático, “que se votou ao estudo das
virtudes éticas”, dizia Aristóteles, o seu discípulo não o renegou, nem mesmo
quando a Academia o orienta para as questões de geometria e de ontologia. Tudo
se passa com efeito como se os primeiros diálogos de Platão fossem
‘reportagens’ bastante fieis da maneira de fazer de Sócrates, como se, à noite,
tendo voltado a casa, o jovem discípulo estudioso escrevesse um memorando, como
sugere a Apologia, o Criton e o Fédon I. Assim o personagem Euclides no prólogo do Teeteto: “logo que cheguei a casa, pus por escrito as
minhas recordações e redigi em seguida tudo o que me lembrava e, sempre que ia
a Atenas, interrogava Sócrates de novo sobre aquilo de que me não lembrava e
voltando aqui, corrigia as minhas notas, de forma que tenho essa conversa [o
texto do Teeteto] escrita
quase inteiramente” (143a).
5. “Considera com efeito, admirável Crátilo, um
pensamento que me vem frequentemente como um sonho. Devemos dizer sem mais que existe o belo mesmo e
o bom (einai auton kalon kai agathon) assim como cada uma das coisas? Há que o dizer ou não?” (493d). Ponto de
ruptura de Platão com Sócrates, como depois no Ménon, a evocação de dizeres de gente divina funciona à
maneira do ‘como um sonho’ do Crátilo que lhe permitirá a proposta da reminiscência: quando Sócrates evoca
uma experiência deste tipo, sonho ou revelação de ‘origem divina’, é Platão
quem assinala um ponto importante do seu afastamento do mestre.
6. No Banquete, após os outros convivas terem exposto as
diversas concepções correntes sobre o amor, encontramos pela primeira vez
Sócrates na posição de interlocutor diante de outrem que, ela, está na posição
da que conduz o discurso, aquela que sabe, “uma mulher de Mantineia, Diótima,
sábia destas matérias e muitas outras” (201d). Esta inversão das posições é sem dúvida um índice
muito forte da ruptura que Platão aqui opera em relação a Sócrates: a
argumentação irá até à Forma ideal do Belo / Bem, representa pois o culminar do
platonismo, após o Crátilo e o
Ménon. As três redacções da República resumem este percurso: o livro I, sobre a virtude
da justiça, faz parte dos textos iniciais estritamente socráticos, os II-IV,
VIII-IX, da passagem à justiça da cidade, os V-VII, X, da proposto ontológica
relativa à educação da cidade; respectivamente 1º ética, 2º politica e 3º
ontologia.
7. Pode-se resumir assim a caminhada de Platão até
aqui: sobre a dupla base socrática da pedagogia erótica e da crença tradicional
da sobrevivência da alma no Hadés, por um lado ele faz jogar a definição que o
próprio Sócrates inventou para, a partir de múltiplas coisas que mudam, fazer
existir realmente (celestialmente) os definidos enquanto entes inteligíveis,
imutáveis, por outro busca demonstrar a tradição órfica da imortalidade da alma
(e o reforço, recorrendo à geometria, à oposição entre a alma e o corpo, o
inteligível e o visível ou sensível) a partir da reminiscência desses
definidos, contemplados antes do nascimento.
8. O Parménides é o texto da grande viragem seguinte, que se
assinala imediatamente pelo lugar tomado pelo velho filósofo que interroga o
jovem Sócrates e o critica por ter começado a definir muito novo, censura-lhe a
precocidade: “o que é que tu vais fazer em termos de filosofia? Para que lado
te virarás (trepsei), se as
coisas não são conhecíveis? – É algo que não vejo nada, pelo menos de momento.
– É que tu começaste cedo de mais, Sócrates, antes de te teres exercido, a definir
(horizesthai) o belo, o justo,
o bom e cada uma das outras formas. Foi uma observação que fiz o outro dia ouvindo-te
a discutir aqui mesmo com o nosso amigo Aristóteles” (135c). A citação inopinada de Aristóteles,
cujos argumentos críticos das Formas ideais tinham sido retomados por Parménides,
assinala que os textos futuros, que iniciam uma nova problemática, que foi a chegada
de Aristóteles à Academia que incitou a essa viragem para a questão do
conhecimento das coisas, que
dominará o Teeteto, e cujo
fracasso levará à ruptura do Sofista, o parricídio de Parménides. Com excepção do Filebo, Sócrates será após o Teeteto excluído do seu papel tradicional de condutor do inquérito, na sequência
textual em questão, a da critica da separação das Formas ideais. Ora, a
primeira vez em que Sócrates foi interrogado, diante de Diótima, foi ela quem
pela primeira vez falou dum “ser eterno com uma forma una” (monoeides aei on), ela que foi assim, se dizer se pode, o ‘pivot’
da viragem para o platonismo. Este situou-se entre Diótima e Parménides, nas
duas únicas vezes em que Sócrates virou discípulo.
9. Em que é que consiste então esta viragem?
Trata-se dum deslocamento da questão, da problemática: pode haver uma ciência,
um saber organizado sobre as coisas deste mundo? Traça-se um novo estaleiro do
saber. O interesse do Filebo e
do Timeu é apresentarem uma espécie de hipótese de
trabalho que Aristóteles desenvolverá, retomando a tradição das filosofias da phusis – e renovando-a, pela sua maneira de jogar com a
definição e com as lógicas argumentativas que ela tornou possíveis –, hipótese
de trabalho que dará origem à ousia e à Physica aristotélica,
às suas diversas ciências. O motivo de género (genos: nascimento, família, linhagem, raça, geração) como categoria de pensamento
(geral, as espécies do género) sublinha esta coisa tão bonita, do pensamento só ter vindo a ser possível a partir do que é a geração: tratava-se de pensar a multiplicidade das
coisas do mundo, submetidas ao nascimento e à morte, ao tempo e ao movimento, à fecundidade em suma.
10. Terá havido assim três épocas dos escritos de Platão: o período
socrático, o platonismo e o que se poderá designar como pós-platonismo, uma
espécie de pré-aristotelismo. Foi o segundo que vingou, é ele que é sempre
designado com o nome de Platão. O lugar que ele deu a Sócrates nos seus textos,
à maneira da epigrafia antiga, é um testemunho da fidelidade ao Mestre que lhe
ensinou a pensar, a pensar a virtude e a definir, fidelidade que se alargou e
acabou por se romper posteriormente (exit Sócrates), mas veio a estar por sua
vez na origem dum outro grande discípulo. Sem estes três grandes Gregos não
haveria Europa.
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