sexta-feira, 3 de julho de 2015

O ‘retorno às coisas’ tem uma história



1. A palavra chave da fenomenologia de Husserl, o “retorno às coisas”, que Heidegger não abandonou (ainda em Questions IV, pp. 173, 183), indica um movimento da História da Filosofia que se repete então pela terceira ou quarta vez, um movimento sem o qual teríamos sido sempre platónicos, pois foi nele que consistiu a ruptura de Aristóteles, critico da separação que o mestre instituíra entre as Formas ideais (Eidê) e as coisas de que elas davam o conhecimento: juntar essência com a substância na mesma ousia, esta categoria primária e aquela aparecendo como secundária mais adiante na tabela das Categorias. Mas ao fazê-lo guardou a definição que dera a Platão a separação radical (entre o Céu e a Terra), o motivo do acidente em sua singularidade distinguindo cada ente da respectiva ousia, deixando-o fora da fronteira que define esta. A essência veio à substância, foi a primeira vez.
2. Uma segunda vez, agora sim, claramente retorno, repetição dum gesto anterior, foi para revolucionar o pensamento que dos gregos se recebera, vindo aliás através das fontes árabes comentadoras de Aristóteles (mas delas eu não sei nada, tendo embora lido um livro que trata disso, ver o meu e.book Da Natureza à Técnica): foi Tomás de Aquino na esteira de Alberto Magno quem repetiu Aristóteles critico de Platão, tendo na mira Agostinho de Hipona cujo neo-platonismo dominava o pensamento eclesiástico havia mais de oito séculos. [A dificuldade aqui é saber como é que o aristotelismo medieval privilegia a concepção metafísica da ousia (o ente enquanto ente) e deixa em segundo plano a física (o ente enquanto capaz de movimento); não sei que chegue para dizer a permanência do motivo de ‘acidente’ enquanto relação ao contexto, é possível que ‘acidente’ também se tenha tornado um motivo metafísico, ao pensar por exemplo como ele joga na teologia tomista da eucaristia]. Ora bem, o ‘nominalismo’ de Guilherme de Occam, jogado contra o ‘realismo’ dos medievais aristotélicos, tem igualmente um efeito de retorno às coisas que se acrescenta ao do Aquino, mas agora com incidência sobre o próprio Aristóteles, já que propõe localizar a ‘essência’ das coisas nos nomes que as designam e privilegiar a singularidade delas nesta máxima surpreendente “não há senão singulares”, donde sem dúvida virão os empirismos clássicos. Propus no meu Da Natureza à Técnica que o que joga nele é a contaminação da filosofia pelas narrativas, bíblicas sobretudo: mas sendo ele um lógico, qual é o papel da definição em relação aos singulares? Nos empiristas posteriores, serão as “ideias” e a análise da sua génese, desde as sensações que sugerem ideias simples às mais complexas e abstractas (definições), que abrirão caminho a partir da experiência dos singulares, Locke e depois Condillac tendo compreendido o papel da linguagem na génese dessas ideias (meu Linguagem e Filosofia, INCM).
3. Mas Kant ignorará soberanamente este papel, ao fazer a nova repetição do retorno às coisas, que se refere a Descartes e Leibniz, que ele procura ultrapassar ao ter em conta as análises empiristas de Hume. Kant tem todavia outra fonte primacial, o laboratório de Newton, que mede fenómenos: como se as suas formas transcendentais da sensibilidade fossem réplicas subjectivas do metro e do relógio. O laboratório é filho da definição, também ele deixa de fora dos seus muros o contexto dos fenómenos cujo movimento analisa e acaba por só saber das relações matemáticas entre as medidas deles, e não das suas ‘substâncias’, os númenos singulares. Estes ficam fora do laboratório, nem a ciência nem a filosofia os conhece, porque não os sabe definir sem restos, são deixados à literatura, às narrativas.
4. Saltando sobre Hegel que nunca trabalhei, quando encontramos Husserl na quarta ou quinta vez (pelo menos) deste deslocamento do pensamento filosófico (o científico além da física e química seria outro continente a desbravar, que não aqui), este quer voltar aos Gregos e ultrapassar a oposição ousia / acidentes, partindo da percepção de coisas singulares nelas mesmas para chegar às suas essências eidéticas, ligando a consciência que vê à coisa que é vista na intencionalidade duma intuição sensível que evita a separação entre ambas, reduzindo todavia a empiricidade ou mundaneidade da coisa. O Heidegger de Ser e Tempo retorquir-lhe-á, lição da tese do João Paisana, que essa coisa percepcionada antes da intuição categorial (do juízo, com linguagem e cópula) é o ‘objecto’ da definição que foi já separado do seu contexto, como aliás a redução esclareceu.
5. E que sucede com ele, Heidegger? Dir-se-ia à primeira vista que ele abandona a definição, vindo nos anos 30 a aproximar-se da poesia, mas é claro que se tratou de modificar a maneira de abordar a filosofia, pegando nela por uma leitura filosófica da sua história, pondo em questão o privilégio da ‘substância’ aonde Occam pusera o da ‘essência’. Ora, como Aristóteles está entre as suas leituras preferidas, pode-se dizer que ele reencontra a Physica que os Medievais subestimaram para indagar do que ficou fora da definição, o ‘poder’ (archê) da phusis, o que o crescimento e, além de Aristóteles e com Heraclito, retira o que haveria de ‘substancial’ na doação. O que implicitamente faz é saltar da Física europeia para a Physica grega: a percepção husserliana era de inertes, poderia ele ter dito, incapaz de dar conta do exemplo de um cavalo ou de uma mosca. Com efeito, a Biologia quando se tornar ‘newtoniana’, isto é, molecular, bioquímica, tornar-se á incapaz de ‘definir laboratorialmente’ um insecto ou um vertebrado. Dessas coisas que se movem, crescem e morrem, buscam comer e evitar serem comidas, continua a saber-se apenas por descrição fenomenológica empírica, mais ou menos aproximada. Se é certo que Heidegger não falou assim, o que faz desde Ser e Tempo é reintroduzir este na sua concepção dos humanos como Dasein, o tempo e o movimento, e isto de maneira completamente alheia ao motivo do ‘acidente’. No que aliás prolonga o gesto decisivo de Husserl, o de dessubstancializar a ‘consciência’ (a res cogitans cartesiana) na intencionalidade. Mas ao buscar que esta ‘constituísse’ os seus objectos (inertes, é claro), não era uma espécie de ‘poder substancial’ que ele assim resguardava? A aproximação do ‘mundo’ é a saída heideggeriana, ainda que não vá até ao cabo dessa aproximação: o ser no mundo poderá vir a esclarecer cabalmente os estudos neurológicos contemporâneos quando se perceber que o papel dos neurónios é justamente o de serem impressos pelo ‘mundo’ tribal que lhes impõe a aprendizagem como o que permite, não à consciência constituir os objectos, mas ao humano ser capaz de os usar à maneira da tribo. É o mundo que institui o Dasein humano. É o mais forte retorno às coisas que creio poder ser pensado e só Derrida o conseguiu, embora sem o formular assim.
6. A sua gramatologia propõe duas reviravoltas duma penada nesta questão. Por um lado, substitui o ‘ente’ que dos gregos substancialmente nos vem pela sua espacia-temporalização estruturalmente impressa pelo Outro [pela tribo], abre assim a sua ‘anatomia’ fenomenológica, se dizer se pode, e por outro introduz como componente estrutural (espacia-temporalizada) dessa anatomia a aprendizagem através do exemplo da linguagem: a escritura como origem da linguagem (impressa pela tribo). Mas em rigor, mais difícil sem dúvida, poderia ser através da aprendizagem de outros usos tribais. Esta tríade gramatológica – a) espácio-temporalização, b) relação estrutural ao Outro, c) escritura como origem da linguagem (De la grammatologie, p. 69) – que se poderia eventualmente comparar com a tríade existenciária de Ser e Tempo (afeição, compreensão, interpretação discursiva), dá conta de forma extraordinária do ser-no-mundo heideggeriano. a) permite entender como se faz o processo da constituição biológica (crescimento, alimentação) e o da instituição tribal (aprendizagem dos usos); b) dá conta de como é o mundo da tribo que tem a iniciativa, que dá (ovo, alimento, aprendizagem) e se retira para deixar ser o que está dando; c) resolve o problema que sempre impediu que o retorno às coisas fosse conseguido sem cair no empirismo relativista.
7. O que Derrida teve que ter em conta como constitutivo da filosofia ocidental foi o papel da definição e da diferença que ela instituiu em relação ao contexto, singular e empírico, donde retirou o definido. Esta singularidade empírica das cenas do mundo que habitamos torna todas as coisas exteriores umas às outras (foi a intuição do nominalismo acima citada, não há senão singulares); o que a definição fez foi criar uma fronteira gnosiológica – a da essencialidade, que virará na Europa conceptualidade – permitindo argumentar entre as essências de que o contexto singular, o dos acidentes, foi reduzido pelo gesto de definir. Ora bem, Derrida não pôde limitar-se a ‘denunciar’ a definição ou a recuar aos pensadores de antes dela, teve que a ter em conta como tendo efeitos de transcendentalidade na maneira como pensamos, lemos e escrevemos, como avisadamente aliás já fizera a redução de Husserl, a quem ele foi buscar a diferença entre o aparecer estrutural dum fenómeno e o próprio (substancial) fenómeno aparecendo, transcendental um, e empírico, mundano, o outro; foi essa diferença que ele aplicou à diferença linguística [antes da percepção!] entre os sons empíricos, diferença essa que Saussure chamara significante, para a distinguir dos próprios sons, que não pertencem à língua, apenas à fala. Esta dicotomia linguística fica assim enfim esclarecida, num debate estruturalista que ficara num impasse (Derrida não se preocupou com ele) como a minha tese de doutoramento esclareceu: a língua, tribal e sem existência substancial, é o que se transmite das falas umas às outras, bem sonoras estas, gritadas até por vezes, é o que passa do contexto dos outros da criança e vai gerar fala substancial nela, a sua voz e discurso, enquanto que a fala dos outros se retira em sua substancialidade, para que só o transcendental ‘passe’, se inscreva. Como ter em conta o ‘retiro’ destas falas ensinadoras? Diz Derrida que após ter utilizado a diferença transcendental / empírico, há que apagá-la. Como? Tendo justamente em conta que, sendo privilegiado o significante sem sons como diferença entre sons, em termos filosóficos tradicionais, um inteligível como diferença entre sensíveis, que portanto não ‘subsiste’ sem eles, não é inteligível, não se lhes opõe como a transcendentalidade metafísica. Na linguagem que usará mais tarde, poderia ter dito que o significante é um quase transcendental. Ao fazer assim, bom discípulo de Heidegger, Derrida fez uma leitura crítica exigente de toda a tradição do pensamento ocidental mas acrescentando no mesmo gesto que não podemos pensar sem ela: foi a isso que a sua gramatologia chamou desconstrução.
8. Qualquer ciência encontra o seu rigor na maneira como o seu laboratório souber jogar com esta quase transcendentalidade. Nas ciências Física e Química, Bioquímica incluída, ela reside na maneira como se medem dimensões dos fenómenos substanciais e se faz com essas medidas equações de tipo matemático, donde as coisas mesmas estão ausentes, é claro (por isso a poluição é sempre possível). Saussure também o fez, como se aludiu, e as regras das línguas – incluindo as palavras – são o que os vivos vão ensinando e assim ultrapassam a morte das gerações, como quase transcendentais, quase imortais. Também o protoplasma das células gâmetas com o seu ADN nuclear, entre gerarem um novo ser e virem a formar-se nele mais tarde novos gâmetas para nova geração se manifestam como quase transcendentais, além da morte. ‘Quase’, em qualquer destes casos, porque nunca garantido que não haja extinção, da língua e da tribo como das espécies, isto é, estes quase transcendentais são históricos, relativos, não são transcendentes.
9. Não foi sem relação com esta questão que o discípulo do inventor da definição que projectou no céu as Formas ideais definidas também atribuiu a imortalidade à alma justa que as contempla: a sua escrita transcendeu as escolas, de mestres em discípulos, até nós, que lemos Platão quase como se ele fosse imortal – a imortalidade é o idealismo – e temos que saber retornar à Terra que nos deu como ‘coisas’ vivas, isto é mortais e fecundas além da morte, como as plantas e as fêmeas e as mulheres, Platão e Aristóteles, Agostinho, Tomás e Guilherme, Renato e Emanuel, Edmundo, Martinho e Tiago.

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