1. Raramente nos é dado um
espectáculo tão nítido duma fractura das atitudes como a que houve face a esta
crise, que não é simplesmente entre direita e esquerda nem de antagonismos
étnicos anti-gregos e anti-alemães, mas que creio ser ilustrável por duas faces
da ciência económico-financeira, tal como elas se manifestaram ao longo destes
seis meses, que foram empolgantes nomeadamente por se tratar dum pais que,
melhor ou pior, todos sabemos estar na origem da nossa civilização, como
atestam as numerosas palavras gregas das nossas línguas modernas, música e
mecânica, por exemplo, não apenas eruditas. O que me importa aqui é a economia
enquanto ciência.
Pensar e conhecer implicam redução do contexto
2. A palavra ‘cão’ aplica-se a um
pastor alemão e a um pelo de arame, a palavra ‘casa’ a uma mansão vitoriana e a
uma habitação pré-construída de madeira. Estas palavras só podem funcionar por reduzirem as singularidades de cada coisa que nomeiam e
designarem-nas por uma generalidade. A redução é uma operação essencial do pensamento ocidental,
tal como foi inventada por Sócrates a definição, utilizada por Platão e abundantemente por
Aristóteles em filosofia e lógica e nas suas ciências. Definir é reduzir o
contexto singular da coisa definida, onde ela teve origem e sofre e opera
efeitos diversos, para que, comparada com outras da mesma espécie, a respectiva
essência possa ser argumentada
intemporalmente, seja qual for o contexto.
3. O laboratório científico é filho da definição em suas teorias, a que
acrescenta o labor operatório no conhecimento – mede movimentos; Galileu conta
assim com o tempo (o que a geometria não fazia) e Newton com as forças da
mecânica (que não tinha teoria). Mas só funciona reduzindo os contextos dos
fenómenos que mede, donde que, em rigor, o novo conhecimento é válido dentro
do laboratório, fora dele pode
sempre haver, em contextos que não foram tidos em conta, os chamados “efeitos
secundários” em farmácia e a poluição em geral. Limites duma ciência cuja
fecundidade é óbvia.
O laboratório da economia: moeda e estatísticas
4. Vamos então à economia enquanto ciência. Antes
de indagarmos do seu laboratório, como é que ela opera a redução que a torna
científica, sobre quê? É a moeda que reduz tudo o que se joga no mercado a
custos e preços, com os quais se fazem as contas aritméticas que dizem lucros e
prejuízos. Das mercadorias guardam-se as quantidades que multiplicam preços
unitários, todos os outros intervenientes, mormente salários, são reduzidos a
números de euros ou dólares, para que as contas se façam: tal como em física (mas aí com dimensões variadas e técnicas de medida que permitem tecnologias), essa redução que permite fazer contas é a grande
vantagem dos números, a força da economia enquanto ciência, as quantidades em
vez das qualidades reduzidas (estas exigem palavras e frases para serem tidas
em conta, é muito mais complicado).
5. Quanto ao laboratório, ele é constituído
essencialmente pelas estatísticas aonde se vão buscar os números para fazer as
contas, as teorias e as discussões consistindo em guias de escolha dos números
que importam para o problema de que o economista se ocupa: é aonde a incerteza é irredutível entre teorias (a favor ou contra o capital, posições políticas escondidas). O que é que fica de
fora desse laboratório? Toda a sociedade além do sector a que os números se
referem, sendo que mesmo esse sector não é apenas mercado e que o que não o é mas tem
efeitos nele e dele recebe efeitos não é tido em conta, não o pode ser,
qualquer que seja a opinião ou atitude politica do investigador (que jogam nas
escolhas dos números, claro). Um exemplo: se tal
política económica pode prever os limites do aumento do desemprego que será
consequência da sua aplicação, não pode todavia saber, por ela mesma, se haverá
ou não em consequência uma explosão social, ou algo semelhante, que possa pôr
em causa o aspecto económico que essa política visava regular. O economista
japonês T. Sakaiya (Japão. As duas faces do gigante) mostrava como as “leis económicas"
ocidentais não produziam no Japão os mesmos efeitos que no Ocidente.
Economia com politica
6. Não há actualmente nenhuma
ciência global das sociedades e o grande problema neste aspecto é que a
economia, que é apenas a ciência dos mercados, se coloca como a ciência global,
a única que há. Ora, o que mostrou esta crise de forma flagrante, não foi tanto
os engravatados contra os sem gravata, mas por um lado aqueles para quem a economia
é a ciência global de que não conseguem ver o que lhe sobra e por outro, em
face, aqueles para quem há mundos sociais e políticos além das finanças -
economia. A crise é financeira, por certo, os números são essenciais mas não
podem ser só eles a decidirem do contexto; já basta que não haja instância
política que controle as finanças desreguladas, nenhum Estado da União Europeia
nem nenhum órgão desta. Schaüble é um homem antipático, o seu handicap deve torná-lo mais feroz, a mostrar do que é capaz, mas não é ele o
problema: o problema é o paradigma económico que o possui e aos outros dos 18 a
1 do Eurogrupo (F. do Amaral), é o mal chamado ‘pensamento único’, porque se é único não é pensamento, é
clausura laboratorial. Para os 18, a Grécia estava reduzida, não ouviram o
‘não!’ do referendo: é o que melhor exibe a fraqueza da economia. Seja Keynes ou outra coisa
adequada a estes tempos globais, economia politica deverá ser economia que se articule
com a dimensão politica, tarefa constante dos Estados e das autarquias. Tarefa
de ciência social, incluindo a economia.
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