Porquê a questão feminista se pôs no século passado?
Género, sexo e ontoteologia
O sexo, aquém do género
Identidade? Essência?
A desconstrução histórica do patriarcado
1. Deixem-me dizer com alguma
imodéstia que eu ‘descobri’ o género alguns anos antes de este conceito
antropológico começar a ser divulgado, num texto do Jornal de Letras, “Quando masculino / feminino não coincide com
homem / mulher” (27 dezembro 1983). Convivendo quotidianamente com uma
intelectual reputada das questões feministas, acompanhei um tanto as questões
com alguns textos, dos quais um ou outro neste blogue. Parece-me agora que este
par não conseguiu desenvencilhar-se da oposição metafísica alma, sujeito /
corpo, sociedade, cultura / biologia e que, como de costume desde Platão pelo
menos, o corpo e a biologia é que são espezinhados, apagados, parte fraca.
Donde a questão, para a qual haveria que trabalhar mais do que a idade me
concede mas o género literário blogue não exige, de saber como e com que
vantagens de pensamento e de conhecimento proceder à sua desconstrução? Haverá
que saber se, como e em que níveis de análise a categoria universal homens /
mulheres ou mulheres / homens abriga dois itens indissociáveis e inconciliáveis?
O ponto de interrogação é de rigor, que nestas questões gerais há o enigma de
cada humano singular, como se sabe pela paixão que a questão suscita, sobretudo
entre as mulheres, as protagonistas revoltadas do que está em jogo.
Porquê a questão feminista se pôs no século passado?
2. É por onde temos de começar. Terá
sempre havido mulheres de tempos anteriores para se insurgirem com a
desigualdade das posições entre os dois sexos, mas não houve nunca feminismo,
no sentido de movimento social de questionamento e transformação dessas posições
desiguais. Este teve duas fases, na viragem do século XIX ao XX com reclamação
por certas elites cultas e sindicais do direito de todas as mulheres à escola e
ao voto politico, nos anos 60 e 70 o movimento avassalador correspondente à
grande entrada em massa das raparigas nas escolas e das mulheres nos empregos
fora de casa. Foi a consequência sobre a organização social das famílias do que
Karl Polaniy chamou a “grande transformação”, a saber das sociedades em que a
agricultura e a criação de gado são a base da riqueza e esta predomina na aristocracia
de vocação guerreira, senhores de largas terras, transformadas em sociedades
modernas em que predominam classes burguesas, industriais e comerciais, as
cidades pois e os novos saberes.
3. As sociedades humanas, desde as
primitivas, sempre estiveram sujeitas à lei da guerra, que a partir da invenção
da agricultura e dos rebanhos se tornou guerra de conquista, formando reinos de
extensão variável, por vezes impérios. As unidades sociais eram as casas que, por um lado, reproduziam o parentesco e, por
outro, tinham actividade económica, com escravos ou servos nas casas ricas.
Assim como a agricultura e o gado dependiam da fecundidade das plantas e
fêmeas, também os filhos da casa da fecundidade da mãe, sabendo-se que havia
razoável mortandade infantil e que os filhos, sobretudo nas casas não ricas,
eram mão de obra desejada. A organização social variou bastante na geografia e
na história, mas ela como que distribuiu os papeis sociais em termos da dupla
actividade doméstica: ao homem, mais forte fisicamente, as actividades fora de
casa, políticas e guerreiras, incluindo a defesa da própria casa e nesta as
actividades que pediam músculo, e à mulher a maternidade todo o tempo em que
fosse fértil. Os usos que aprendiam e @s tornavam apt@s ás respectivas funções
eram desde logo bastante diferenciados: elas e eles eram instituídos por esses usos aprendidos, ainda que houvesse
quem não se revisse nos destinos que lhes correspondiam, nomeadamente quem
preferiu dar-se às letras ou a espiritualidades: aquilo a que se chama
‘vocação’ implicava justamente uma recusa (parcial) dos usos do respectivo
sexo, mas esses destinos diferiam ainda segundo se fosse homem ou mulher.
4. As sociedades modernas definem-se
por terem separado as duas actividades das casas e de terem acabado com estas:
por um lado instituições de trabalho, como emprego de algumas horas diárias,
por outro famílias em apartamentos, como reprodução das gentes. Essa separação
resultou da invenção das máquinas, cujo aperfeiçoamento desfez em grande parte
o predomínio da força muscular física nas tarefas de trabalho e tornaram-nas
por isso mesmo acessíveis às mulheres, juntamente com a atenuação das guerras e
o ganho progressivo de segurança nas ruas. A prova da igualdade de princípio
entre homens e mulheres no que aos usos sociais em geral diz respeito deram-na
as mulheres invadindo as escolas e os empregos, mas esta prova só foi possível
pela “grande transformação”, como antes se formara o proletariado industrial a
partir do êxodo rural, no outro grande movimento social comparável ao
feminismo, o socialismo, que teve a ver sobretudo com homens mas não
exclusivamente. Digamos que estes movimentos, que o foram com o que isso implicou
de aventuras e lutas pessoais de muit@s, resultaram de possibilidades abertas pela transformação social, este motivo
heideggeriano implicando o de ser no mundo, tanto relevando de cada humano (ou cada movimento social) como do mundo
em que ele é, que o instituiu com seus usos aprendidos e dos quais depois
buscou tirar proveito. Não se trata de diminuir ninguém, há sempre quem force
muito mais as suas possibilidades e abras novas inéditas e quem se acomode mais
das possibilidades encontradas.
Género, sexo e ontoteologia
5. É assim em termos de seres no
mundo que há que pôr a questão e
não em termos de homens e mulheres, mulheres e homens. Umas como os outros são,
como dizem os sociólogos, ‘construídos socialmente’; acrescente-se que essa
construção social se efectua pela aprendizagem dos usos que se vão alterando
com as modificações sociais, importância enorme dos electrodomésticos e dos
automóveis, por exemplo, como da televisão e do cinema. O ano 1968, desde o
Japão à Califórnia, passando por Praga e por Paris, foi o grande manifesto da
ruptura entre duas gerações, de pais e de filh@s, com autonomias novas dest@s
devidas aos novos usos que seus pais já conheceram tarde de mais para tirarem
benefícios equivalentes (como sucede agora com os computadores e uma nova
juventude). Fazei amor e não a guerra, no tempo de guerra do Vietnam.
6. Ter em consideração os seres no
mundo, instituídos enquanto humanos sociais pelos paradigmas dos usos
aprendidos, implica que não se possa olhar para o passado como se os homens e
as mulheres de então fossem como nós somos hoje: basta ver que ainda há muito
‘passado nosso’ em homens e mulheres de sociedades actuais não modernas que
reagem contra os usos ocidentais que lhes aparecem nas televisões como coisas
desavergonhadas, raiz sem dúvida de muito das motivações de terroristas
islâmicos.
7. A segunda fase do feminismo foi
inaugurada por posições a respeito dos seus corpos enquanto de possível
maternidade, a respeito de contracepção e de aborto legal, fase essa em que, como
já sucedia no Segundo sexo de
Simone de Beauvoir, a maternidade é, por assim dizer, deixada atrás do combate,
não como se fosse uma vergonha mas sim um empecilho de escolhas livres, como as
dos homens: ser mãe ocupa uns bons vinte anos de vida de cuidado maternal,
tem-se visto que os homens facilmente se descartam da paternidade, à maneira de
quem no máximo só se sente responsável por umas horas de sexo. Ou seja, se este
ganhou uma importância enorme com a libertação desses anos férteis, foi como
que engolido pela dimensão que estava realmente em grande reelaboração, o género,
a reelaboração dos usos urbanos das mulheres, estudos, emprego, carreira,
quantidade de profissões dantes estritamente masculinas que se foram abrindo às
mulheres, ufanas de serem as primeiras que... O feminismo é uma luta além do
que era possível, é accionado por desejos, é oposto aos homens, busca ser como
eles, ainda que haja ao menos uma corrente ilustrada por Luce Irigaray que
procura afirmar, juntamente com a emancipação, também a diferença feminina.
Ora, esta dimensão de busca de libertação e de afirmação implica que a
teorização se faça no registo do ‘sujeito’ filosófico, do ‘eu’ que pensa e
quer, ‘eu’ que não é feminino, dirá Françoise Collin, ao qual registo não convém
nem a categoria do género nem a do sexo nem a do social. E porque se trata de
mudança do género e do social, o sexo, de que o género veio dizer a dimensão
social, fica constrangido à do biológico, repondo o sujeito / corpo da oposição
metafísica. A mulher quer-se ‘sujeito’ como o homem se quis também. Isso faz
parte do que Heidegger chamou ontoteologia, Deus / criatura, depois sujeito /
corpo, mundo, sociedade. Não se sai facilmente deste paradigma duplamente
milenar.
O sexo, aquém do género
8. No regime patriarcal, o género era constituído
predominantemente pela dupla pai / mãe, o pai sendo também o patrão da zona
económica da casa. E o sexo? Claro que havia fornicações e adultérios, mas
estes eram graves sobretudo quando eram da mulher, porque arriscavam o parentesco,
o ‘sangue’ da família, a ‘honra’ da casa. Mas na ordem social, o sexo existia
em função da reprodução sexual, para se ter filhos, onde justamente mulher e
homem fazem um dispositivo com duas posições (Luce Irigaray), onde não vai uma
sem o outro. Ou seja, como nas outras espécies animais, o que conta para a
evolução que inventou a dupla anatomia, é o macho e a fêmea. A diferença para a
maior parte das espécies animais próximas das nossas é a formação do género (a
casa, nas sociedades antigas) como estrutura de herança dos usos e dos bens, de
aprendizagem e de trabalho, o casamento por causa dos filhos e do longo tempo
da sua criação. Muitos filhos, disse-se acima, porque eram facilmente
perecíveis, herdeiros e mão de obra. As sociedades modernas acabaram com as
famílias numerosas, inventaram as pílulas e outros contraceptivos para não
terem que renunciar ao sexo com a estrita limitação dos filhos: institucionalizaram
o erotismo, o prazer sexual sem reprodução. Limitadas, maternidade e paternidade não foram todavia abolidas, as
famílias continuam a justificar-se por elas. Hoje em dia, nos romances, filmes
e conversas, quando se fala de sexualidade é de erotismo que em geral se
entende, não de reprodução, a qual implica o dispositivo de duas posições. A
legitimação das homossexualidades, gays e lésbicas, leva esta separação entre
reprodução e erotismo ao limite, quando se torna necessária uma engenharia sexológica
para terem filhos, se desejarem constituir família. Antigamente género e sexo
praticamente coincidiam. Agora que a diferença apareceu, o género ganhou
sexualidade em dicotomia, homens por um lado, mulheres por outro, com aliás sucede nas alternativas de orientação
sexual que não dispensam o dispositivo com duas posições, mas em que elas são estritamente
eróticas (além, claro, do amor e companheirismo, como nos heterossexuais). A
questão a pôr é a seguinte: como é que o erotismo, aparentemente individualizado,
se refere à dualidade? de género ou de sexo? Ser homem é um ser no mundo sem
mulher, ser mulher sem homem? Será preciso recorrer à anatomia para ver um
pouco mais claro. Noutro texto[1] há dados de tipo científico com algum detalhe,
para onde reenvio o leitor interessado; aqui limitar-me-ei a alusões, já que o
que me move agora, quase 20 anos depois de escrever esse texto, é uma revisão
global fenomenológica da questão.
9. Toda a dificuldade dela tem a ver com o facto
da diferença ser antes de mais a de macho / fêmea, como em todas as outras
espécies animais, assim como ter que comer e evacuar todos os dias, que
respirar e dormir, e a nossa tradição em nós pensa negativamente esta nossa
dimensão ‘animal’, um corpo que ‘temos’ mais do que ‘somos’. Aliás, a própria
linguagem foi subestimada na tradição por causa da sua dupla dimensão fisiológica
(falar / ouvir, cerebral): privilégio europeu do pensamento e da razão. Mas no
seio desta dicotomia ancestral entre o sujeito (que sabe de si, consciente,
pensa, sente) e o corpo, a dificuldade é também a da maneira como ela governa
as teorias biológicas, à base de análises laboratoriais bioquímicas, teorias
que quando querem compreender o todo humano só dispõem de noções eivadas da
dicotomia ontoteológica (sensações, emoções, percepções, e por aí fora), dificuldade
recíproca para o fenomenólogo que lê os livros de biologia. Acontece que os
homens têm mamilos sem função fisiológica aparente, índice de que há um momento em que ser feminino
faz parte da possibilidade do embrião, de que os cromossomas XY e XX não regem
inteiramente o macho e a fêmea. O biólogo J.-Didier Vincent diz como as
hormonas sexuais, as esteroides, têm uma grande importância na estruturação da
rede neuronal cerebral e depois no seu funcionamento, tendo por outro lado
observado que o jogo delas, quer as ditas femininas (estrogénio e progesterona)
quer as masculinas (testosteronas) – jogo por predomínio, não por exclusão –, é
susceptível de transformação duma na outra (têm estruturas bioquímicas muito
próximas). Pode-se dizer que se trata de oscilações – numa espécie de
continuidade entre dois extremos mais tipificados como macho e fêmea –, tanto
no que diz respeito aos humanos singulares, como às oscilações em cada um de
nós.
10. Ora, o papel das hormonas em geral foi dito no
início do século XX por Starling serem “um instrumento regulador do organismo e
de comunicação entre órgãos” (Sinding, p. 52[2]). Onde há regulação, não há determinismo, as
regras bioquímicas das anatomias implicam o jogo aleatório delas, na cena da
selva em que a evolução se fez ao longo de milhões de anos, implicam que haja
jogo aleatório no seu funcionamento em nós. Ora, uma das coisas que é curiosa,
bizarra à primeira vista, é este papel das hormonas sexuais na estruturação do
cerebral, elas que julgaríamos apenas dedicadas à reprodução sexual
propriamente dita. Com efeito, esta foi inventada nos alvores da evolução dos
organismos como tendo uma economia de desperdício inacreditável, já que
apostando no acaso do encontro entre células de macho e fêmea e devendo para
isso fabricar muito mais moléculas do que as necessárias se o processo fosse
apenas ‘anatómico’ num só indivíduo: mais sementes, espermatozóides, incitações
ao sexo. Este excesso[3] parece ter sido compensado pelo desvio para um
papel individual da força ‘excitadora’ (hormaô, em grego, é excitar, incitar), segundo uma lógica
de suplementaridade (Derrida)
ou de sublimação (Freud),
deslocada para a luta na cena ecológica, para o desenvolvimento dos humanos
como seres no mundo da sua
tribo. Pelo menos isso será visível nas aves e nos mamíferos que, além do
chamado cérebro dos peixes ou límbico (paleo córtex) que joga na regulação
hormonal, desenvolveram um neo córtex suplementar, encarregado mais
especializadamente, digamos assim, das aprendizagens dos usos e das estratégias
relativas à cena ecológica, de tão difícil sobrevivência. Se for assim, isso
significa que as aprendizagens dos humanos se fazem segundo o género, os
meninos nascidos com pilinha orientados para o género masculino e as meninas
com vagina para o feminino. Ora são estes usos que se modificaram fortemente
nestes tempos de feminismo, justificando algo de extraordinário, a confirmação
passados vinte e quatro séculos do argumento feminista que Platão desenvolveu
na República[4] para legitimar a sua utopia da abolição das casas
(do património e do matrimónio, o género predominante no seu tempo e até à
abolição das casas há um ou dois séculos): as mulheres são iguais aos homens
excepto no que diz respeito à procriação e à força física e podem aceder às mesmas
tarefas que eles, desde que sejam educadas para isso. Hoje, em escolas mistas,
a educação é a mesma praticamente e os constrangimentos do género patriarcal
foram grandemente abolidos, o género multiplicou-se abundantemente com o que os
conservadores chamam ‘a crise da família’. Generosidade do género, as famílias
encontram várias formas, hetero e homossexuais, celibatários e comunitários,
perdendo por certo estabilidade por quererem melhorar as relações, com
inseguranças acrescidas, quer do ponto de vista dos orçamentos (as crises
económicas devastadoras...), quer do crescimento das crianças.
Identidade? Essência?
11. Nunca entendi bem as preocupações que parece
haver em certas disciplinas sociais e psicológicas em torno do que se chama
‘identidade’. A palavra é feia, idem é o mesmo, o que se repete, a modernidade fez-se em nome da novidade. Não
sei até que ponto as querelas em torno do género têm a ver com essa questão: um
gay, uma lésbica, precisam duma identidade enquanto tais? Casados ou não, com
profissão reconhecida, por exemplo, não é suficiente, como variante actual de
género? Que a sexualidade seja oscilante em sua hormonalidade, o que é que isso
obsta a reconhecer que há homens e mulheres, diferença de sexos e diferença de
géneros? O género dum gay é diferente do dum heterossexual, ambos do dum bissexual?
E dum solteirão, dum viúvo? Todos somos singulares na nossa maneira e no nosso
percurso. Buscar identidades, além da que releva desse percurso (família,
profissão, nacionalidade, sei lá), é procurar ‘essências’? Mas estas na
tradição filosófica seguiam como fio de pesquisa as palavras que se procurava
definir, de maneira a poder argumentar-se logicamente, deixando cair os
‘acidentes’ de cada singular. Não será justamente esta ontoteologia da
definição, que isola os ‘entes’, homem e mulher, que subtende as querelas em
torno do género, como se se pudesse definir um e outra sem o respectivo par? Ou
há uma ‘definição universal’? a do par mulher / homem, sexo e género, com todas
as suas oscilações que relevam do aleatório dos percursos, de que fazem partes
as variadas orientações sexuais, profissionais e muitas outras. Nós continuamos
a ter as palavras de que precisamos para falarmos de nós, os romances podem
inventar outras para aproximar melhor certos percursos e dramas. Mas o que continua
a ser a norma é o par macho / fêmea que vem desde os invertebrados e os peixes
e répteis (a literatura sobre o género ignora quase totalmente esta nossa
‘animalidade’): pode-se não gostar, quem sofreu para se afirmar com outra
orientação sexual antes tão mal tratada, mas parece-me óbvio que continua a ser
a heterossexualidade o padrão definitório do sexo e género, o par homem /
mulher, a que as várias variantes de género se referem, quando um homem
apresenta o ‘seu marido’ ou uma mulher a ‘sua esposa’, quando os filhos chamam
‘pai’ a ambos, ‘mãe’ a ambas, julgo eu.
12. Não há género sem sexo e este é, antes de
mais, reprodução, procriação. E todo o sexo sobrevive socialmente em género,
com as suas variantes. Assim como a espontaneidade hábil
dum uso é a sua biologização, também o género é a socialização histórica do
sexo em cada humano, homem e mulher, o que nunca
deixam de ser, fora dos casos estranhos de transsexo. O género está para o sexo
como a culinária para a alimentação, os géneros variam como as tradições culinárias,
os erotismos como as gastronomias.
13. Como é que o sexo joga no género? É o velho
problema da igualdade e da diferença. Na cópula, o penetrar e o ser penetrada
dizem como não há uma sem outro, um sem outra: a diferença implica que cada um
esteja/seja no outro, são parte mútua. Não se trata de complementaridade, já
que o ‘dois’ precede’ o ‘um’, como os mamilos do homem explicitam. Ninguém é
homem antes da diferença sexual, mulher também não, ainda que esta seja mãe
deles e delas.
A desconstrução histórica do patriarcado
14. Voltemos à questão do título: desconstruir a
oposição sexo / género, que degenera facilmente em corpo, matéria / cultura,
social. O sexo é anatómico, vê-se à nascença se é menino ou menina (e os casos
de indecisão não alteram nada, revelam o primado do ‘dois’, implicam indecisões
com grandes sofrimentos), mas essa constatação, como Butler sublinha algures,
orienta imediatamente para o género respectivo, para os usos; ela diz ‘práticas’, mas essa terminologia
(althusseriana, por exemplo importante) deixa de fora a instituição do género
operada pelos usos, entre as quais – quase ausente do inglês – o género das
frases nos adjectivos (‘sou bonito’ / ‘sou bonita’). Sexo e género
indissociáveis: nasce-se com vagina e é-se orientado para os usos femininos,
sem ela para os masculinos, só muito mais tarde se saberá das orientações
sexuais. O motivo da suplementaridade permite articular os dois motivos
marcando ao mesmo tempo a sua indissociabilidade e a sua inconciliabilidade (o
diferendo entre mulheres e homens). Eis uma proposta: além do papel provável
(mas difícil de provar) das hormonas esteroides na evolução[5], além do seu papel anatómico explícito de incitação
ao coito reprodutor a favor da espécie e da sociedade, haverá também sublimação,
isto é, um deslocamento destas
excitações hormonais de espécie para o indivíduo, as “pulsões ” de Freud, para
os usos da tribo, quer no que diz
respeito à sua invenção quer sobretudo à sua aprendizagem pelos jovens, mas
sublimação ainda para o erotismo, busca do prazer além da reprodução, erotismo
esse que é provavelmente de sempre (conheci um cão de uma amiga que se masturbava
obsessivamente com uma manta) mas que explodiu socialmente no Maio de 68 com os
movimentos de libertação sexual, feministas, lésbicas e gays, a fazerem
implodir o género patriarcal dominante. A homossexualidade tornada pública em
época de planeamento familiar releva justamente deste triunfo geral do erotismo
sobre a reprodução. Mas é ainda duma sublimação das hormonas sexuais que relevam
provavelmente os fenómenos de mística, as vocações celibatárias espirituais
para causas de misérias sociais. Como a razão, a tecnologia, o erotismo é um
outro fenómeno de superação do biológico, do natural (sobrenatural), do físico
(metafísico).
15. Mas não só sexualidade, o feminismo veio com a
invasão das escolas e dos empregos assalariados pelas raparigas e pelas
mulheres, com os estudos e empregos mistos a sublinharem a igualdade, até com
vantagem feminina nas classificações. Esta igualdade, que pede ainda no privado
que se traduza nos salários, criou no Ocidente actual um género ‘unisexo’, onde
aliás o assédio sexual sublinha que este ‘um’ é sempre ‘dois’: ninguém confunde
homens com mulheres. Resta uma questão de sobrevivência do género patriarcal:
embora estudos e empregos sejam por regra unisexos ou unigéneros, creio, há
profissões de esmagadora maioria feminina e masculina (questão, por exemplo,
que não tem a ver com orientação sexual): enfermeiras, médicas e professoras (a
caminho), assistentes sociais, por um lado, engenheiros, militares e polícias,
financeiros e administradores, por outro. Até que ponto são tendências actuais,
maiorias estáveis no futuro, por ora não se sabe. Como não se sabe se as
diferenças sexuais e hormonais interferem nestas diferenças de género.
16. E não será que este espectáculo ocidental dado
nas televisões por todo o lado não será a mais forte razão para os
fundamentalismos islamistas? Os excessos deles não virão das ‘sublimações’ dos
seus machos?
[2] LÖWY, Ilana e ROUCH, Hélène (coord) (2003) Cahiers
du Genre, nº 34. La distinction entre sexe et genre: Une histoire entre
biologie et culture, L’Harmattan
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