sábado, 1 de agosto de 2015

Leitura textual



1. O § 1 do texto Platão entre Sócrates e Aristóteles pede um esclarecimento. Fui aprendendo a ler ao longo da minha vida e compreendendo que não há nenhum método ou equivalente de leitura, nem em filosofia nem em ciências em que os textos sejam importantes, como a história e outras ciências que tenham a ver com sociedades. Mas é claro que toda a gente acha que sabe ler, sem método aceitar-se-á facilmente, como que intuitivamente. Houve tentativas, claro, tipo análises de ideias ou de conteúdos, as semióticas estruturais de Greimas, mas sem grande sucesso, ou, se se quiser, o sucesso da inteligência do leitor, como acontece também com os psicólogos: a experiência de gente inteligente permite coisas boas.
2. Qual é o problema? O que se faz por regra quando se lê um texto? Há certo tipo de palavras, os categoremas dos medievais ou os signos dos modernos, que reenviam para ‘coisas’ da dita ‘realidade’, concretas ou abstractas, as ‘coisas’ que os dicionários indicam como significado das palavras, com frequentemente polissemias (o verbo ‘fazer’, dizia Benveniste, tinha 80 significados no dicionário Littré). Fora dessas palavras, substantivos, adjectivos, verbos e advérbios das gramáticas clássicas, há os sincategoremas, o ‘sin-‘ dizendo que são elementos da sintaxe que põem em relação entre eles os categoremas nas frases, não têm pois significado referencial, nem concreto nem abstracto, mas estabelecem correlações entre as outras palavras. Ora bem, creio que que se pode dizer que aprender, a ler como a falar, implica como atitude essencial, indispensável a qualquer leitura ou escuta ou fala, o saber correlacionar esses signos ou categoremas com o que eles referem. A questão é saber se essa atitude indispensável é a única e, se não for, o que é que a completa. E é possível que esteja aí o busillis. Na tradição filosófica, pelo menos a partir do helenismo enquanto sendo coisa de bilingues, de gente falando grego além da sua língua materna (já o fundador do Estoicismo, Zenão, que aprendeu grego na escola), quando se teorizou o motivo do signo, essencial para a tradução justamente por essa economia de referencialidade ser em torno da qual se traduz, houve na tradição filosófica helenística e na moderna europeia (quando se largou o latim como língua de erudição e a tradução reapareceu) uma atenuação da estrutura da linguagem que foi subalternizada ao pensamento e à sua relação com a ‘realidade’ a pensar. Então creio que se pode dizer que o que veio completar a capacidade de leitura foi a importância dada aos ‘significados’ das coisas da ‘realidade’, concretas ou abstractas: lê-se pensando nas coisas lidas, como se não houvesse linguagem. Uns melhores, outros menos bem. É ainda assim que muita gente lê, toda a gente é ensinada assim, à maneira da ontoteologia heideggeriana (eu sujeito diante de objectos), do logocentrismo derridiano (privilégio da minha voz a ler mentalmente).
3. Escapar a isto demanda uma lenta aprendizagem da textualidade. A leitura textual, seja a de Barthes no S/Z e noutros textos da mesma época, seja a da Derrida, este na sua proposta gramatológica de ler o texto filosófico enquanto escrita e que, lendo Rousseau, escreveu – grande  indignação, grande escândalo – que “não há fora do texto” 
(http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2014/07/o-que-e-que-ha-fora-do-texto-nada-tudo.html), 
o que implica ter em conta não o ‘contexto’ das coisas lidas, como se o texto fosse transparente à realidade, mas o que se pode chamar o contexto textual, todo o resto do texto, tanto próximo (no sentido habitual de contexto) como longínquo. Ou seja, ler o texto como um textil, uma renda de fios entrecruzados (Barthes), um tecido de diferenças, de conotações, isto é, de diferenças entre denotações, os tais ‘significados’ dos signos. E a ‘realidade’? Nenhum texto diz esta sem mais, mas escolhe, dum imenso indizível, aquilo que dela diz. Qual é a vantagem deste método de leitura? A dizer verdade tem muito pouco de método, cada texto tem o seu, a pedir habilidade ao leitor, a vantagem sendo a de se poder chegar mais perto do que foi escrito, o que é tanto mais importante quanto mais antigo for o texto, por exemplo, os textos filosóficos gregos e medievais e os textos bíblicos. Assisti uma vez a uma apresentação e debate do poema de Parménides por gente da filosofia analítica que me impressionou muito: procuravam no venerável texto respostas para as suas discussões do século XX. Tal como os exegetas bíblicos, crentes ou ateus, lêem os textos como se fossem da nossa actualidade da separação da religião e da politica. Ou ainda uma tradutora de Orígenes (início do século III) que a certa altura introduzia a expressão “representação mental” que o Vocabulaire de la Philosophie (início do século XX) ainda não continha! Ora, estes textos antigos são nossos fundadores, isto é, ignoravam totalmente as nossas questões de descendentes retardados e o principal problema da leitura deles é que nós, por nosso lado, ignoramos inevitavelmente as ignorâncias deles. Por exemplo mais perto, ignoramos que Galileu não sabia física, estava a dar-lhe início: não conhecia sequer a lei da gravidade, descoberta por Newton, o qual nasceu no ano em que ele morreu, Galileu. Kuhn fala algures deste anacronismo, contando como nos seus seminários de história da física os alunos vindos doutras áreas têm mais facilidade em abordar limpidamente os textos do que os alunos com formação científica, que metiam física de épocas posteriores sem darem por isso.
4. A vantagem da leitura textual, implicando sempre a competência referencial em relação aos ‘significados’ das palavras antigas, tanto quanto podemos conhecê-los, é claro, é a de nos aproximarmos da problemática desses textos, no sentido que foi aberto por Bachelard e retomado por Althusser. Como saber que nos estamos a aproximar dessa problemática? Quando o texto começar a reagir contra a nossa grelha de leitura, começar a revelar contradições nele mesmo que obriguem a corrigir a grelha e a procurar os motivos escondidos dessas contradições. Quando o texto se torna fascinante.
5. Mas há uma desvantagem também. É que dá muito trabalho, exige muita energia, muito tempo, para relacionar assim as diferentes partes do texto, encontrar as suas repetições além do nível das frases, nos códigos que ele tece para contar o que conta, o seu movimento de escrita, a ‘realidade’ que o fez escrever. Este motivo de código, que se encontra também de outra maneira nas Mythologiques de Lévi-Strauss, permite com efeito compreender nas suas repetições, quer sequenciais quer paramétricas, os elementos linguísticos das frases que reenviam dumas para as outras. Quando se trata de textos que fazem ‘corpus’, esses códigos repetem-se como paradigma do corpus respectivo (é o caso dos mitos que leu genialmente o grande estruturalista), o que permitirá ganhar rendimento de leitura com o tempo: se inicialmente há que andar à procura lentamente, a verdade é que depois as vantagens compensam. 

Sem comentários: