1. “Quando se deixará
de confundir o sexo da mulher com o seio da mãe, de pretender que aquele não
tem valor senão porque recolhe a herança deste?” (p. 181). Luce Irigaray
formula assim uma das questões de fundo do feminino e do feminismo no último
quarto deste século, no início do qual esta psicanalista filósofa publicou o
que creio ser um dos textos mais fortes de filosofia feminina: Speculum, de
l'Autre Femme
(Minuit, 1974). Todos sabemos que só as mulheres podem ser mães, que sem a
maternidade as sociedades não se reproduzem. A questão poderá pôr-se assim: mas
são as mulheres apenas mães? Se as não considerarmos como mães, por exemplo
como engenheiras ou filósofas, ou enquanto cidadãs, deixam de ser sexuadas,
são como os homens? O que significa a diferença mulher / mãe, que implicações
tem essa diferença na problemática feminina actual? 209
Um texto deliberadamente anti-pedagógico
2. O meu propósito era
apresentar aqui este texto que nunca lera, mas devo dizer desde já que não o
conseguirei fazer cabalmente: ele foi escrito justamente para não poder ser
‘exposto’ segundo os cânones da pedagogia, inevitavelmente masculina, de
trazer o novo ao mesmo já conhecido. E sobretudo para não poder ser exposto por
um homem. Uma nota final precisa que “a/uma mulher, ocupando em relação à
elaboração teórica uma função tanto de um fora mudo sustentando toda a
sistematicidade como de solo materno (ainda) silencioso de que se alimenta qualquer
fundamento, não tem que se relacionar com ela da maneira já codificada pela
teoria. Confundindo assim, mais uma vez, o imaginário do ‘sujeito’ – nas suas
conotações masculinas – e o que seria, será talvez, o do ‘feminino’ [...] Mas
se sucedesse, na resistência a reconhecer-se aí, o constrangimento duma
distorção, irresistível se possível, então talvez ? que algo da diferença dos
sexos teria tido lugar também na linguagem” (p. 458). Ora, sem dúvida que
comigo houve constrangimento, já previsto em certo sentido, porque doutros
textos dela eu viera a este provocado por uma espécie de barreira intransponível,
a dum pensamento que coloca em lugar de destaque a multiplicidade das zonas
erógenas femininas e o gozo sexual daí decorrente, que me deixou parcialmente
de fora enquanto leitor; esse desafio me trouxe, fui outra vez derrotado,
creio, mas continuo interessado.
3. O livro compõe-se
de três partes de cerca de 150 páginas cada: a primeira em torno de Freud, a
última da alegoria da caverna de Platão, a do meio percorrendo Platão, Aristóteles,
Plotino, Descartes, a mulher mistérica, Kant e Hegel, de cada um sugerindo
sintomas de como o múltiplo materno excluído pelo filosófico suporta o seu
edifício uno e paterno.
A mulher que Freud mede pelo homem
4. É por Freud que se
faz a entrada: Irigaray descobriu, digamos assim, a segunda ‘descoberta’ de
Freud (mas da qual ele mesmo não se deu conta). “Freud, escreve ela, teria
infligido dois golpes à cena da representação. [Ou seja, à cena europeia do
sujeito / objecto em mútua exterioridade, este se representando naquele
através de sensações, imaginações, ideias, etc.] Um deles em certo sentido
directo, quando põe em xeque uma certa concepção do presente, da presença,
quando põe o acento no ‘après-coup', na sobredeterminação, no automatismo da
repetição, na pulsão de morte, etc. ou quando indica, na sua prática, o
impacto dos mecanismos chamados inconscientes no discurso do ‘sujeito'. O
outro [golpe], mais cego e mais indirecto, quando – prisioneiro ele próprio
duma certa economia do logos, duma certa lógica, nomeadamente do ‘desejo’, de que
ignora a ligação à filosofia clássica – define a diferença sexual em função
do a priori do mesmo, recorrendo, para apoiar a sua demonstração, aos processos
de sempre: a analogia, a comparação, a simetria, as oposições dicotómicas, etc.
Quando, sendo parte activa duma ‘ideologia’ que ele não põe em causa, afirma
que o gozo [jouissance]
masculino é o paradigma de qualquer gozo, que qualquer representação do prazer
não pode senão referir-se a ele, medir-se por ele, submeter-se-lhe. O que, sem
dúvida, para permanecer eficaz, deveria ao menos permanecer escondido!
Exibindo este ‘sintoma’, este ponto de crise da metafísica onde se vem expor a
‘indiferença’ sexual que lhe assegurava a coerência e a ‘clausura’, Freud
propõe-o à análise” (pp. 28-29). É esta análise que Irigaray conduz na sua
primeira parte que comenta a conferência intitulada “A feminilidade” (1933) e
que, sendo conhecida porque retomada por muitas outras autoras, resumirei rapidamente.
5. Apesar de as suas
primeiras e decisivas pacientes terem sido mulheres, a teoria freudiana da
estruturação do inconsciente feminino foi elaborada após a do masculino, onde
por exemplo Édipo e Narciso têm um papel decisivo na reformulação do Ego da
segunda tópica, e mais, foi elaborada de forma derivada da maneira como o inconsciente
masculino se centra em torno do pénis, da sua posse e castração. O ponto de
partida é formulado assim: como é que uma criança com tendências bissexuais se
torna mulher? A resposta a tal questão, que nunca foi posta para a análise da
génese do rapazinho, é dada pela constatação precoce da menina de que ela não
tem um pénis como os rapazes, se acha castrada e põe-se a desejar ter um
(enquanto que o rapaz, ao ver que a rapariga não tem pénis, deduz que ela já
foi castrada, o que reforça o seu medo de o ser também). A rapariguinha,
rejeitando o seu sexo, é portanto um rapaz falhado em algo de essencial, que
não tem senão um desejo, o de ser um rapaz, desejo que será cumprido um dia em
que seja mãe, o filho substituindo enfim o pénis ausente. O filho, e não a
filha: como se pode conceber uma rapariga?, pergunta Irigaray.
6. Ora, contrapõe ela,
à mulher não falta nada, ela tem : tem óvulos, tem órgãos sexuais (vagina, seus dois lábios,
clítoris, útero), tem seios, tem corpo com sensibilidade de tocar e de ser
tocado; o que ela tem corresponde a um gozo sexual específico dela, nomeadamente
de auto-erotismo entre a multiplicidade das suas zonas erógenas; ora, o que ela
assim tem não ocupa nenhum lugar na explicação freudiana, dominada pelo pénis
só, exclusivamente, isto é, a sexualidade masculina exclui a consideração
da sexualidade feminina.
Mas há mais : o devir mulher da rapariguinha, segundo Freud, decide-se
antes da puberdade, antes de ela ter acesso ao seu prazer sexual, antes de ter
descoberto a vagina, antes de ter descoberto o útero como matriz, etapas da
evolução da mulher que Freud ignora, como também a sua saída da família para
outra família, a mudança de nome, do pai para o marido, nome que nunca lhe é
‘próprio’, a maternidade e o aleitamento, nenhuma destas etapas especificamente
femininas intervêm na estruturação do inconsciente duma mulher.
A psicanálise é herdeira da filosofia masculina
7. Ora bem, em vez de
voltar as costas a Freud, já que psicanalista, Luce Irigaray leva-o a sério e
interroga-se : como é que foi possível que alguém, cujo trabalho tão
arguto teve incidências filosóficas tão grandes, se tenha mostrado cego a este
ponto extremo? É onde ela se dá como filósofa, como filósofa genial :
Freud pensou o inconsciente feminino segundo o modelo masculino porque não
dispunha, na tradição filosófica ocidental, de outro modelo para pensar. Esta
masculinidade essencial da filosofia greco-europeia foi a segunda grande
descoberta de Freud,
a tal de que ele próprio não se apercebeu, e é do que se ocupam as duas outras
partes do seu livro. A começar pelo privilégio da visão, já que a ‘inveja do
pénis’ pressupõe que este se vê, que os órgãos sexuais femininos pelo
contrário não dão nada a ver, são in-visíveis. Foi a cumplicidade estrutural
entre o olho e o pénis que excluiu este in-visível, este buraco. Mas também a
unidade do pénis e a solidez da sua erecção excluem a multiplicidade e a fluidez
do gozo feminino. O visível, a unidade, o sólido sobre seu solo ou
fundamento, não
é isto mesmo que desde Platão se privilegiou no Ocidente como medida de todo o
conhecimento ?
8. Conhecimento é
reflexão, especulação: o título, Speculum, indica a estrutura do espelho, do olhar
ao espelho, que Luce Irigaray procura desconstruir210,
para mostrar como a erecção da filosofia só foi possível a partir do materno
como fonte e
da sua exclusão e ocultação. É o objecto da terceira parte do seu livro, em
torno da alegoria da caverna com que abre o livro VII da República e que ela segue a par e passo,
num discurso que é simultaneamente comentário e ironia, em que ela analisa
com todo o rigor... é assim que eu continuaria normalmente, isto é, dando
conta da leitura de outro filósofo masculino. Mas aqui não posso: Luce Irigaray
não pretende ‘analisar', se se tratar de analogia, de comparação, de simetria,
de oposições dicotómicas, não pretende ‘rigor', já que o comentário se quer
exuberante, irónico, chocante, para os hábitos estabelecidos na filosofia do
Mesmo.
A caverna-mãe-terra
9. A caverna é uma
metáfora: a Glaúcon que se admira com o “estranho quadro e estranhos
prisioneiros esses de que tu falas”, Sócrates responde “semelhantes a nós” (515a)211. A “habitação subterrânea em forma de
caverna” (514a) é metáfora de quê? “do antro, ou matriz, ou hystera, por vezes
terra” (p. 301). Do útero da mãe, portanto. A saída da caverna, dolorosa porque
à força, pelo caminho-vagina que leva à luz – “e se o arrancassem dali à força
e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e o não deixassem fugir antes de
o arrastarem até à luz do sol, não seria natural que ele se doesse e se
agastasse...?” (515e) – é também metáfora do parto (p. 347) (explicitada aliás
em Teeteto
150a-b: “a minha arte de parteiro compreende pois todas as funções que cumprem
as parteiras; mas difere da delas em que liberta homens e não mulheres e em
que vigia as almas deles em trabalho e não os corpos deles”). Haverá pois novo
nascimento mas sem mãe, só entre homens, uma reprodução por reflexão,
especulativa, no logos
apenas. O que se faz numa escola como a nossa, por exemplo, ainda que hoje com
mulheres também: reprodução sem sexo. Ora nesta caverna há toda uma maquinaria
óptica, uma estranha maquinaria de projecção de sombras e imagens, com uns não
menos estranhos espectadores, homens que não são senão olhos, presos de forma a não poderem
olhar para trás, virados de costas para as origens dessas imagens, nem o fogo,
nem as estatuetas, nem os homens que as transportam; não podem olhar para a
fonte (para o materno) donde são originados e de quem recebem os fantasmas
e as alucinações que o parteiro, usando da força, dissipará. Mas o parteiro não
mostra ao ex-preso a fraude cinematográfica a que estivera sujeito: cá fora,
à luz do sol, o tempo todo da habitação na caverna será esquecido,
inconsciente, longe de qualquer saber (uma das propostas de Irigaray é que o inconsciente
que Freud deu a ler é essencialmente feminino, não que os homens não o tenham,
mas são femininos aí); o único regresso que é admitido é enquanto parteiro, a
retirar outros da prisão das sombras.
10. Se bem entendi
Irigaray, também a alma platónica, alma-olho, é um espelho interior, que
reflecte os aspectos ou formas das coisas e as compara para encontrar o eidos mesmo212,
que não muda, como por reminiscência a alma sabe. Reminiscência duma alma que
já era antes de nascer em corpo, que durará eternamente além da morte desse
corpo (e doutros posteriores), a inatalidade / imortalidade da alma é a desse
espelho em que o homem se reconhece como o Mesmo, se quer o Mesmo, espelho em
que a mãe-caverna se não reflecte, fica esquecida.
11. A caverna é pois
metáfora de uma ruptura, de um salto sem regresso. Donde para onde? Da gruta
terrestre e materna para o Sol e o Bem paternos. E quem é que salta? só homens?
Humanos de sexo não especificado213,
Iragaray assinala-o por vezes, mas sem ressalvar (por razões a que viremos
depois) que se está no contexto dos livros V-VII, onde se trata do estatuto das
mulheres na cidade, porventura o texto filósofico mais ousado sobre o feminino
em 24 séculos, até Simone de Beauvoir e Hannah Arendt. É a interrogação desse
contexto que tentarei, antes de regressar à problemática de Luce Irigaray,
já que as resistências que o texto dela me ofereceu me instigaram a deambular
um pouco pela República,
texto que nunca trabalhara e havia muito tempo que me seduzia.
Digressão pela composição da República de Platão
12. O livro V
inicia-se por um discurso feminista de defesa da igualdade das mulheres em
relação aos homens na cidade (com ressalva do que diz respeito à maternidade e
à força física), defesa essa que é argumentada filosoficamente contra as
opiniões antifeministas correntes em Atenas, que aliás também são as de Platão
em outros textos. Acontece que esta discussão é introduzida abruptamente por
um artifício literário. Sócrates interrompe o que se está a dizer, ao dar-se
conta de que dois dos seus ouvintes estão a bichanar ao ouvido um do outro, e
quer saber do que se trata. A resposta de Adimanto214
– “[...] julgas que nos passará despercebido, que disseste vagamente que em
relação a mulheres e filhos, seria evidente para todos que são comuns os bens
dos amigos?” (449c) – reenvia para uma passagem bastante anterior (423e),
perto do início do livro precedente; ora, Sócrates vai pegar nesta questão e
seguir um novo fio temático, e só três livros depois, tendo ficado assente que
“atingimos o termo da discussão” (541b), no início do livro VIII, volta a
desenvolver o tema que estava a tratar antes da interrupção: “uma vez que
levámos a bom termo esta questão, vamos recordar em que ponto nos desviámos do
caminho para chegarmos aqui, a fim de voltarmos a seguir pelo mesmo” (543c),
recordação essa a que Gláucon procede, terminando “[...] e quando eu te
perguntava quais eram essas quatro constituições a que te referias, nesse
momento Polemarco e Adimanto interromperam-me, e assim é que tu encetaste essa
discussão, e chegaste a este ponto” (544a-b) ; o livro VIII desenvolve
esses quatro tipos históricos de constituição política, sucedendo-se em
degenerescência progressiva e o IX as virtudes do homem político, com o que
fica arrematada a problemática da constituição justa da cidade, que se iniciara
no livro II, sem que intervenham nestes dois livros nem a questão do estatuto
das mulheres e das crianças nem o lugar de governante do filósofo nem a
teoria das Formas ideais dos livros V a VII, enquanto que no livro X volta a
crítica dos poetas que já fora feita nos livros II e III, mas agora do ponto de
vista das Formas ideais, mais a questão da imortalidade das almas, pedida pela
teoria da reminiscência e que também fôra silenciada no corpo primeiro do
texto. O artifício literário parece-me bem claro, à maneira das mães de
famílias numerosas doutros tempos quando acrescentavam as camisolas dos filhos
que tinham crescido demais e as lãs não tinham já a mesma cor, a arte
consistia em arranjar um enfeite de ‘tricot’ na costura que disfarçasse
esta : Platão procura disfarçar que os livros V a VII e X, sem dúvida
contemporâneos dos grandes diálogos sobre a Teoria das Formas ideais, a sua
reminiscência pela alma antes do nascimento e a imortalidade dela (Crátilo, Ménon, Fédon, Banquete, Fedro), foram escritos algum tempo depois
do conjunto II-IV, VIII-IX. Por outro lado, há muito tempo que há quem pense
que o livro I (sobre a justiça) foi publicado anteriormente, como os primeiros
diálogos aporéticos sobre as virtudes, e posteriormente tornado “prelúdio” da
segunda edição, constituida pelos livros I, II-IV, VIII-IX. “Ditas, portanto,
estas palavras, julgava eu que estava livre da discussão”, é como Sócrates
inicia o livro II, “mas de facto era apenas o prelúdio, ao que parece” (357a):
trata-se de um outro ‘tricot’ literário, sabendo-se aliás por Dionísio de
Halicarnasso que “Platão continuou sempre a rever os diálogos”215.
13. Qual é a
importância desta questão para o debate sobre o feminino? É que ela permite
propôr uma hipótese de leitura de Platão que lhe dá uma posição privilegiada.
Com efeito, a República
seria o grande texto de Platão, não apenas o mais extenso mas a trave mestra de
toda a sua textualidade ; enquanto que os outros diálogos trabalham os
diversos motivos que Platão foi pensando, ela exibir-nos-ia o plano de conjunto
das três primeiras etapas do pensamento de Platão, primeiro ética, depois
política, enfim ontologia. O livro I mostra-nos o primeiro Platão, próximo de
Sócrates e do seu não-saber, da sua maneira de ‘criticar', digamos, as
tradições e os ensinamentos aprendidos de outrem sob forma de repetição, a sua
maneira de utilizar a definição mas sem propôr saída à questão ética debatida,
já que esta deveria resultar do exercício de pensamento e de mudança de vida
de cada um dos auditores, do próprio exercício da virtude em debate. Haverá assim
uma espécie de ‘cepticismo’ em relação à tradição (atitude moderna por
excelência, que Descartes, por exemplo, retomará na sua dúvida metódica) mas
que não o é (em Descartes também não), uma vez que se trata de uma arma contra
o ‘relativismo’ dos seus contradictores. A segunda etapa rompe com a
ambivalência desta atitude, propondo uma tarefa de pensamento político inédita:
“considerar em imaginação a formação de uma cidade” (369a), para lhe repensar
o modelo, a constituição, a ‘politeia'. Esta segunda redacção da República parece convir bastante bem ao
auto-retrato de Platão como pensador da cidade, da política, no início da sua 7ª
Carta: ela conta
a sua ruptura com a maneira socrática de intervir, metaforizada na mudanda de
óptica da escala das letras (368d), na passagem do questionamento da virtude
de cada humano ao da própria cidade. Donde lhe veio este novo projecto? Dos
diversos esforços de reforma política democrática em Atenas de havia mais dum
século a essa parte e da constatação do seu fracasso, tornado definitivo aos
olhos de Platão pela condenação recente de Sócrates, o mais justo de todos os
homens. Basta pensar no que significaria para um ateniense a leitura deste
texto, dito na primeira pessoa por Sócrates, passados uns 10 ou 20 anos sobre
a sua condenação à morte. Há que repensar a cidade inteiramente, há que
repartir do zero. A 3ª etapa, os livros V a VII e X, refaz o nó entre as duas
anteriores, já que a teoria das Formas ideais eternas supõe sempre que só a
alma de cada um pode vir, por reminiscência, à sabedoria, por um lado, e por
outro lado, sendo o coração do platonismo, esta teoria é colocada como a
justificação do lugar preponderante do pensamento filosófico no governo da nova
cidade, é o que justifica, com o plano da formação filosófica dos futuros
governantes, que essa cidade seja possível. É esta unidade ‘republicana’ da
política, da ética e do saber filosófico que é o grande desígnio de Platão216.
14. Já agora, uma
breve alusão à 4ª etapa, a da crítica das Formas ideais eternas, encetada pelo Parménides, onde Sócrates é desalojado do
lugar principal em benefício do velho Parménides que argumenta com um homónimo
de Aristóteles, como se Platão indicasse assim que esta última etapa era o
fruto das suas discussões com o seu jovem discípulo. De qualquer forma, é certo
que os textos seguintes, Teeteto, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis, terão como objecto as realidades terrestres
ou sub-lunares nelas mesmas, se se pode dizer, e já não do ponto de vista da
relação delas às Formas ideais, mas de dois princípios, o Ilimitado e o
Limitado, mais a sua mistura217 e a
fonte desta, a Ideia de Bem (Filebo, 23d). Como se esta problemática fizesse
um novo passo na ruptura com Sócrates, um passo na direcção de Aristóteles,
da filosofia da physis
deste.
15. Concluindo esta
digressão pela composição da República, nesta hipótese, em vez da concepção
(reinante?) dum ‘puzzle’ de diálogos platónicos instaurando o projecto
filosófico do saber sobre temas variados, entre os quais o duma reflexão, curiosa
mas utópica, sobre a polis,
teríamos que é esta que estrutura a proposta filosófica de Platão (no
coração dos livros VI-VII estaria o programa da Academia), como a physis o faz em Aristóteles. Podemos
supôr que sem a República
e antes de Aristóteles (e não creio que este seria possível sem aquela), pura e
simplesmente nós não teríamos tido o que chamamos filosofia, teríamos tido
apenas literatura, à maneira das grandes culturas asiáticas.
A ruptura: a alma arrancada à casa
16. Para reatar com
Luce Irigaray, a questão que nos fica é a de compreender porque é que a série
de três discussões do 3º troço da República, o dos livros V-VII, é inaugurada pela
do lugar das mulheres na cidade repensada pelo discurso. Obviamente que esta
questão implica antes de mais saber qual é esse lugar na cidade de facto, em
Atenas. Ela é a mêtêr218 e a oikodespoina, a mãe e a dona da casa, como é
regra das sociedades guerreiras, à base de agricultura e criação de gado, de
que a casa é a unidade estrutural: por um lado, a unidade de parentesco que se
transmite de pai para filho, com troca de mulheres entre casas em cada nova geração,
como Lévi-Strauss nos mostrou e o jogo dos apelidos entre nós atestava, por
outro lado a unidade económica que o pai governa (nas casas ricas os escravos
pertencem à casa, veja-se a Política de Aristóteles), a casa onde se mora,
mas também os campos de trabalho agrícola, os rebanhos. É a este conjunto,
activo e fecundo, que os Gregos chamam oikos, casa. Porquê activo e fecundo? Porque
ele depende, por um lado, do trabalho, segundo usos e artes cujas receitas são
transmitidas de antepassados em descendentes, mas por outro da boa ou má tuchê (fortuna), da maior ou menor
fecundidade das plantas, das fêmeas, das mães. Ora, os humanos ‘activos’ não
dominam a fecundidade, acolhem-na como dom, dom plural nas suas fontes,
terrestres e celestes, como atesta o que chamamos politeismo. Proporia o termo
ben(mal)dição para dizer a incógnita constante da tuchê, da (in)fortuna e, ignorante que
sou da mitologia grega, recorro à hebraica para ilustrar este motivo. O nascimento
de um bebé, sobretudo se fôr macho, é das maiores bênçãos, mas acompanha-se
de largos escorrimentos de sangue (e sangue que escorre é sempre sinal de
ferida, de violência, de morte) vindos de dentro do ventre materno, impureza
esta que obrigará a mãe a uma severa ‘quarentena’ para se purificar. Também
esse bebé virá por herança a ser pai na casa, a herdar linhagem e nome
patriarcais, terras, gado, residência, escravos, criados e suas famílias: a bênção
que é o seu nascimento anuncia pois também a morte futura do pai (tocar num
cadáver, porque impuro, obriga também a alguns dias de segregação
purificadora). Bênção ainda que as terras que venha a trabalhar sejam fecundas
em ceifas, vindimas, azeite... mas para que tal ocorra muito trabalho duro se
lhe pedirá. Bênção sim pois, mas com maldição no seu seio, nunca se sabendo
de antemão se o que se anuncia, nascimento ou primavera, será de bom ou mau
destino. Ora bem, se relermos no capítulo 3 do livro do Génesis os castigos divinos lançados
sobre Adão e Eva depois da transgressão do Éden, lá encontramos o parir na
dor, o suor no trabalho do campo, a morte ao fim da vida : expulsos donde
não havia senão bênção, a maldição que se mistura tão incertamente no coração
da bênção é contada miticamente como consequência de uma falta ética, tendo o
texto profético decidido, separando a bênção da maldição, no que
quotidianamente se não decide. Não me estive desviando : é uma decisão
formalmente equivalente separando o Bem e o Mal – salto da casa para a alma –
que é feita nos livros V-VII da República e nos diálogos seus contemporâneos, Fédon por exemplo (cap. 7).
17. Costuma-se falar
do ‘comunismo’ da República,
mas de facto este não é proposto para toda a cidade, limita-se à classe dos
patrícios enquanto guardiões, dos guerreiros profissionais (distinguidos entre
chefes e auxiliares das decisões destes, III, 414b), que mais não fazem do que
dedicar-se a essa arte (já que é na especialização exclusiva que consiste uma
cidade justa), para a qual terão de ser educados (música-poesia e ginástica), o
que para os lavradores e outros artífices (415a) não é considerado219. Também assim a tal comunidade das
mulheres e a educação colectiva das crianças sem pai nem mãe é limitada aos
guardiões guerreiros, tal como a educação filosófica. Ora bem, o tal
‘comunismo’ da República
corresponde à abolição das casas dos patrícios guerreiros na sua dupla dimensão, quer da
propriedade e actividade económica, quer da maternidade e da paternidade
enquanto dispositivos patriarcais do parentesco, organização tradicional das
tarefas femininas e masculinas para que raparigas e rapazes são
tradicionalmente educados. Para cortar na raíz os ciúmes e invejas que
envenenam o quotidiano da cidade, Platão, num gesto correlativo da invenção
socrática da definição (que arranca o definido ao seu contexto quotidiano), arranca
a alma à casa, à
natureza, ao sensível, ao corpo, já que existente antes do nascimento deste e
para além da sua morte.
O feminismo de Platão
18. Esta utopia, como
se diz, teve uma primeira concretização parcial nas comunidades monásticas,
com a diferença essencial do celibato que as votou às margens das sociedades;
mas pode-se dizer que foi realizada nas sociedades contemporâneas, a diferença
essencial sendo agora a da propriedade (cuja abolição foi experimentada
sobretudo em países não ocidentais mas fracassou, como sabem os
chineses) ; de facto, a industrialização moderna liquidou as casas das
sociedades tradicionais e substituiu-as por duas redes, uma de instituições
(onde temos empregos preenchidos por uma prévia selecção escolar) e outra de
famílias, sem actividade económica220,
com divórcio fácil e (quase) sem educação das crianças, assumida esta maioritariamente
pela escola, tendo como consequência o ingresso massivo das mulheres nos
empregos da sociedade tal como os homens, justamente como Platão
preconizou :
“concordas portanto – perguntei eu – que haja entre homens e mulheres a comunidade
que descrevemos, e acerca da educação, dos filhos e da guarda dos outros
cidadãos, que as mulheres devem ficar na cidade e ir para o combate, fazer
vigilância e caçar junto com os homens, tal como entre os cães, e participar em
tudo, até onde for exequível, e que, se assim fizerem, procederão da melhor
maneira possível, e não contra a natureza do sexo feminino em relação à do
masculino, pois ela os criou para viverem em comunidade ? Concordo, sim”
(V, 466c-d). Sendo assim, há que dizer que este discurso do livro V não é apenas
‘um’ discurso feminista, ele é ‘o’ discurso feminista já, antecipado vinte e
quatro séculos. É o argumento, retomado por Mary Wollstonecraft e por
Condorcet, no final do século XVIII221,
de que se as mulheres estudarem como os homens estudam, elas são tão capazes
na cidade quanto eles ; esse argumento foi comprovado historicamente na
segunda metade do século XX, o feminismo sendo o belo e raro triunfo de uma
argumento filosófico como tal 24 séculos mais tarde. Não é a opinião de um
‘homem’ (Platão é misógeno, como os seus contemporâneos noutros diálogos) mas um
argumento da Filosofia, necessário como consequência lógica da abolição da casa.
19. Feminismo este que
Luce Irigaray atravessa, ao menos em parte. A resposta à questão do donde e
para onde do salto, da ruptura do prisioneiro saído da caverna, fica agora mais
cabalmente respondida : da casa e da sua multiplicidade de usos e de dons e fecundidades,
da casa politeista e dos seus desejos próprios – comer e beber, sexo e
erotismo, honras e riquezas –, do mundo do sensível e dos seus cuidados, para a
alma e a unidade
dos seus desejos fixados na contemplação das Formas ideais, e mormente da de
Bem, em suma do politeismo dos dons ao monoteismo da causa primeira. Da
maternidade para a paternidade, dizia Irigaray. Por exemplo, a paternidade
intelectual e espiritual dos Mestres em relação aos discípulos, a escola, na
senda aberta pela Academia aliás, sendo uma boa ilustração desta leitura, até
na maneira como faz guerra aos saberes tradicionais das casas222. Para o dizer, Irigaray teve todavia
que contestar o texto de Platão nos seus pressupostos, já que os seus
propostos explícitos são de abandono também da paternidade : homens e
mulheres são para ele almas (que dominam seus corpos) e só de longe em longe
sexuados e procriadores. E terá sido a razão pela qual Speculum não se ocupa deste discurso, a
quem censura que as mulheres só sejam admitidas na cidade “se na verdade
tiverem tudo em comum com os homens” (540c). Se Platão teve que se ocupar das
mulheres como corolário da sua necessidade de liquidar as casas para
introduzir os chefes-filósofos-almas, e elas sobravam-lhe, ele teve que as
pensar, mas justamente pensou-as mulheres e não só mães, é honra dele ;
mais, admitiu explicitamente no final do livro VII que elas possam ser
governantes da cidade ideal223. A
igualdade entre homens e mulheres, que só foi possível fora do contexto das
casas, a
consideração separada de cada um em relação à diferença sexual – é isso a
alma, o sexo relegado para o corpo de cada um –, relevam do que Heidegger caracterizou
como ontoteologia : os livros V-VII e X da República, e os outros por via deles ao
menos, fazem parte essencial da sua instauração.
“A mulher não é nem uma nem duas”
20. Volto à questão
inicial: o que significa a diferença mulher / mãe, que implicações tem essa
diferença na problemática feminina actual ? Enquanto cidadãs, as
mulheres não são sexuadas ? Ou têm sexo e seio ? As
homosexualidades, por exemplo, distinguem o sexo da maternidade e da
paternidade : e as/os cidadãs/os, são sexuadas/os? São questões em debate
aberto. Na minha ignorância, creio que a primeira corrente feminista, bem
representada por Simone de Beauvoir, afirmou a mulher em seu devir, tendendo
a ocultar a maternidade, à maneira, sem dúvida difícil de evitar quando se
irrompe, de quem inverte a posição patriarcal que identificava a mulher pela
mãe. E se assim fôr, dir-se-ia que esse primeiro feminismo repetiu Platão. Do
que Irigaray diverge sem dúvida, dessa exclusão da maternidade, distinguindo
embora, foi a minha primeira frase, “o sexo da mulher do seio da mãe”. Há quem
pense que ela assim vinculou de mais uma e outra, estaria perto dum
essencialismo do feminino. (Não me cabe, não posso tomar posição, cito apenas
uma frase da filósofa Françoise Collin : “eu sou uma mulher, mas ‘eu’ não
é uma mulher”)224. Onde, porém, tenho
dificuldades, é na maneira tão vincada, num estrato do texto de Irigaray, de
‘opôr’ masculino e feminino, paternidade e maternidade. Creio com efeito que,
do ponto de vista desta problemática, se pode dizer que o sentido do trabalho
dum Nietzsche, dum Heidegger, dum Deleuze, dum Derrida, todos homens, é o de
pensarem a descontrução – que se vem fazendo nos dois últimos séculos – da
sociedade patriarcal, da figura platónica do Pai e da sua cisão nítida entre o
Bem e o Mal, o Uno e o Múltiplo, o Inteligível e o Sensível. Outro estrato do
seu texto, propõe que se tratará primeiramente, antes do homem e da mulher, duma diferença sexual225, “de duas relações específicas à ‘materialidade’ do
começo – concepção, nascimento [...] mas um dois que não é evidentemente um +
um, o produto duma soma, nem dois meios, duas metades, o produto duma divisão.
Cada uma dessas não-unidades tomando o lugar de dois mesmos e de dois outros,
indefinidamente” (Speculum,
p. 92). Então, antes da mulher e do homem empírico, desde as primeiras semanas
da embriogénese, há uma diferença sexual singular, a partir da qual, no seu
devir histórico com outrem, a sexualidade (biológico-social) se pode articular
de formas múltiplas (como, em matéria de textos, fazem as poesias, os
romances, os filmes, permanentemente reformulando essa diferença da
espécie). Colocada a questão assim, poder-se-á dizer que nenhum humano, homem
ou mulher, poderá dizer a(s) diferença(s) sexual(is) que tem com o seu/ a sua
amante, com o seu pai ou a sua mãe, os seus irmãos de ambos os sexos, e assim
por diante, porque sempre parceira ou parceiro, parte da diferença sexual que,
por definição, não pode dar nunca conta da outra parte, falar por ela, nem
sequer dizê-la, tão só invocá-la e escutá-la. Se há sem dúvida género
feminino e género masculino, eles modalizam-se singular e multiplamente em
cada humano, em sua história que é sempre de uma multiplicidade de relações
com outras/os.
21. Creio poder
resumir assim as questões de Luce Irigaray: 1) o que é que foi preciso negar da
terra, das mães, das mulheres, da diferença sexual, para que a filosofia (e as
ciências), a cena do conhecimento-pelas-almas-dos-homens gregos e cristãos e depois
pelos homens-sujeitos europeus, tenha sido possível? 2) o que é que resulta na
nossa cena actual quando se reintroduz o que foi negado há 24 séculos? O que é
a diferença sexual na cidade de hoje? Como sair do patriarcado? Eis o que está
em aberto.
22. Termino, com uma
citação que me resiste, e vos ofereço. “Este sexo que não dá nada a ver também
não tem forma própria. E se a mulher frui justamente com essa incompletude de
forma do seu sexo que faz com que ele se retoque indefinidamente a si mesmo,
essa fruição é denegada por uma civilização que privilegia o falomorfismo. O
valor concedido só à forma definível faz barreira à que está em jogo no
auto-erotismo feminino. O um da forma, do indivíduo, do sexo, do nome próprio, do
sentido próprio... suplanta, afastando e dividindo, este tocar de pelo menos
dois (lábios) que mantém a mulher em contacto consigo mesma, mas sem
discriminação possível do que se toca. Donde este mistério que ela representa
numa cultura que pretende enumerar tudo, cifrar tudo em unidades, inventoriar
tudo por individualidades. Ela não é nem uma nem duas. Não se pode, em rigor total,
determiná-la como uma pessoa, mas também não como duas. Ela resiste a toda
definição adequada. Aliás ela não tem nome ‘próprio’. E o seu sexo, que não é
um sexo, é
contado como não sexo”226. E no Speculum: “Assim a mulher ainda não teve
lugar” (p. 282).
Permita-se-me a minha bibliografia em torno do feminino
“Quando Masculino / Feminino não coincide com Homem /
Mulher”, Jornal de Letras,
27 de Dezembro, 1983
“Feminino / Masculino, Dispositivos em metamorfose”, in
As Mulheres, a Identidade Cultural e a Defesa National, Actas do Seminário de
5-7 Abril 1989, Cadernos Condição Feminina, nº 29, pp. 33-36
“Sexo e Género: que relação ? ”, in Universidade de
Verão, Actas, Em busca duma Pedagogia da Igualdade organizado pela C.I.D.M. e pelo
Seminário Universitário de Educación no sexista (SUENS) da Univ. de Palencia
(Valladolid), na Faculdade de Psicologia da Univ. de Lisboa, CIDM, 1995, pp.
249-265
“Tentativa de enquadramento dos processos de
Individualização e de Subjectivização das Mulheres”, Comunicação ao Seminário
Políticas para a Igualdade, Construção de novos Indicadores da Comissão para a Igualdade e
para os Direitos das Mulheres (25 Março 1996)
A propósito do debate sobre o aborto:
“Uma calamidade social face à ética e ao direito, um ponto
de vista (masculino) sobre o aborto”, Diário de Notícias, 25 de janeiro 1984
“O direito ao corpo”, Jornal de
Letras, 2 de
Janeiro 1997
“O direito à existência humana”, Jornal de Letras, 26 de Março1997
“Crime e pecado não são a mesma coisa”, Jornal de Letras, 9 de Julho 1998
Com Teresa Joaquim
“Feminino sem mulher?” (polémica com António Guerreiro), Jornal
de Letras, 3-9
de Julho de 1984
209 Comunicação ao Colóquio
Filosofia no feminino, Faculdade de Letras de Lisboa, novembro de
1998, in L. Ribeiro Ferreira (org.), Também há mulheres filósofas, Caminho, 2001,
pp. 187-204.
210 Sobretudo Heidegger e o
motivo do esquecimento, por vezes Derrida, são claramente suas fontes, mas nunca
citados nem nomeados, como se se tratasse duma desforra que excluisse os
masculinos que houvesse que invocar como companheiros e não apenas
adversários, como se Irigaray esquecesse por sua vez, deliberadamente é claro,
a sua relação às fontes, esse esquecimento que ela fustiga em Platão e nos
outros seus descendentes em filosofia. Publica em 1983 um livro sobre o que
Heidegger terá ‘esquecido’, L’oubli de l’air, Minuit.
212 Seja o exemplo da
geometria, de como é possível calcular e conhecer a altura dum templo a partir
da sua sombra e da proporção entre a altura e a sombra duma vara. Ora, é do sol
que vem essa possibilidade: a geometria é “conhecimento do que existe sempre”
(527b), ela serve de paradigma a Platão, como se sabe (509b-511e).
214 Gláucon e Adimanto são
os dois irmãos de Platão, que dão réplica a Sócrates a partir do segundo
livro, substituindo Trasímaco; se vai abolir as casas, a sua também é
visada !
216 Há um caminho ontológico
paralelo à segunda redacção de República, que se pode ler no Fédon e no Fedro, dos quais G.
Colli (“Sur la composition des écrits platoniciens”, em Nature aime se
cacher,
l’éclat,
1994, [1948], pp. 229-249) despistou as diversas redacções seguindo o critério
dos respectivos estilos. No primeiro: 57a-69e e 114c-118 (narrativa da morte de
Sócrates, fazendo trilogia com a Apologia e o Criton), depois
69e-95e e 107b-114c, e enfim a terceira redacção, 95e-107b; no segundo,
227-257b primeiro, 257b-279c mais tarde. As últimas redacções são
contemporâneas dos livros V-VII da República, as outras mostrariam
uma ontologia dionisíaca do eros no jovem Platão, antes da
sistematização, que Colli privilegia, deplorando a ontologia.
217 Antes tinha sido sempre
rejeitado que a mistura fosse compatível com as Formas ideais eternas,
nitidamente separadas entre elas, mas foi justamente a mistura – do mesmo e do
outro – que decretou o ‘parricídio’ do próprio Parménides no Sofista, questão aliás
que poderia vir a ter efeitos numa eventual reconsideração da questão das
mulheres por este último Platão.
219 É dos primeiros
(ouro e prata do mito forjado, 414d-415c) que se diz que “nenhum possuirá
quaisquer bens próprios (ousian), a não ser coisas de primeira
necessidade [...], nem habitação (oikêsin) ou depósito algum” e
serão alimentados “pelos outros cidadãos, como salário da sua vigilância, em
quantidade tal que não lhes sobre nem lhes falte para um ano; as suas refeições
serão em comum e em comunidade viverão, como soldados em campanha” (417d-e).
220 As tarefas
domésticas ficaram bastante aligeiradas pelos electrodomésticos; e até o
cinema e a televisão não são sem relação com os homens-olhos da caverna.
221 Ver Teresa
Joaquim, Menina e Moça, A construção social da Feminilidade, Fim de Século,
1997, pp. 142-4.
222 Raul Iturra, A
Construção social do Insucesso escolar, Memória e Aprendizagem em Vila Ruiva, Escher,
Lisboa, 1990.
223 “São uma
formosura os governantes que tu modelaste, como se fosses um estatuário, ó
Sócrates! – E as governantes também, sem dúvida, ó Gláucon! Não vás julgar que
o que eu disse se aplica mais aos homens do que às mulheres, a quantas dentre
elas são dotadas duma natureza capaz. – Exacto, se na verdade tiverem tudo em
comum com os homens, conforme a nossa análise” (540c).
225 Poder-se-á dizer:
primeiro, antes de homem/mulher, masculino/feminino, há um dispositivo com
duas posições, como nas outras espécies mamíferas e não só.
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