sexta-feira, 26 de junho de 2015

Conjugar Broca e Wernicke : como é possível falar ?




1. Um dos grandes enigmas da psicologia dos humanos, anterior aliás a qualquer tese psicológica, é a maneira como se aprende a língua dita materna antes de qualquer escolaridade, nas suas regras sintácticas razoavelmente complexas e que são as mesmas de toda a gente da tribo falante em que a criança nasceu. Ela vem com efeito completamente de fora e a criança de muito poucos anos fala com essas regras numa espontaneidade inacreditável. Basta pensar na demora de ensinar um poema ou uma oração de cor a uma criança ou a um adulto, um actor de teatro, para se perceber que não há nada de equivalente na aprendizagem infantil da língua materna, ninguém se põe a ensinar sujeito e verbo, singular e plural, feminino e masculino, pretérito e futuro, indicativo ou conjuntivo. A pouco e pouco, a criança vai aprendendo empiricamente do que ouve dizer à sua tribo, em casa ou na escola, e faz vibrar a sua espontaneidade (em que diz o que ‘ela quer’, o que ‘ela pensa’) no leque de entoações, da ternura à cólera, da hesitação ao espanto, que é o da tribo igualmente. A criança fala mas também nela as regras da língua são dadas ‘passiva’ e indissociavelmente pela tribo, apagada a sua ‘actividade’ pela da ‘própria’ criança.
2. Ora, este enigma tem um aspecto que o torna ainda mais enigmático, se dizer se pode, faz participar o cérebro ainda mais no enigma, quando se abordam as suas regiões do hemisfério esquerdo que receberam as impressões dos falantes da tribo, as chamadas áreas de Broca e de Wernicke. As lesões numa destas áreas são significativas nas afasias que implicam, nenhuma delas por si só extinguindo a fala mas afectando o discurso de maneira específica.
3. Seja uma citação do Homem neuronal de J.-P. Changeux. A lesão da área de Broca (área 44 de Brodmann) faz com que “o paciente fale len­tamente, deforme as palavras, empregue sobretudo nomes, verbos no infi­nitivo; a sua gramática é rudi­mentar” (p. 153 da ed. fr.), enquanto que a lesão da área de Wernicke (área 22 de Brodmann) faz com que “os pacientes falem facilmente, com as palavras encadeadas em frases perfeitamente estruturadas, mas o discurso é vazio de sentido, a associação das palavras em frases significantes não se faz” (p. 154). Seja um exemplo do primeiro caso tirado da Web (afasia de Broca, Wikipedia), de alguém que conta uma ida ao dentista : "Ah sim... segunda... pai e Peter... e pai... quarta... nove da manhã... e quinta... dez da manhã... e doutor.... e dois... eeee.... doutores... dentes…”. O que é que falta neste balbuciar para ser inteligível? Preposições, artigos, conjunções, até mesmo verbos, que Changeux diz virem no infinitivo, isto é, sem a sua rica morfologia de pessoas, tempos e modos, falta aquilo que encadeia os signos a que os escolásticos chamavam categoremas, que é o que temos no exemplo: termos que têm um sentido que reenvia ao mundo, mas ditos fora da gramática que faz as frases. Isto que falta chamavam-lhe sincategoremas, os elementos linguísticos que asseguram morfologia e sintaxe. Ao invés, se a lesão for na área de Wernicke, os sincategoremas estão bem colocados, são os categoremas que falham a sua correlação, são quaisquer, não fazem sentido em relação ao mundo. No exemplo da afasia de Broca, os elementos temporais, o pai e o médico, os dentes, são categoremas relacionados entre si, fazem parte da mesma história, é esta que não é contada por não ter os elementos gramaticais correspondentes a esses ‘signos’.
4. Não sei como é que os neurologistas encaram esta dupla localização das frases e discursos em duas áreas, mas aparenta-se ao fenomonólogo algo de fortemente bizarro: dissociadas, as duas áreas trabalham de maneira intrinsecamente ligadas nos detalhes, como se cada uma juntasse coisas à outra com uma rapidez desconcertante, inclusivamente antecipando o que a outra vai ‘dizer’. Parece impossível pensar em contribuições distintas a cada uma das áreas, de tal maneira elas se articulam entre si no detalhe, o que sugere que elas funcionem como uma única área num contexto neuronal mais vasto; é o facto de o desenho das duas áreas resultar de lesões que impõe a sua consideração, senão os mapas neuronais para outras actividades serão sempre mais abrangentes e parecem opor-se a especializações mais estritas das áreas reconhecidas por Brodmann.
5. Uma outra consideração, posta em função do meu texto sobre a escrita ideográfica chinesa (neste blogue), é a de saber se as várias línguas orais asiáticas a que essa escrita corresponde, monossilábicas e portanto desprovidas de morfologia e elementos sintácticos, implicam que os seus falantes não necessitem da área de Broca, sejam desprovidos dela, mesmo quem é de língua materna inglesa quase nada a usando. Se for o caso, teriam mais dificuldades em aprender línguas europeias com as suas riquíssimas morfologias, já que teriam que receber a inscrição duma área nova, virgem.
6. Chego duma mercearia aonde duas ou três romenas entre 25 e 30 anos falam português idiomático de forma extraordinária, só ao ouvi-las falar romeno entre elas é que acreditamos que aprenderam o português já adultas. O pasmo que se diz no título deste texto duplica: como podem elas falar tão bem, tão depressa e tão espontaneamente, conjugando duas áreas distintas no fabrico das suas frases, sem que elas tenham algum controle dessa duplicidade e como é que o fazem em duas línguas diferentes? Sem nunca esquecer que as regras das línguas, morfologia, sintaxe e semântica, sem falar na fonologia, são milimétricas e vêm todas de fora, da tribo. E pensar que a filosofia pensou o pensamento mais de vinte séculos sem indagar do papel das línguas nele, sem saber o que fazer dessas regras que variam com os povos, procurando mesmo em certas épocas uma impossível ‘gramática universal’, que fosse como a matemática.

 

1 comentário:

Luís de Barreiros disse...

Estás com uns títulos porreiros, Fernando!
Vou ler...
Boas coisas