1. Um dos grandes enigmas da
psicologia dos humanos, anterior aliás a qualquer tese psicológica, é a maneira
como se aprende a língua dita materna antes de qualquer escolaridade, nas suas
regras sintácticas razoavelmente complexas e que são as mesmas de toda a gente
da tribo falante em que a criança nasceu. Ela vem com efeito completamente de
fora e a criança de muito poucos anos fala com essas regras numa espontaneidade
inacreditável. Basta pensar na demora de ensinar um poema ou uma oração de cor
a uma criança ou a um adulto, um actor de teatro, para se perceber que não há
nada de equivalente na aprendizagem infantil da língua materna, ninguém se põe
a ensinar sujeito e verbo, singular e plural, feminino e masculino, pretérito e
futuro, indicativo ou conjuntivo. A pouco e pouco, a criança vai aprendendo
empiricamente do que ouve dizer à sua tribo, em casa ou na escola, e faz vibrar
a sua espontaneidade (em que diz o que ‘ela quer’, o que ‘ela pensa’) no leque
de entoações, da ternura à cólera, da hesitação ao espanto, que é o da tribo
igualmente. A criança fala mas também nela as regras da língua são dadas
‘passiva’ e indissociavelmente pela tribo, apagada a sua ‘actividade’ pela da
‘própria’ criança.
2. Ora, este enigma tem um aspecto
que o torna ainda mais enigmático, se dizer se pode, faz participar o cérebro
ainda mais no enigma, quando se abordam as suas regiões do hemisfério esquerdo
que receberam as impressões dos falantes da tribo, as chamadas áreas de Broca e
de Wernicke. As lesões numa destas áreas são significativas nas afasias que
implicam, nenhuma delas por si só extinguindo a fala mas afectando o discurso
de maneira específica.
3. Seja uma citação do Homem
neuronal de J.-P. Changeux. A
lesão da área de Broca (área 44 de Brodmann) faz com que “o paciente fale lentamente,
deforme as palavras, empregue sobretudo nomes, verbos no infinitivo; a sua
gramática é rudimentar” (p. 153 da ed. fr.), enquanto que a lesão da área de
Wernicke (área 22 de Brodmann) faz com que “os pacientes falem facilmente, com
as palavras encadeadas em frases perfeitamente estruturadas, mas o discurso é
vazio de sentido, a associação das palavras em frases significantes não se faz”
(p. 154). Seja
um exemplo do primeiro caso tirado da Web (afasia de Broca, Wikipedia), de alguém
que conta uma ida ao dentista : "Ah sim... segunda... pai e Peter...
e pai... quarta... nove da manhã... e quinta... dez da manhã... e doutor.... e
dois... eeee.... doutores... dentes…”. O que é que falta neste balbuciar para
ser inteligível? Preposições, artigos, conjunções, até mesmo verbos, que
Changeux diz virem no infinitivo, isto é, sem a sua rica morfologia de pessoas,
tempos e modos, falta aquilo que encadeia os signos a que os escolásticos chamavam
categoremas, que é o que temos
no exemplo: termos que têm um sentido que reenvia ao mundo, mas ditos fora da
gramática que faz as frases. Isto que falta chamavam-lhe sincategoremas, os elementos linguísticos que asseguram
morfologia e sintaxe. Ao invés, se a lesão for na área de Wernicke, os sincategoremas
estão bem colocados, são os categoremas que falham a sua correlação, são quaisquer,
não fazem sentido em relação ao mundo. No exemplo da afasia de Broca, os elementos
temporais, o pai e o médico, os dentes, são categoremas relacionados entre si,
fazem parte da mesma história, é esta que não é contada por não ter os
elementos gramaticais correspondentes a esses ‘signos’.
4. Não sei como é que os
neurologistas encaram esta dupla localização das frases e discursos em duas
áreas, mas aparenta-se ao fenomonólogo algo de fortemente bizarro: dissociadas,
as duas áreas trabalham de maneira intrinsecamente ligadas nos detalhes, como
se cada uma juntasse coisas à outra com uma rapidez desconcertante, inclusivamente
antecipando o que a outra vai ‘dizer’. Parece impossível pensar em
contribuições distintas a cada uma das áreas, de tal maneira elas se articulam
entre si no detalhe, o que sugere que elas funcionem como uma única área num contexto neuronal mais vasto; é o facto de o
desenho das duas áreas resultar de lesões que impõe a sua consideração, senão
os mapas neuronais para outras actividades serão sempre mais abrangentes e
parecem opor-se a especializações mais estritas das áreas reconhecidas por
Brodmann.
5. Uma outra consideração, posta em
função do meu texto sobre a escrita ideográfica chinesa (neste blogue), é a de
saber se as várias línguas orais asiáticas a que essa escrita corresponde,
monossilábicas e portanto desprovidas de morfologia e elementos sintácticos,
implicam que os seus falantes não necessitem da área de Broca, sejam desprovidos
dela, mesmo quem é de língua materna inglesa quase nada a usando. Se for o
caso, teriam mais dificuldades em aprender línguas europeias com as suas riquíssimas
morfologias, já que teriam que receber a inscrição duma área nova, virgem.
6. Chego duma mercearia aonde duas ou três romenas
entre 25 e 30 anos falam português idiomático de forma extraordinária, só ao
ouvi-las falar romeno entre elas é que acreditamos que aprenderam o português
já adultas. O pasmo que se diz no título deste texto duplica: como podem elas
falar tão bem, tão depressa e tão espontaneamente, conjugando duas áreas
distintas no fabrico das suas frases, sem que elas tenham algum controle dessa
duplicidade e como é que o fazem em duas línguas diferentes? Sem nunca esquecer
que as regras das línguas, morfologia, sintaxe e semântica, sem falar na fonologia,
são milimétricas e vêm todas de fora, da tribo. E pensar que a filosofia pensou
o pensamento mais de vinte séculos sem indagar do papel das línguas nele, sem
saber o que fazer dessas regras que variam com os povos, procurando mesmo em
certas épocas uma impossível ‘gramática universal’, que fosse como a
matemática.
1 comentário:
Estás com uns títulos porreiros, Fernando!
Vou ler...
Boas coisas
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