1. Tentarei apresentar esta questão
em algumas das suas ocorrências históricas num breve resumo, a partir do que se
pode chamar a diferença ontoteológica. Diria que esta consiste na diferença e oposição entre o inteligível e o
sensível, nomeadamente na alma oposta ao corpo e ao mundo no platonismo, e na
correlação directa entre ambos com exclusão do contexto, do mundo. Supondo
ainda a diferença entre o céu e a terra que só o heliocentrismo de Copérnico e
Galileu veio dissipar, ela resulta inevitavelmente da definição, só terminando
com o ser no mundo. De Heraclito
não sei, mas a oposição entre o Ser e o não ser de Parménides, entre o que dura
eternamente e o corruptível terrestre, é sem dúvida parte da herança de Platão
que ‘aplica’, digamos, a definição ao celeste, discernindo as suas famosas Formas
ideais (Eidê) como eternas[1],
por um lado, e indo, por outro, tomar a outras tradições o motivo de alma imortal,
que as contemplou antes de tomar corpo. Então a diferença e oposição entre o
inteligível e o sensível está colocada e estará para durar: a alma é simples, nem gerada nem mortal, em
oposição ao corpo composto, entre geração e corrupção[2]. E a linguagem – dispensada do conhecimento das
coisas no Crátilo, inadequada
enquanto aprendida no Ménon
que apela à reminiscência para o saber espontâneo do jovem escravo – também
está deste lado do terrestre.
2. A herança de Parménides será
colocada em causa no célebre parricídio do Sofista, na sequência do Teeteto que põe pela primeira vez na cronologia dos
diálogos platónicos a questão do conhecimento das coisas terrestres,
impulsionado sem dúvida pelas discussões que o seu jovem aluno Aristóteles
(alusão a elas em Parménides
135c) coloca e abrindo-lhe o caminho, no Filebo e no Timeu, para a sua Physica.
Aristóteles critica a separação céu / terra entre as Formas ideais e as coisas
correspondentes: a essência e a substância coincidem na mesma ousia (segunda e primeira respectivamente nas Categorias), por um lado, por outro a alma não é mais inata
nem imortal, é a forma da matéria, matéria esta que individualiza o ente (hilemorfismo) a quem sucedem ‘acidentes’ (particulares). Mas
esta crítica da separação não atinge a oposição entre o inteligível a que tem
acesso a alma humana (simples) e o sensível do seu corpo (composto), sendo por
este que começa todo o conhecimento no De anima, dos órgãos dos sentidos ao intelecto pela
imaginação e donde está ausente a linguagem, o logos tão presente noutros textos; é que ela impede a
oposição inteligível / sensível (dirá Derrida), a trave mestra da diferença ontoteológica.
3. A filosofia grega oscilando entre
Platão e Aristóteles foi transmitida à Europa por via da teologia cristã, que é
textualmente filosófica (textos gnosiológicos) e ganhou a sua estrutura a
partir de Orígenes de Alexandria (185-253): o platonismo, então vigente entre
os intelectuais por razões sobremaneira espirituais, apoderou-se dos textos bíblicos de origem hebraica. Aporia
deste encontro entre gnosiológicos de essências intemporais e narrativos e
históricos com fundo mitológico reformulado, entre a ‘catolicidade’, o universal
acima das línguas e usos
antropológicos particulares, e o carácter histórico da ‘salvação’ (vida e morte de Jesus), aporia que
se inscreve assim na oposição inteligível / sensível, o que implicará na
teologia de Orígenes (e até ao Aquino) a redução do sensível (e do narrativo
corporal, conservado nas leituras litúrgicas) pelo inteligível da alma, só este
sendo digno do Deus celeste grego, inteiramente separado do terrestre dos
humanos que não conhece (Platão, Plotino), mas que veio a misturar-se com o
Deus bíblico, interveniente na história e conhecedor do íntimo de cada humano,
do singular de cada coisa, de cada passarinho. Na diferença céu / terra
partilhada por Gregos e Judeus, repete-se a relação vertical de Platão entre as
Formas ideais e as coisas suas cópias, mas agora como relação entre um tal
Criador omnisciente e omnipotente e cada uma das suas criaturas: ontoteologia no seu maior esplendor, ‘esmagadora’ num
Agostinho de Hipona (354-420). A substituição (de grande parte) de Platão por
Aristóteles na obra de Tomás de Aquino (1225-1274) reformula a relação
criatural, elevando a ‘matéria’ (hulê) como “criação boa” (Génesis, cap. 1) e valorizando em consequência a temporalidade e a autonomia
relativa das criaturas na sua causalidade horizontal (Physica de Aristóteles), o Criador respeitando as suas
essências ao criar-lhes a existência, respeitando mormente a capacidade de
conhecimento e de decisão moral livre dos humanos (o que tornará possível quer
o laboratório científico do século XVII quer a filosofia da história do XIX).
Guilherme de Occam (1285-1349), que se opõe ao poder temporal da Igreja,
critica a essencialidade ‘in re’ aristotélica e contrapõe-lhe o carácter
singular de cada coisa, de cada humano (com um argumento ontoteológico: Deus
conhece os singulares sem intermédio das essências) e justapõe o conhecimento
por nomes (mentais) às coisas singulares, reabilitando implicitamente o papel
do narrativo. Assinale-se de passagem que os Gregos clássicos não traduzem,
donde, como Heidegger explicou, que Platão e Aristóteles não pensam ‘por conceitos’,
no logos a língua grega não se
dissociando do pensamento; só com a tradução em outras línguas, latim e não só,
é que será introduzido o motivo do signo, com o lekton incorporal (o significado das palavras), além do
nome (honoma) e da coisa (pragma). O latim medieval funcionando como língua
universitária, apenas com Occam se fará a repartição conceptual que
transformará a diferença ontoteológica. Ele abre assim o futuro debate entre
racionalistas e empiristas do sec. XVII, os primeiros acentuando platonicamente
o papel de Deus no conhecimento (ideias inatas, ocasionalismo, monadologia), os
segundos tendendo a despedi-lo, propondo que ao conhecimento só se chega
partindo aristotelicamente dos sentidos, como Kant consumará, após a
reviravolta que Hume opera: da alma que se posiciona verticalmente diante de Deus ao sujeito voltado para o mundo, seguindo a abertura da nova
física de Newton.
4. Se for verdade que foi Descartes
(1596-1650) quem ‘inventou’ a ideia moderna, fê-lo mantendo a substancialidade do inteligível (res cogitans) e a do sensível (res extensa), o pensamento que ‘eu sou’, por um lado, e, por
outro, o corpo, lugar, mundo, que posso ‘fingir’ que não tenho. Vamos então à
reviravolta que Kant (1724-1804) opera da diferença ontoteológica, numa filosofia
que depende de Newton (cuja mecânica rebate o cepticismo de Hume) e alia a
racionalidade (de inspiração platónica, geométrica) dos sujeitos com a
empiricidade (de inspiração aristotélica, laboratorial) dos fenómenos, mas
estes já sob elaboração daqueles pelas famosas sínteses a priori (primeiro das
formas de espaço e de tempo, dos conceitos em seguida). Deixando de lado o
papel da linguagem (os signos são assinalados de raspão por trás dos conceitos
do entendimento), ele pode ultrapassar, ao nível da razão (pura) do
conhecimento, a oposição entre sujeito e objecto (sem dúvida pela implicitação
do laboratorial newtoniano na matriz da crítica), mas é para a deslocar para a
relação entre o fenómeno conhecido (que terá que passar pela definição no entendimento)
e o númeno desconhecido, como quem mantém a diferença entre a essência
aristotélica e as coisas concretas em seus acidentes não susceptíveis de ‘ciência’.
Portanto, a história não sendo ainda científica, a aporia ontoteológica mantém-se
na ‘pureza’ da razão que define: sem mãos (a razão prática e a estética são
outras regiões) nem corpo nem mundo nem linguagem, onde a descendência
cartesiana se diz (a alma em Kant, embora sem papel no conhecimento
especulativo, também permanece ‘simples’). Mas é nele que melhor se percebe o
papel da representação – da sensação à ideia – do objecto no sujeito (sem
linguagem tão pouco, como se assinalou na ‘psicologia’ aristotélica): é de
jogos de transformação das representações que se ocupam as sínteses a priori.
5. Deslocada para o fenómeno / númeno
a diferença-oposição inteligível / sensível do sujeito / objecto (aquele sendo
tal que não há já objecto senão antecipado por ele, nem este sem sensações daquele
antecipadamente sintetizadas), encontra-se uma nova forma da diferença
ontoteológica que estará na raiz das futuras fenomenologias, a diferença
fenomenológica entre o aparecer em que consiste o ‘fenómeno’ dado à intuição da
sensibilidade e a coisa empírica aparecendo, que existe mas não é conhecida, que seria o
‘númeno’. Do ponto de vista da sua posterioridade filosófica, estará aqui uma
novidade decisiva do kantismo, onde se alojou a diferença ontoteológica entre o
inteligível e o sensível, correlativa aliás da que há entre o entendimento e a
sensibilidade (o conhecimento tem que passar pelo sensível particular de tal
coisa, como em Aristóteles pelos acidentes, como condição de aceder ao
inteligível, conceito ou essência). Em toda esta história, que continuará, é
sempre o corpo ‘composto’ que ‘objecta’ ao sujeito ou à consciência, herdeiros
da ‘simples’ alma. Donde vem então esta nova formulação da diferença ontoteológica
entre o inteligível e o sensível que reata com Aristóteles? Sem ter a certeza de
que se possa argumentar com os textos, creio que ela vem (sem se explicitar
muito provavelmente, senão há muito que isso seria sabido) da física de Newton,
de quem Kant depende estruturalmente, como foi demonstrado por Jules Vuillemin.
Quero crer, como tentei dizer noutros textos, que o laboratório da física
newtoniana corresponde à maneira como uma equação física, pertencendo a uma
teoria do conhecimento de “filosofia natural”, tem que separar do contexto da cena da chamada realidade (como em
filosofia faz a definição) um
dado ‘fenómeno’ como teste experimental e objecção, experiência esta que
consiste na realização dum dado movimento entre duas posições no espaço e no
tempo e nas respectivas medições técnicas, estas vindo preencher as variáveis
dessa equação, resolvendo-a. Só que esta experimentação laboratorial não está
agora ao serviço de definições de essências (que continuam a ser necessárias
para o labor da teoria) mas sim do estabelecimento de correlações mensuráveis
entre algumas das dimensões físicas dos fenómenos assim trazidos a essa
experimentação. O facto de essas medidas postularem o consenso científico de
unidades convencionadas (hoje aceites universalmente), como espectacularmente
faltava na primeira grande experiência de Galileu que ‘mediu’ o tempo em
unidades de peso de água, mostra que o que realmente se conhece nos laboratórios
de física são as “diferenças e proporções” (Galileu) entre os resultados das
experiências verificando as equações (em qualquer laboratório que as repita), e
não as ‘substâncias’ relativas às dimensões medidas, tempo, espaço, massa, e
por aí fora. Essas diferenças e proporções geométricas (medidas) são ‘nada’ de substancial: a
empiricidade experimental, indispensável já que sem ela não há conhecimento
físico nenhum, não intervém neste directamente, é reduzida pelo trabalho matemático da física. A Física
de Galileu, Newton e tantos outros sábios do sec. XVII é a primeira forma de
conhecimento na história do Ocidente que escapa à diferença ontoteológica: nem Deus nem sujeito conhecedor nem objecto
corporal intervêm no conhecimento produzido enquanto tal; os próprios conceitos
teóricos, indispensáveis ao funcionamento do laboratório, à determinação das
experimentações a fazer, continuarão a ser caso de discussão entre cientistas,
de reformulação teórica, sem que tal afecte a cientificidade, ao contrário do
que sucede, por exemplo, com o alcance técnico dos instrumentos de medida (raiz
da diferença entre as físicas de Newton e de Einstein). Na matriz da critica da
razão pura, a diferença entre o fenómeno e o númeno será a resultante
filosófica deste estatuto laboratorial da física, mas em discurso de linguagem
duplamente articulada e sem se interrogar sobre o estatuto escritorial desta.
Na física, como veremos, foi expulsa a diferença onteológica do laboratório
(entre teoria e experiência, por exemplo, indissociáveis nos paradigmas de
Kuhn) mas ela manter-se-á entre ele e a cena da ‘realidade’.
6. Conhecendo mal Hegel (1770-1831),
limitar-me-ei a um ponto. Vindo após a manifestação da revolução francesa e
contemporâneo dos começos da revolução industrial, isto é da aceleração da
‘história’, reino do particular e do acidental desde Aristóteles, ele pega
frontalmente em mãos a aporia da teologia cristã introduzindo a história numa
filosofia que se quer busca de saber absoluto, portanto universal. Mas em vez
de pensar o papel da técnica nessa aceleração, da técnica que se manifestará
como histórica, construída máquina após máquina, e se introduzirá
universalmente nas diversas sociedades humanas, escapando assim à aporia e
portanto à ontoteologia (a oposição sujeito / objecto e todas as contradições
metafísicas ligadas a ela não são pertinentes para descrever a sua essência de
técnica, pelo contrário, é ela que tenderá a relativizar esses dualismos),
Hegel retoma a diferença fenomenológica para caracterizar a experiência dialéctica,
a do movimento da consciência natural ligada à coisa empírica para a
consciência de saber absoluto: esta retém o aparecer do fenómeno e desliga-o do objecto empírico aparecendo, para atingir o seu ‘ser’, de forma que o novo
objecto verdadeiro brote dela e nela, consciência (Heidegger, 1962, pp.147-8).
Se o passo da consciência ao objecto era o duma exterioridade contraditória
destinada a ser ultrapassada, esta ultrapassagem faz-se numa ‘interiorização’
que mantém o privilégio do inteligível (simples) sobre o sensível (composto)
como constitutivo do ‘absoluto’ (recuperando a teologia cristã que Kant despedira
da filosofia).
7. Husserl (1859-1938), filósofo com
formação matemática, retoma um século depois de Hegel a diferença
fenomenológica mas mais perto da
preocupação kantiana com as ciências exactas, já não a física mas a mais ‘pura’
matemática, retomando assim a problemática
grega aquém do laboratório. A diferença em relação a Kant é ínfima, mas capital
(Paisana): não parte do disperso caótico das sensações que levará a caminhada
de Kant para a ‘unidade’ mais alta, síntese por síntese, mas da intuição
sensível dum objecto que permanece o mesmo durante as várias percepções que se
lhe podem fazer e permitirão a intuição categorial que diz que ‘este objecto é
tal’: do sensível ao entendimento, intervém o ‘ser’ que permite a cópula do
juízo ‘é’ e a linguagem em que este se manifesta. As análises fenomenológicas
consequentes far-se-ão de actos imanentes à consciência, a qual não se opõe ao
objecto visto que, não substancial, só é consciência por ser consciência de qualquer coisa, em sua estrutural
intencionalidade: o sentido do objecto enquanto tal objecto é visado pela intenção significativa da consciência, duma forma que se diria de antecipação a priori sem as
formas transcendentais kantianas. Só que ‘consciência’ e ‘objecto’ como
correlato à partida significa a ontoteologia, com o lugar do ‘theos’ ocupado pelo
sujeito em posição monoteísta, de absoluto (desde o cogito), pressupondo a definição que arranca o objecto
ao seu contexto, ao seu mundo, arrancado também o sujeito na descendência
filosófica da alma: é esta a crítica da ruptura de Heidegger em Ser e Tempo, que se manifestou, a seus olhos, no recuo em
relação às Investigações lógicas que foi a relativa aproximação de Husserl a Descartes, após ter feito a redução
fenomenológica da empiricidade
mundana do objecto aparecendo
para reter a fenomenalidade do seu aparecer, a diferença fenomenológica; foi o ter mantido a
exterioridade do mundo e da linguagem que tornou possível esse ‘recuo’ até
Descartes. Heidegger (1889-1976) largará
Husserl em direcção ao mundo e ao Ser, Derrida retomará a sua redução mas aplicando-a
à linguagem, completando o que Heidegger não ‘acabou’.
8. Tudo isto é dito em forma de
resumo, que pouco acrescento ao que com mais detalhe escrevi em textos mais
extensos[3].
O ser no mundo de Ser e
Tempo (1927) é o retorno
filosófico ao mundo dos humanos, donde a definição o arrancara como ‘alma’ que
contemplou ou conhece essências intemporais; mas não retorno aquém da
filosofia, à literatura por exemplo, às narrativas ou às conversas, pois que o
humano, dito com o termo clássico em alemão filosófico Dasein, o existente presente aí no mundo, é pensado como
ente temporal que cuida do seu mundo e interroga o sentido do seu ser (sem alma
nem deus nem definição); segundo o gesto primeiro da filosofia grega que
define, indaga-se não da sua ‘causa’ (que seriam os seus progenitores, se se
tratasse de biologia ou de antropologia) mas da sua ‘origem’, e esta será dita doação
do Ser, em que o ‘poder’ dessa
doação se dissimula, se retira, para deixar ser o ente. É o que elaborará como diferença
ontológica entre Ser e entes ao
longo de três dezenas e meia de anos, diferença entre o Ser como Nada de ente
que dá entes temporais, até que a conferência Tempo e Ser (1962) substitua o Ser doador pelo Ereignis, Nada de Acontecimento que, ao nível ontológico
da diferença, faz doação dos acontecimentos ônticos, retirando a sua força para
deixá-los ser, acontecimentos entre entes com tempo e ser. Leitor de Nietzsche,
de Parménides e Heraclito, todos aquém da definição, e também de Aristóteles
que des-escolasticiza, restituindo-o como pensador da Physica, relê os momentos principais da história do Ser,
da história do pensamento filosófico ocidental, soletrando etimologias gregas e
do antigo alemão, não em filólogo mas em pensador que revisita as palavras para
as pôr a repensar para nós, uma história assim das ‘palavras’ e não dos
‘conceitos’. Mas também não (ou quase não) pensador dos textos, e é onde se
pode entender o limite que não conseguiu ultrapassar da sua fabulosa tentativa,
a medir-se com Platão e Aristóteles como ninguém ousara nunca e ainda hoje
raros terão entendido. Heidegger reintroduziu a linguagem, já em Ser e Tempo mas aí de forma hesitante, namorou-a o tempo todo
como “a casa do ser”, aonde inteligível e sensível não são já susceptíveis de
oposição (só há ‘ser’ pensado, como queria Parménides), mas quer-me parecer que
nunca conseguiu que ela interviesse no pensamento de forma a inquietá-lo, e terá sido por isso que
o Dasein, ser no mundo, não chega
nunca a despegar-se da figura ontoteológica do ‘sujeito’, não chega nunca a ser
biológico (mortal que não é nunca definido como vivo, ironiza algures Derrida),
não chega nunca a alimentar-se (é no entanto o ponto mais forte do ‘cuidado’!)
nem a ter que aprender a usar
os usos do mundo e a sua fala, não se desprende do cordão umbilical de forma a
ser constituído (biologicamente) pela Terra e instituído (socialmente) pelo Mundo,
para usar as duas categorias da Origem da obra de arte. Pensador das palavras do pensamento e não dos
seus textos escritos, Heidegger ficou na borda exterior da metafísica,
escreverá Derrida no texto de 1966 sobre Lévi-Strauss (La structure, le
signe et le jeu dans le discours des sciences humaines) que o deu a conhecer aos Estados Unidos e em
França como crítico do estruturalismo, da sua figura principal.
9. Derrida (1930-2004) entrou em
filosofia por uma porta que fora fechada por Platão e nunca contestada
porventura antes de Maurice Blanchot (1907-2003), a porta do texto escrito, que
é o da sua tradição de geração em geração e por vezes saltando muitas gerações
sem leitores à altura. O que poderia parecer um tema ‘local’, após muitos
outros que vinte e cinco séculos de filosofia foram tratando, pensando,
discutindo, um tema relativo a um instrumento, uma técnica de linguagem,
revelar-se-á um dispositivo de desconstrução da história do pensamento
ocidental e das suas instituições que não deixará pedra sobre pedra, nenhum
pensador tranquilo na sua maneira herdada de pensar e escrever: porque é enfim
o ‘sujeito’ que é desalojado da sua casa tradicional, razão da hostilidade
quase unânime que levantaram contra ele filósofos de todo o calibre. Qual é a
diferença entre a linguagem oral e a escrita alfabética? Irredutível: uma na
intimidade de quem pensa, em categorias linguísticas (da sua língua) e podendo
nem sequer dizer sons, a outra imediatamente susceptível de publicidade,
desligando-se de quem a escreveu, permanecendo inclusive após a sua morte. Mas
susceptíveis da mesma gramática (historicamente, a linguística, relativa embora
ao oral, foi tratada como gramática, como escrita) e ambas aprendidas de fora,
do mundo em que se nasce e como condição de se vir a ser ‘ser no mundo’. O que
Heidegger sempre soube sem dúvida mas sem o saber, linguagem e pensamento são
‘instituídos’ por aprendizagem vinda do mundo, o Dasein tornando-se ser no mundo (por aprendizagem do
cuidado de outros usos também). Sem o dizer assim, é o que resulta do principal
gesto de De la grammatologie
(1967, p. 90ss), cruzando simultaneamente Saussure (“na língua não há senão
diferenças, sem termos positivos”, os sons e portanto as grafias não fazem
parte das línguas), Heidegger (a temporalidade dos seres no mundo que falam) e
Husserl (a redução fenomenológica do aparecendo para não reter senão o seu aparecer fenomenal). Aplicando a redução aos sons da fala, da voz,
retêm-se as diferenças entre eles que na voz são necessariamente temporais,
sucessivos linearmente, permitindo diagnosticar a diferença, já de si espacial,
como também temporal – différance, escreve introduzindo o tempo que joga em ‘différer’ (diferir: ser diferente e adiar) –, como relação
ao outro (que se escuta, à voz de quem a redução se aplica) e como inscrevendo
uma voz inédita que de escutas assim aparece a falar (a fala – voz e discurso
ao mesmo tempo – supõe ter sido inscrita: a escrita como origem da linguagem).
Quando distinguir como enigma da différance uma economia e um excesso indissociáveis (Margens.
Da Filosofia, texto sobre a différance), será possível dizer como a aprendizagem da fala
se faz pela economia estrutural espácio-temporal que dum vai a outro de dois
falantes com redução das vozes respectivas como excesso singular dessas
economias, economia como língua social, excesso como fala individual, indissociáveis e inconciliáveis. Neste enigma da aprendizagem da linguagem, em que o que é recebido passivamente é simultaneamente activo como falante, reside então a différance como ‘solução’ da diferença ontoteológica entre o
sensível e o inteligível. A linguagem (e não só, veremos), sendo constituída
por diferenças de vozes
sensíveis, não é sensível (tal como a diferença entre cores não é uma cor), mas
sendo diferenças de vozes sensíveis, não é também inteligível; sendo diferença entre compostos não é composta
mas também não é simples. A linguagem é o que, desde o Crátilo, resiste a esta oposição tenaz, o inteligível pensamento constituído por diferenças entre audíveis, sensíveis palavras. Ora, com a aprendizagem como prévia ao
ente humano, é o mundo (e não já apenas o ‘ser’), o que denominarei ‘cena’, que
é prévio ao ‘ser no mundo’.
10. As coisas definidas e os sujeitos
que as definiam para as pensarem no seu eidos, com primado da visão que vê formas, aspectos,
mostram como a chamada realidade foi sempre a da sua mútua exterioridade, cada
coisa e cada sujeito ‘já lá’, na sua integridade, face a face: a diferença
ontoteológica é esta exterioridade, o privilégio do dentro
sobre o fora. A representação
do objecto no sujeito, percepção, conceito, ideia, supõe essa exterioridade que
é a nossa evidência espontânea: as coisas e os outros fora de nós, o nosso ‘eu’
como consciência íntima desse ‘fora de nós’ e simultaneamente consciência de
nós. Como se estivéssemos sempre a partir do zero do que vemos, sempre a ver
pela primeira vez. Mas basta ver um filme sobre uma sociedade asiática ou
africana, ou sobre Rio de Onor, para se perceber que não se percebe quase nada
desses mundos estranhos, quase como se fosse uma língua estrangeira: ouve-se e
não se entende, vê-se e não se percebe, estranha-se. O que significa que é necessário
ter já visto para perceber, ter ouvido já para entender. Foi aliás o que Kant,
que nunca saiu de Köningsberg, pretendeu resolver com as suas sínteses a
priori. A tão difícil de descobrir ‘memória’ para os neurologistas (que
continuam a não querer saber dos grafos que genialmente Changeux propôs[4])
resulta da aprendizagem e é condição do ser no mundo de qualquer animal: as coisas
que vemos, as pessoas que amamos, só as vemos e amamos porque já em nós a
verem-se e amarem-se. Mas a différance (ou trace, suplemento,
duplo laço) de Derrida vai além desta possibilidade do face a face de seres no
mundo, permite, em aliança com algumas descobertas científicas do século XX
(como com a linguística acima), indagar das géneses e desenvolvimentos
temporais dos vivos, das sociedades, das respectivas histórias e das dos
textos, que tudo releva de excessos singulares sobre economias que se
repetem, doadas de maneira
retirada que deixa economias e excessos serem em seus percursos aleatórios de vida que aprenderam a regular. O que mais me
resistiu enquanto leitor de Derrida, diga-se para prevenir possíveis desânimos,
foi a maneira como leu textos de literatura de vanguarda do século passado.
11. O próximo passo a dar diz respeito às
incidências desta história da diferença filosófica nas diversas ciências, como
estas guardam obstáculos epistemológicos nelas deste passado de oposição entre
sujeito e objecto, entre teoria e experiência que Kuhn ultrapassou. Seja uma
lista de exemplos filosóficos e científicos de predomínios ontoteológicos, como
o da definida essência sobre o contexto donde foi retirada. O ente predomina
sobre o Ser que o dá (seja a phusis ou natureza, o mundo, o social); o planeta sobre o campo das forças da gravidade; o indivíduo,
vegetal ou animal, sobre a sua espécie, esta sobre o seu género, o indivíduo biológico
sobre a lei da selva, o cérebro biológico dos humanos sobre a tribo que o instituiu,
inscrevendo nele os seus usos; o indivíduo humano sobre a sua família e
sociedade (que não existe, dizia M. Thatcher); a palavra sobre a frase, esta
sobre o texto (de que é parte), este sobre o contexto que o produziu e de que
se destacou. Como se a configuração Deus / alma / definição (ou sujeito / objecto) fosse o pólo
solar, monoteísta, que ilumina cada ente, o elucida, esquecendo o campo
‘terrestre’ que o dá, o que Heidegger chamará Ereignis no final da sua obra: a ontoteologia é o
predomínio do ‘vertical’ sobre o ‘horizontal’ (como do ‘dentro’ sobre o ‘fora’).
12. Qual é a originalidade do passo de Le Jeu des
Sciences avec Heidegger
et Derrida, em relação à gramatologia
deste último? Foi o de ter trazido o motivo do duplo laço, que o pensador francês deslindou lendo
gramatologicamente textos de Hegel, Genet e Freud mas que aplicou apenas a
questões de ética e política, que o preocuparam sobretudo nas suas duas últimas
décadas de escrita, tê-lo trazido ao domínio gramatológico que é o das
ciências, tendo em conta a maneira como estas, tendo inventado o laboratório, não souberam ou não puderam sair dele para terem
em consideração a cena do mundo aonde tinham ido buscar os fenómenos que
analisaram[5].
Ora, o que assim se introduziu como possibilidade de reformular a fenomenologia
foi a questão do movimento,
que estava no coração da Physica de Aristóteles, e que a viragem heideggeriana e derridiana permitia
inverter: as diferenças
antes das substâncias. Haverá
pois que procurar relacionar
este duplo laço com a inicial différance e com a trace. O leitor português terá vantagem em ler primeiro um apanhado dessa obra, o Manifesto (http://filosofiamaisciencias.blogspot.com).
[1] É o que o personagem Parménides no
diálogo com o mesmo nome censura ao jovem Sócrates, jovem de mais.
[2] Veremos como ‘razão’ moderna desta diferença (não necessariamente da
‘oposição’) a irredutibilidade que há entre a abordagem neurológica do cérebro,
dos seus neurónios e sinapses, e a abordagem do discurso pela psicanálise e
outras psicologias, ou ainda entre os neurónios acessíveis à aparelhagem do
laboratório e a ‘internalidade’ deles, segundo Damásio apenas acessível ao
próprio animal.
[3] 1ª parte do
capítulo 13 de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, retomada integralmente na 3ª
parte de La Philosofia avec Sciences au XXe siècle.
[4] Sem todavia parecer ter tirado ele próprio todas as conclusões dessa
proposta, como se percebe dos diálogos que travou com Ricœur e com o
matemático A. Connes. Voltaremos à questão com o neurólogo Randel.
[5] Foi aliás a consideração das cinco principais descobertas científicas do
século XX, iluminadas pelo duplo laço, que me pôs na pista, apenas os anos de
escrita daquele texto me tendo permitido lentamente dar-me conta do alcance do
que fazia, que, pela força dos grandes que lia, foi muito mais longe do que eu
poderia ter alguma vez presumido. Como testemunhas, dois textos provisórios que
escrevi e o que neles permanece de insatisfatório.
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