quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Breve história da diferença, de Platão a Derrida




1. Tentarei apresentar esta questão em algumas das suas ocorrências históricas num breve resumo, a partir do que se pode chamar a diferença ontoteológica. Diria que esta consiste na diferença e oposição entre o inteligível e o sensível, nomeadamente na alma oposta ao corpo e ao mundo no platonismo, e na correlação directa entre ambos com exclusão do contexto, do mundo. Supondo ainda a diferença entre o céu e a terra que só o heliocentrismo de Copérnico e Galileu veio dissipar, ela resulta inevitavelmente da definição, só terminando com o ser no mundo. De Heraclito não sei, mas a oposição entre o Ser e o não ser de Parménides, entre o que dura eternamente e o corruptível terrestre, é sem dúvida parte da herança de Platão que ‘aplica’, digamos, a definição ao celeste, discernindo as suas famosas Formas ideais (Eidê) como eternas[1], por um lado, e indo, por outro, tomar a outras tradições o motivo de alma imortal, que as contemplou antes de tomar corpo. Então a diferença e oposição entre o inteligível e o sensível está colocada e estará para durar: a alma é simples, nem gerada nem mortal, em oposição ao corpo composto, entre geração e corrupção[2]. E a linguagem – dispensada do conhecimento das coisas no Crátilo, inadequada enquanto aprendida no Ménon que apela à reminiscência para o saber espontâneo do jovem escravo – também está deste lado do terrestre.
2. A herança de Parménides será colocada em causa no célebre parricídio do Sofista, na sequência do Teeteto que põe pela primeira vez na cronologia dos diálogos platónicos a questão do conhecimento das coisas terrestres, impulsionado sem dúvida pelas discussões que o seu jovem aluno Aristóteles (alusão a elas em Parménides 135c) coloca e abrindo-lhe o caminho, no Filebo e no Timeu, para a sua Physica. Aristóteles critica a separação céu / terra entre as Formas ideais e as coisas correspondentes: a essência e a substância coincidem na mesma ousia (segunda e primeira respectivamente nas Categorias), por um lado, por outro a alma não é mais inata nem imortal, é a forma da matéria, matéria esta que individualiza o ente (hilemorfismo) a quem sucedem ‘acidentes’ (particulares). Mas esta crítica da separação não atinge a oposição entre o inteligível a que tem acesso a alma humana (simples) e o sensível do seu corpo (composto), sendo por este que começa todo o conhecimento no De anima, dos órgãos dos sentidos ao intelecto pela imaginação e donde está ausente a linguagem, o logos tão presente noutros textos; é que ela impede a oposição inteligível / sensível (dirá Derrida), a trave mestra da diferença ontoteológica.
3. A filosofia grega oscilando entre Platão e Aristóteles foi transmitida à Europa por via da teologia cristã, que é textualmente filosófica (textos gnosiológicos) e ganhou a sua estrutura a partir de Orígenes de Alexandria (185-253): o platonismo, então vigente entre os intelectuais por razões sobremaneira espirituais, apoderou-se dos textos bíblicos de origem hebraica. Aporia deste encontro entre gnosiológicos de essências intemporais e narrativos e históricos com fundo mitológico reformulado, entre a ‘catolicidade’, o universal acima das línguas e usos antropológicos particulares, e o carácter histórico da ‘salvação’ (vida e morte de Jesus), aporia que se inscreve assim na oposição inteligível / sensível, o que implicará na teologia de Orígenes (e até ao Aquino) a redução do sensível (e do narrativo corporal, conservado nas leituras litúrgicas) pelo inteligível da alma, só este sendo digno do Deus celeste grego, inteiramente separado do terrestre dos humanos que não conhece (Platão, Plotino), mas que veio a misturar-se com o Deus bíblico, interveniente na história e conhecedor do íntimo de cada humano, do singular de cada coisa, de cada passarinho. Na diferença céu / terra partilhada por Gregos e Judeus, repete-se a relação vertical de Platão entre as Formas ideais e as coisas suas cópias, mas agora como relação entre um tal Criador omnisciente e omnipotente e cada uma das suas criaturas: ontoteologia no seu maior esplendor, ‘esmagadora’ num Agostinho de Hipona (354-420). A substituição (de grande parte) de Platão por Aristóteles na obra de Tomás de Aquino (1225-1274) reformula a relação criatural, elevando a ‘matéria’ (hulê) como “criação boa” (Génesis, cap. 1) e valorizando em consequência a temporalidade e a autonomia relativa das criaturas na sua causalidade horizontal (Physica de Aristóteles), o Criador respeitando as suas essências ao criar-lhes a existência, respeitando mormente a capacidade de conhecimento e de decisão moral livre dos humanos (o que tornará possível quer o laboratório científico do século XVII quer a filosofia da história do XIX). Guilherme de Occam (1285-1349), que se opõe ao poder temporal da Igreja, critica a essencialidade ‘in re’ aristotélica e contrapõe-lhe o carácter singular de cada coisa, de cada humano (com um argumento ontoteológico: Deus conhece os singulares sem intermédio das essências) e justapõe o conhecimento por nomes (mentais) às coisas singulares, reabilitando implicitamente o papel do narrativo. Assinale-se de passagem que os Gregos clássicos não traduzem, donde, como Heidegger explicou, que Platão e Aristóteles não pensam ‘por conceitos’, no logos a língua grega não se dissociando do pensamento; só com a tradução em outras línguas, latim e não só, é que será introduzido o motivo do signo, com o lekton incorporal (o significado das palavras), além do nome (honoma) e da coisa (pragma). O latim medieval funcionando como língua universitária, apenas com Occam se fará a repartição conceptual que transformará a diferença ontoteológica. Ele abre assim o futuro debate entre racionalistas e empiristas do sec. XVII, os primeiros acentuando platonicamente o papel de Deus no conhecimento (ideias inatas, ocasionalismo, monadologia), os segundos tendendo a despedi-lo, propondo que ao conhecimento só se chega partindo aristotelicamente dos sentidos, como Kant consumará, após a reviravolta que Hume opera: da alma que se posiciona verticalmente diante de Deus ao sujeito voltado para o mundo, seguindo a abertura da nova física de Newton.
4. Se for verdade que foi Descartes (1596-1650) quem ‘inventou’ a ideia moderna, fê-lo mantendo a substancialidade do inteligível (res cogitans) e a do sensível (res extensa), o pensamento que ‘eu sou’, por um lado, e, por outro, o corpo, lugar, mundo, que posso ‘fingir’ que não tenho. Vamos então à reviravolta que Kant (1724-1804) opera da diferença ontoteológica, numa filosofia que depende de Newton (cuja mecânica rebate o cepticismo de Hume) e alia a racionalidade (de inspiração platónica, geométrica) dos sujeitos com a empiricidade (de inspiração aristotélica, laboratorial) dos fenómenos, mas estes já sob elaboração daqueles pelas famosas sínteses a priori (primeiro das formas de espaço e de tempo, dos conceitos em seguida). Deixando de lado o papel da linguagem (os signos são assinalados de raspão por trás dos conceitos do entendimento), ele pode ultrapassar, ao nível da razão (pura) do conhecimento, a oposição entre sujeito e objecto (sem dúvida pela implicitação do laboratorial newtoniano na matriz da crítica), mas é para a deslocar para a relação entre o fenómeno conhecido (que terá que passar pela definição no entendimento) e o númeno desconhecido, como quem mantém a diferença entre a essência aristotélica e as coisas concretas em seus acidentes não susceptíveis de ‘ciência’. Portanto, a história não sendo ainda científica, a aporia ontoteológica mantém-se na ‘pureza’ da razão que define: sem mãos (a razão prática e a estética são outras regiões) nem corpo nem mundo nem linguagem, onde a descendência cartesiana se diz (a alma em Kant, embora sem papel no conhecimento especulativo, também permanece ‘simples’). Mas é nele que melhor se percebe o papel da representação – da sensação à ideia – do objecto no sujeito (sem linguagem tão pouco, como se assinalou na ‘psicologia’ aristotélica): é de jogos de transformação das representações que se ocupam as sínteses a priori.
5. Deslocada para o fenómeno / númeno a diferença-oposição inteligível / sensível do sujeito / objecto (aquele sendo tal que não há já objecto senão antecipado por ele, nem este sem sensações daquele antecipadamente sintetizadas), encontra-se uma nova forma da diferença ontoteológica que estará na raiz das futuras fenomenologias, a diferença fenomenológica entre o aparecer em que consiste o ‘fenómeno’ dado à intuição da sensibilidade e a coisa empírica aparecendo, que existe mas não é conhecida, que seria o ‘númeno’. Do ponto de vista da sua posterioridade filosófica, estará aqui uma novidade decisiva do kantismo, onde se alojou a diferença ontoteológica entre o inteligível e o sensível, correlativa aliás da que há entre o entendimento e a sensibilidade (o conhecimento tem que passar pelo sensível particular de tal coisa, como em Aristóteles pelos acidentes, como condição de aceder ao inteligível, conceito ou essência). Em toda esta história, que continuará, é sempre o corpo ‘composto’ que ‘objecta’ ao sujeito ou à consciência, herdeiros da ‘simples’ alma. Donde vem então esta nova formulação da diferença ontoteológica entre o inteligível e o sensível que reata com Aristóteles? Sem ter a certeza de que se possa argumentar com os textos, creio que ela vem (sem se explicitar muito provavelmente, senão há muito que isso seria sabido) da física de Newton, de quem Kant depende estruturalmente, como foi demonstrado por Jules Vuillemin. Quero crer, como tentei dizer noutros textos, que o laboratório da física newtoniana corresponde à maneira como uma equação física, pertencendo a uma teoria do conhecimento de “filosofia natural”, tem que separar do contexto da cena da chamada realidade (como em filosofia faz a definição) um dado ‘fenómeno’ como teste experimental e objecção, experiência esta que consiste na realização dum dado movimento entre duas posições no espaço e no tempo e nas respectivas medições técnicas, estas vindo preencher as variáveis dessa equação, resolvendo-a. Só que esta experimentação laboratorial não está agora ao serviço de definições de essências (que continuam a ser necessárias para o labor da teoria) mas sim do estabelecimento de correlações mensuráveis entre algumas das dimensões físicas dos fenómenos assim trazidos a essa experimentação. O facto de essas medidas postularem o consenso científico de unidades convencionadas (hoje aceites universalmente), como espectacularmente faltava na primeira grande experiência de Galileu que ‘mediu’ o tempo em unidades de peso de água, mostra que o que realmente se conhece nos laboratórios de física são as “diferenças e proporções” (Galileu) entre os resultados das experiências verificando as equações (em qualquer laboratório que as repita), e não as ‘substâncias’ relativas às dimensões medidas, tempo, espaço, massa, e por aí fora. Essas diferenças e proporções geométricas (medidas) são ‘nada’ de substancial: a empiricidade experimental, indispensável já que sem ela não há conhecimento físico nenhum, não intervém neste directamente, é reduzida pelo trabalho matemático da física. A Física de Galileu, Newton e tantos outros sábios do sec. XVII é a primeira forma de conhecimento na história do Ocidente que escapa à diferença ontoteológica: nem Deus nem sujeito conhecedor nem objecto corporal intervêm no conhecimento produzido enquanto tal; os próprios conceitos teóricos, indispensáveis ao funcionamento do laboratório, à determinação das experimentações a fazer, continuarão a ser caso de discussão entre cientistas, de reformulação teórica, sem que tal afecte a cientificidade, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o alcance técnico dos instrumentos de medida (raiz da diferença entre as físicas de Newton e de Einstein). Na matriz da critica da razão pura, a diferença entre o fenómeno e o númeno será a resultante filosófica deste estatuto laboratorial da física, mas em discurso de linguagem duplamente articulada e sem se interrogar sobre o estatuto escritorial desta. Na física, como veremos, foi expulsa a diferença onteológica do laboratório (entre teoria e experiência, por exemplo, indissociáveis nos paradigmas de Kuhn) mas ela manter-se-á entre ele e a cena da ‘realidade’.
6. Conhecendo mal Hegel (1770-1831), limitar-me-ei a um ponto. Vindo após a manifestação da revolução francesa e contemporâneo dos começos da revolução industrial, isto é da aceleração da ‘história’, reino do particular e do acidental desde Aristóteles, ele pega frontalmente em mãos a aporia da teologia cristã introduzindo a história numa filosofia que se quer busca de saber absoluto, portanto universal. Mas em vez de pensar o papel da técnica nessa aceleração, da técnica que se manifestará como histórica, construída máquina após máquina, e se introduzirá universalmente nas diversas sociedades humanas, escapando assim à aporia e portanto à ontoteologia (a oposição sujeito / objecto e todas as contradições metafísicas ligadas a ela não são pertinentes para descrever a sua essência de técnica, pelo contrário, é ela que tenderá a relativizar esses dualismos), Hegel retoma a diferença fenomenológica para caracterizar a experiência dialéctica, a do movimento da consciência natural ligada à coisa empírica para a consciência de saber absoluto: esta retém o aparecer do fenómeno e desliga-o do objecto empírico aparecendo, para atingir o seu ‘ser’, de forma que o novo objecto verdadeiro brote dela e nela, consciência (Heidegger, 1962, pp.147-8). Se o passo da consciência ao objecto era o duma exterioridade contraditória destinada a ser ultrapassada, esta ultrapassagem faz-se numa ‘interiorização’ que mantém o privilégio do inteligível (simples) sobre o sensível (composto) como constitutivo do ‘absoluto’ (recuperando a teologia cristã que Kant despedira da filosofia).
7. Husserl (1859-1938), filósofo com formação matemática, retoma um século depois de Hegel a diferença fenomenológica mas mais perto da preocupação kantiana com as ciências exactas, já não a física mas a mais ‘pura’ matemática, retomando assim  a problemática grega aquém do laboratório. A diferença em relação a Kant é ínfima, mas capital (Paisana): não parte do disperso caótico das sensações que levará a caminhada de Kant para a ‘unidade’ mais alta, síntese por síntese, mas da intuição sensível dum objecto que permanece o mesmo durante as várias percepções que se lhe podem fazer e permitirão a intuição categorial que diz que ‘este objecto é tal’: do sensível ao entendimento, intervém o ‘ser’ que permite a cópula do juízo ‘é’ e a linguagem em que este se manifesta. As análises fenomenológicas consequentes far-se-ão de actos imanentes à consciência, a qual não se opõe ao objecto visto que, não substancial, só é consciência por ser consciência de qualquer coisa, em sua estrutural intencionalidade: o sentido do objecto enquanto tal objecto é visado pela intenção significativa da consciência, duma forma que se diria de antecipação a priori sem as formas transcendentais kantianas. Só que ‘consciência’ e ‘objecto’ como correlato à partida significa a ontoteologia, com o lugar do ‘theos’ ocupado pelo sujeito em posição monoteísta, de absoluto (desde o cogito), pressupondo a definição que arranca o objecto ao seu contexto, ao seu mundo, arrancado também o sujeito na descendência filosófica da alma: é esta a crítica da ruptura de Heidegger em Ser e Tempo, que se manifestou, a seus olhos, no recuo em relação às Investigações lógicas que foi a relativa aproximação de Husserl a Descartes, após ter feito a redução fenomenológica da empiricidade mundana do objecto aparecendo para reter a fenomenalidade do seu aparecer, a diferença fenomenológica; foi o ter mantido a exterioridade do mundo e da linguagem que tornou possível esse ‘recuo’ até Descartes. Heidegger  (1889-1976) largará Husserl em direcção ao mundo e ao Ser, Derrida retomará a sua redução mas aplicando-a à linguagem, completando o que Heidegger não ‘acabou’.
8. Tudo isto é dito em forma de resumo, que pouco acrescento ao que com mais detalhe escrevi em textos mais extensos[3]. O ser no mundo de Ser e Tempo (1927) é o retorno filosófico ao mundo dos humanos, donde a definição o arrancara como ‘alma’ que contemplou ou conhece essências intemporais; mas não retorno aquém da filosofia, à literatura por exemplo, às narrativas ou às conversas, pois que o humano, dito com o termo clássico em alemão filosófico Dasein, o existente presente aí no mundo, é pensado como ente temporal que cuida do seu mundo e interroga o sentido do seu ser (sem alma nem deus nem definição); segundo o gesto primeiro da filosofia grega que define, indaga-se não da sua ‘causa’ (que seriam os seus progenitores, se se tratasse de biologia ou de antropologia) mas da sua ‘origem’, e esta será dita doação do Ser, em que o ‘poder’ dessa doação se dissimula, se retira, para deixar ser o ente. É o que elaborará como diferença ontológica entre Ser e entes ao longo de três dezenas e meia de anos, diferença entre o Ser como Nada de ente que dá entes temporais, até que a conferência Tempo e Ser (1962) substitua o Ser doador pelo Ereignis, Nada de Acontecimento que, ao nível ontológico da diferença, faz doação dos acontecimentos ônticos, retirando a sua força para deixá-los ser, acontecimentos entre entes com tempo e ser. Leitor de Nietzsche, de Parménides e Heraclito, todos aquém da definição, e também de Aristóteles que des-escolasticiza, restituindo-o como pensador da Physica, relê os momentos principais da história do Ser, da história do pensamento filosófico ocidental, soletrando etimologias gregas e do antigo alemão, não em filólogo mas em pensador que revisita as palavras para as pôr a repensar para nós, uma história assim das ‘palavras’ e não dos ‘conceitos’. Mas também não (ou quase não) pensador dos textos, e é onde se pode entender o limite que não conseguiu ultrapassar da sua fabulosa tentativa, a medir-se com Platão e Aristóteles como ninguém ousara nunca e ainda hoje raros terão entendido. Heidegger reintroduziu a linguagem, já em Ser e Tempo mas aí de forma hesitante, namorou-a o tempo todo como “a casa do ser”, aonde inteligível e sensível não são já susceptíveis de oposição (só há ‘ser’ pensado, como queria Parménides), mas quer-me parecer que nunca conseguiu que ela interviesse no pensamento de forma a inquietá-lo, e terá sido por isso que o Dasein, ser no mundo, não chega nunca a despegar-se da figura ontoteológica do ‘sujeito’, não chega nunca a ser biológico (mortal que não é nunca definido como vivo, ironiza algures Derrida), não chega nunca a alimentar-se (é no entanto o ponto mais forte do ‘cuidado’!) nem a ter que aprender a usar os usos do mundo e a sua fala, não se desprende do cordão umbilical de forma a ser constituído (biologicamente) pela Terra e instituído (socialmente) pelo Mundo, para usar as duas categorias da Origem da obra de arte. Pensador das palavras do pensamento e não dos seus textos escritos, Heidegger ficou na borda exterior da metafísica, escreverá Derrida no texto de 1966 sobre Lévi-Strauss (La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines) que o deu a conhecer aos Estados Unidos e em França como crítico do estruturalismo, da sua figura principal.
9. Derrida (1930-2004) entrou em filosofia por uma porta que fora fechada por Platão e nunca contestada porventura antes de Maurice Blanchot (1907-2003), a porta do texto escrito, que é o da sua tradição de geração em geração e por vezes saltando muitas gerações sem leitores à altura. O que poderia parecer um tema ‘local’, após muitos outros que vinte e cinco séculos de filosofia foram tratando, pensando, discutindo, um tema relativo a um instrumento, uma técnica de linguagem, revelar-se-á um dispositivo de desconstrução da história do pensamento ocidental e das suas instituições que não deixará pedra sobre pedra, nenhum pensador tranquilo na sua maneira herdada de pensar e escrever: porque é enfim o ‘sujeito’ que é desalojado da sua casa tradicional, razão da hostilidade quase unânime que levantaram contra ele filósofos de todo o calibre. Qual é a diferença entre a linguagem oral e a escrita alfabética? Irredutível: uma na intimidade de quem pensa, em categorias linguísticas (da sua língua) e podendo nem sequer dizer sons, a outra imediatamente susceptível de publicidade, desligando-se de quem a escreveu, permanecendo inclusive após a sua morte. Mas susceptíveis da mesma gramática (historicamente, a linguística, relativa embora ao oral, foi tratada como gramática, como escrita) e ambas aprendidas de fora, do mundo em que se nasce e como condição de se vir a ser ‘ser no mundo’. O que Heidegger sempre soube sem dúvida mas sem o saber, linguagem e pensamento são ‘instituídos’ por aprendizagem vinda do mundo, o Dasein tornando-se ser no mundo (por aprendizagem do cuidado de outros usos também). Sem o dizer assim, é o que resulta do principal gesto de De la grammatologie (1967, p. 90ss), cruzando simultaneamente Saussure (“na língua não há senão diferenças, sem termos positivos”, os sons e portanto as grafias não fazem parte das línguas), Heidegger (a temporalidade dos seres no mundo que falam) e Husserl (a redução fenomenológica do aparecendo para não reter senão o seu aparecer fenomenal). Aplicando a redução aos sons da fala, da voz, retêm-se as diferenças entre eles que na voz são necessariamente temporais, sucessivos linearmente, permitindo diagnosticar a diferença, já de si espacial, como também temporal – différance, escreve introduzindo o tempo que joga em ‘différer’ (diferir: ser diferente e adiar) –, como relação ao outro (que se escuta, à voz de quem a redução se aplica) e como inscrevendo uma voz inédita que de escutas assim aparece a falar (a fala – voz e discurso ao mesmo tempo – supõe ter sido inscrita: a escrita como origem da linguagem). Quando distinguir como enigma da différance uma economia e um excesso indissociáveis (Margens. Da Filosofia, texto sobre a différance), será possível dizer como a aprendizagem da fala se faz pela economia estrutural espácio-temporal que dum vai a outro de dois falantes com redução das vozes respectivas como excesso singular dessas economias, economia como língua social, excesso como fala individual, indissociáveis e inconciliáveis. Neste enigma da aprendizagem da linguagem, em que o que é recebido passivamente é simultaneamente activo como falante, reside então a différance como ‘solução’ da diferença ontoteológica entre o sensível e o inteligível. A linguagem (e não só, veremos), sendo constituída por diferenças de vozes sensíveis, não é sensível (tal como a diferença entre cores não é uma cor), mas sendo diferenças de vozes sensíveis, não é também inteligível; sendo diferença entre compostos não é composta mas também não é simples. A linguagem é o que, desde o Crátilo, resiste a esta oposição tenaz, o inteligível pensamento constituído por diferenças entre audíveis, sensíveis palavras. Ora, com a aprendizagem como prévia ao ente humano, é o mundo (e não já apenas o ‘ser’), o que denominarei ‘cena’, que é prévio ao ‘ser no mundo’. 
10. As coisas definidas e os sujeitos que as definiam para as pensarem no seu eidos, com primado da visão que vê formas, aspectos, mostram como a chamada realidade foi sempre a da sua mútua exterioridade, cada coisa e cada sujeito ‘já lá’, na sua integridade, face a face: a diferença ontoteológica é esta exterioridade, o privilégio do dentro sobre o fora. A representação do objecto no sujeito, percepção, conceito, ideia, supõe essa exterioridade que é a nossa evidência espontânea: as coisas e os outros fora de nós, o nosso ‘eu’ como consciência íntima desse ‘fora de nós’ e simultaneamente consciência de nós. Como se estivéssemos sempre a partir do zero do que vemos, sempre a ver pela primeira vez. Mas basta ver um filme sobre uma sociedade asiática ou africana, ou sobre Rio de Onor, para se perceber que não se percebe quase nada desses mundos estranhos, quase como se fosse uma língua estrangeira: ouve-se e não se entende, vê-se e não se percebe, estranha-se. O que significa que é necessário ter já visto para perceber, ter ouvido já para entender. Foi aliás o que Kant, que nunca saiu de Köningsberg, pretendeu resolver com as suas sínteses a priori. A tão difícil de descobrir ‘memória’ para os neurologistas (que continuam a não querer saber dos grafos que genialmente Changeux propôs[4]) resulta da aprendizagem e é condição do ser no mundo de qualquer animal: as coisas que vemos, as pessoas que amamos, só as vemos e amamos porque já em nós a verem-se e amarem-se. Mas a différance (ou trace, suplemento, duplo laço) de Derrida vai além desta possibilidade do face a face de seres no mundo, permite, em aliança com algumas descobertas científicas do século XX (como com a linguística acima), indagar das géneses e desenvolvimentos temporais dos vivos, das sociedades, das respectivas histórias e das dos textos, que tudo releva de excessos singulares sobre economias que se repetem, doadas de maneira retirada que deixa economias e excessos serem em seus percursos aleatórios de vida que aprenderam a regular. O que mais me resistiu enquanto leitor de Derrida, diga-se para prevenir possíveis desânimos, foi a maneira como leu textos de literatura de vanguarda do século passado.
11. O próximo passo a dar diz respeito às incidências desta história da diferença filosófica nas diversas ciências, como estas guardam obstáculos epistemológicos nelas deste passado de oposição entre sujeito e objecto, entre teoria e experiência que Kuhn ultrapassou. Seja uma lista de exemplos filosóficos e científicos de predomínios ontoteológicos, como o da definida essência sobre o contexto donde foi retirada. O ente predomina sobre o Ser que o dá (seja a phusis ou natureza, o mundo, o social); o planeta sobre o campo  das forças da gravidade; o indivíduo, vegetal ou animal, sobre a sua espécie, esta sobre o seu género, o indivíduo biológico sobre a lei da selva, o cérebro biológico dos humanos sobre a tribo que o instituiu, inscrevendo nele os seus usos; o indivíduo humano sobre a sua família e sociedade (que não existe, dizia M. Thatcher); a palavra sobre a frase, esta sobre o texto (de que é parte), este sobre o contexto que o produziu e de que se destacou. Como se a configuração Deus / alma / definição  (ou sujeito / objecto) fosse o pólo solar, monoteísta, que ilumina cada ente, o elucida, esquecendo o campo ‘terrestre’ que o dá, o que Heidegger chamará Ereignis no final da sua obra: a ontoteologia é o predomínio do ‘vertical’ sobre o ‘horizontal’ (como do ‘dentro’ sobre o ‘fora’).
12. Qual é a originalidade do passo de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, em relação à gramatologia deste último? Foi o de ter trazido o motivo do duplo laço, que o pensador francês deslindou lendo gramatologicamente textos de Hegel, Genet e Freud mas que aplicou apenas a questões de ética e política, que o preocuparam sobretudo nas suas duas últimas décadas de escrita, tê-lo trazido ao domínio gramatológico que é o das ciências, tendo em conta a maneira como estas, tendo inventado o laboratório, não souberam ou não puderam sair dele para terem em consideração a cena do mundo aonde tinham ido buscar os fenómenos que analisaram[5]. Ora, o que assim se introduziu como possibilidade de reformular a fenomenologia foi a questão do movimento, que estava no coração da Physica de Aristóteles, e que a viragem heideggeriana e derridiana permitia inverter: as diferenças antes das substâncias. Haverá pois que procurar relacionar este duplo laço com a inicial différance e com a trace. O leitor português terá vantagem em ler primeiro um apanhado dessa obra, o Manifesto (http://filosofiamaisciencias.blogspot.com).



[1] É o que o personagem Parménides no diálogo com o mesmo nome censura ao jovem Sócrates, jovem de mais.
[2] Veremos como ‘razão’ moderna desta diferença (não necessariamente da ‘oposição’) a irredutibilidade que há entre a abordagem neurológica do cérebro, dos seus neurónios e sinapses, e a abordagem do discur­so pela psicanálise e outras psicologias, ou ainda entre os neurónios acessíveis à aparelhagem do laborató­rio e a ‘internalidade’ deles, segundo Damásio apenas acessível ao próprio animal.
[3] 1ª parte do capítulo 13 de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, retomada integralmente na 3ª parte de La Philosofia avec Sciences au XXe siècle.
[4] Sem todavia parecer ter tirado ele próprio todas as conclusões dessa proposta, como se percebe dos diálo­gos que travou com Ricœur e com o matemático A. Connes. Voltaremos à questão com o neurólogo Ran­del.
[5] Foi aliás a consideração das cinco principais descobertas científicas do século XX, iluminadas pelo duplo laço, que me pôs na pista, apenas os anos de escrita daquele texto me tendo permitido lentamente dar-me conta do alcance do que fazia, que, pela força dos grandes que lia, foi muito mais longe do que eu poderia ter alguma vez presumido. Como testemunhas, dois textos provisórios que escrevi e o que neles permanece de insatisfatório.

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