1. Graças sejam dadas a Margarethe
von Trotta por este tão claro filme, tão filosófico e dramático, capaz de nos
fazer compreender uma posição filosófica célebre e discutida em livros e
artigos e que o contexto do filme ajuda a situar maravilhosamente bem. A
expressão “mal radical” é kantiana e pode-se dizer que se trata duma laicização
do motivo cristão de pecado original, já que Kant entende com esse motivo
colocar uma questão tão antiga como a ética, a duma certa tendência que se
poderá dizer inata para fazer coisas que se sabem ser más, o mal na raiz dos
nossos desejos (célebre texto da carta do apóstolo Paulo aos Romanos, 7.
15-24). Freud, que não usa a expressão de Kant tanto quanto eu sei, foi no
entanto acusado pelos marxistas pré-althusserianos de ter reintroduzido com o
seu conceito de inconsciente o ‘pecado original’ cristão. Isto para sublinhar
que se trata duma concepção relativa aos indivíduos (que Freud aliás alarga às
famílias) e não para a Shoah, o que para Kant seria inconcebível. O que Hannah
Arendt enfrenta é pois outra coisa, como ela diz na aula: o nazismo revelou uma
possibilidade de mal radical inimaginável; não se trata apenas do nível
individual mas social, em que milhares de alemães foram agentes activos dum mal
além de todo o mal. Radical então significa ‘monstruoso’ e recusa toda e
qualquer banalidade.
2. Não tendo ela podido assistir ao julgamento dos
principais nazis em Nuremberga em 1945-6 (estava havia pouco tempo nos Estados
Unidos, a adaptar-se, e era pobre para se deslocar à Europa, como o era para
ter filhos, explica no filme que quando deixou de o ser já era velha demais), o
julgamento de Eichmann oferecia-lhe a oportunidade de ver com os seus olhos, de
saber como era o ‘mal radical’ num indivíduo que fora alto responsável nazi na
eliminação dos judeus. Ora, Eichmann foi uma decepção para Hannah Arendt. O que
é que ela podia esperar? Ele não era nenhum Hitler nem nenhum Goering, um nazi
puro e duro, capaz de discutir, senão filosoficamente pelo menos politica e ideologicamente
segundo as suas convicções, as razões da “solução final”; ou alguém que se
mantivesse num silêncio desdenhoso diante dos que não seriam dignos de lhe
ouvir uma qualquer justificação. Ou então, um homem arrependido de ter
participado num genocídio, que pedisse desculpas diante dos descendentes das
suas vítimas. Esperava em suma algo que estivesse à altura, se dizer se pode,
do horror dos campos de concentração e das câmaras de gaseamento, e não um
homem incapaz de se aguentar com as suas decisões históricas para o mal.
3. O que ela ouve, o que nós ouvimos no filme que
transcreve uma parte das emissões televisivas do julgamento em que ele responde
à acusação, foi Eichmann a explicar que só cumpriu ordens, exibindo um
burocrata que discute tal e tal documento, que tem uma tarefa a cumprir
religiosamente e não sabe, não quer saber do que sabe que se passa a seguir a
tê-la cumprido, tarefa essa de encaminhar para os campos de extermínio que
pertencia a outro departamento. O que ele diz, os seus esgares e tiques,
mostram claramente a “banalidade” daquele homem que, explica H. Arendt, não
sabe distinguir o bem e o mal, para quem as ordens do Führer são a lei, um
homem que não pensa, conclui ela.
Como quem não sabe, ainda em 1961, o que fez. Este Eichmann não é ‘digno’ do
extermínio de 6 milhões de judeus (e de outros), a banalidade do mal é isso, ao
maior dos horrores bastar – além de Hitler sem dúvida – uma quantidade de
burocratas que nem sequer correspondem à noção kantiana de ‘mal radical’, já
que mais não faziam do que ‘cumprir o seu dever’ de burocratas[1].
4. Ou seja, a filósofa espanta-se, e foi esse
espanto que não foi entendido, espanta-se a partir duma elevada noção de
pensamento, e é o lugar que tem Heidegger no filme, quando numa aula a que
assiste a jovem Hannah ensina que pensamento não é conhecimento (que são as
ciências que no-lo dão), não tem incidências práticas e úteis, é dum nível
acima portanto da política também, pensar é o que caracteriza um humano em sua
dignidade. A “banalidade do mal” só se entende desde essa altura do pensamento
que Heidegger no filme patrocina de forma exemplar, me parece, M. von Trotta
(ou quem lhe fez o guião) esteve claramente à altura filosófica de Arendt. E é
o que não entendem os seus leitores que lêem o que ela escreve como a defesa de
Eichmann! Ou terá entendido Hans Jonas, o filósofo que mais me incomodou no
filme, ao cortar relações com “a aluna predilecta de Heidegger” (por ciúmes?
diz uma personagem), que terá entendido e rejeitado o que haverá de ‘corte’
entre esse elevado pensamento e as coisas triviais e banais, posição esta que
me parece merecer debate. Esta posição de privilégio do pensamento cabe bem com
a ‘desculpa’ que Heidegger dá a Hannah pela sua colaboração com o nazismo: não
tinha jeito para a política, enganou-se, foi uma ‘estupidez’, disse noutro
contexto. E porquê não te explicas publicamente? exige-lhe ela, pergunta a que
ele não responde. Nem no filme nem fora dele, foi-lhe fortemente censurado o
seu silêncio sobre o holocausto. A meu ver, a explicação tem a ver com a sua
concepção elevada de pensamento: trata-se dum silêncio que desdenha quem
precisasse dessa explicação. Por um lado, para quem só soube do nazismo depois
do holocausto, a ideia de Heidegger ter sido nazi mistura-se confusamente com a
de ser ele também um ‘criminoso’, que tivesse que ‘pedir desculpa’ pelo Holocausto[2].
Dito isto, que poderia ele dizer que não seja o que qualquer um dirá sobre o
horror? Banalidades, se se me desculpa, ‘descer’ das alturas do pensamento ao
discurso moralista óbvio, discutir de antemão com gente como Farias e os Faye,
pai e filho, com todos aqueles que se arrogam ingenuamente criticar Heidegger.
Desdém não democrata, é claro, elitista. O problema é outro: como é que o pensador
de Ser e Tempo foi capaz de
pedir meças políticas ao autor de Mein Kampf?[3]
Tenha-o lido ou não, foi aí que ele ‘desceu’, é a sua grande nódoa, mais uma da
Filosofia, se for verdade que ele foi o mais importante pensador do século XX,
que fez a viragem da ontoteologia da definição vinda de Platão e do
cristianismo, da oposição sujeito / objecto europeia, para o ser no mundo. Arrependido de ter ‘descido’ uma vez, não terá
querido repetir.
5. Há outra questão de que não sei minimamente
para falar, a da colaboração com os nazis dos dirigentes judeus nas selecções
de judeus, questão dura mas que houve sobreviventes que puseram no tribunal e
de que se diz, logo que Hannah chega a Israel, que é essa a posição de muitos
jovens judeus dos anos 60, críticos de não ter havido mais ‘resistência’ dos
judeus. A resposta dela foi que essa ausência de resistência foi um dos efeitos
nefastos do nazismo sobre as sociedades alemã e europeias, no caso sobre os próprios
judeus.
6. Pode-se, indo além do filme, perguntar pelo
‘mal radical’ em Hitler, já que ele esteve obviamente na fonte do Holocausto.
Porque é que ele foi anti-semita? O anti-semitismo estava razoavelmente
propagado desde o século XIX e uma das razões ‘objectivas’ que o alimentava era
sem dúvida a importância de judeus na alta finança (e indústria alemã), segundo
uma tradição que vinha desde a Idade Média. O livro do Levítico (cap 25) da
Bíblia hebraica proibia os judeus de emprestarem com juro aos seus compatriotas
e essa proibição na Idade Média era respeitada por judeus e cristãos, sendo
estes em muito maior número e não podendo por isso ter um papel de banqueiro
como os judeus, já que, minoritários, estes podiam emprestar com juros aos cristãos.
Por outro lado, a derrota da primeira grande guerra e a crise do marco dos anos
20 criaram um ressentimento tremendo entre os alemães; os judeus tiveram um
papel de bode expiatório na ideologia nazi: as línguas semitas (hebreu e árabe)
não pertencem às línguas indo-europeias que foram estudadas durante o século XIX
e prestavam-se assim ao mito dos arianos puros de raça, descendentes sem
mistura desses povos indo-europeus. ‘Ricos e de outra raça’ esses judeus,
facilmente o ressentimento anti-semita alastrou a todos os outros, ‘culpados’
de corromperem a raça alemã! O livro do australiano K. Comish, The Jew of
Linz (1998), que sublinhou que
Hitler e o filósofo de origem judaica Wittgenstein andaram na mesma escola em
2003-4 (ambos nasceram em 1989, Heidegger também, e Salazar e F. Pessoa),
sugere que foi a manifesta superioridade de Ludwig, o futuro filósofo, que
desencadeou no adolescente Adolfo uma inveja, um ódio visceral que o
anti-semitismo reinante terá alargado em seguida. A tese foi muito contestada,
nem sequer é certo que tivessem estado na mesma turma que seria a ocasião da
diferença de inteligências se manifestar em detrimento do futuro führer, mas
ela é sugestiva em termos de ‘radicalidade’ do mal no sentido kantiano, isto é,
de haver algo de visceral no anti-semitismo de Hitler, algo do ‘monstruoso’ que
Arendt esperava encontrar em Eichmann e este não aparentou ter.
7. No final do filme, Hannah Arendt diz que
ninguém criticou o que foi o seu erro: não há mal radical, só o bem pode ser
profundo e radical, o que, se entendo bem, corresponde às concepções tradicionais
desde Platão de que não se escolhe ‘o’ mal, mas sim um mal que aparece como bem
sob qualquer aspecto individual, como o suicídio será um caso óbvio. Quanto ao
bem profundo e radical, seria provavelmente colocá-lo, por analogia com a
elevação heideggeriana do pensamento, ao nível da santidade, de que a tradição
atribuiu a ‘raiz’ a uma fonte divina (como ainda Levinas e a sua concepção de rasto que tira a ‘raiz’ do humano: o mal seria o
fechamento ao outro, o ateísmo em Totalidade e infinito).
8. Como pensar hoje esta noção de ‘radicalidade’
do mal, ter ele raízes nas nossas tendências mais íntimas, inderacináveis?
Hoje, isto é, tendo em atenção o que se aprendeu com as ciências biológicas,
contando com o conhecimento científico que Heidegger desdenhou, tendo eu pretendido
(reclamando-me dele também!) uma aliança filosófica delas com para a própria
filosofia, numa nova versão de fenomenologia (filosofia com ciências). Uma das coisas que a evolução nos
ensina é a não opor mal e bem[4]. Todos os vivos são mortais, todos buscam
essencialmente adiar a morte alimentando-se de moléculas à base de carbono que
os animais só encontram noutros vivos a comer: o bem do leão é o mal da gazela
e vice-versa, a fuga desta é a fome daquele. Para isso, a evolução foi criando órgãos de ataque e manhas de
astúcia, músculos fortes, capacidades de luta e hormonas da fome que excitam
justamente à predação, inclusive nos humanos. Mas estes desenvolveram muitos
usos e costumes diversos, quer técnicos quer de regras de viver em grupo e em
tribo social. Ora, do que a neurologia nos ensina, depreende-se que as pulsões
hormonais, de ordem química, e portanto inatas – de raiz, como se procura para
o tal ‘mal radical’ – têm que ser disciplinadas pelos usos e costumes de forma
a impedir uma anarquia caótica, sem que se possa, creio, discernir entre o
químico inato e o social racional adquirido: o que há de mais pessoal em cada
humano releva da maneira como nele ambos se misturam. O Kant do “mal radical”
também advogou uma “insociabilidade natural” de cada humano, aparentemente
contra esta afirmação de que é o social, usos e costumes, que instituem o
humano individual; mas ela presta-se a perceber que este predomínio da lei
social a disciplinar a autonomia individual só pode fazer-se, sob pena de
submissão total das gentes, se esta autonomia, esta lei individual, protestar
contra a lei social: rebeldia ou insociabilidade. Como se faz ela? Enigma em
cada um. Mas passa por certo pelas ‘vontades’ que se vão gerando em cada
criança e adolescente segundo o paradigma da tribo, e que fomentam a
aprendizagem como algo que permitirá ‘ser grande’, isto é, como os outros grandes.
Mas por vezes contra estes grandes, rebeldia contra aquele(s) de quem se
aprende. E onde pode despontar a muito frequente ‘vontade’, não apenas de ser
grande, mas de se ser ‘admirado’
ou invejado enquanto grande por outros, pelos outros. Em francês, esta ‘vontade’
em antropologia diz-se ‘envie’ e ser-se ‘invejado’ diz-se ‘envié’, o que
permite melhor do que em português entender esta subtil mudança das ‘vontades’
para querer ser o melhor, o primeiro em..., ter melhores notas, desporto, ser a
mais bonita, sucessos vários, ganhar dinheiro, e por aí fora, donde vêm as
rivalidades, as competições, as guerras de que as histórias se fazem. Será a
raiz do mal, que a química ajuda poderosamente? H. Arendt, na sua aula,
contesta justamente a tese tradicional do egoísmo como raiz do mal. Não é isto
que aqui se propõe, já que o ‘ego’ é gerado indescernivelmente pelo social no
químico: é a sociedade que propõe o leque de lugares possíveis de preencher
assim como as regras, os costumes, para lhes aceder. O ‘mal moral’ será o
atropelo dessas regras para se ter o tal melhor lugar social, o mais invejável.
Este mal é pois banal e radical (tem raízes), mas raramente é monstruoso,
felizmente.
9. A dificuldade filosófica da questão vem, creio,
da tradição ocidental cujas duas fontes, a filosofia grega e a tradição
bíblica, opõem Bem e Mal. Em
contraponto claro com a mitologia grega e os comportamentos bons e maus dos
deuses e também com as tragédias pré-socráticas que tentam pensar os destinos
humanos entre castigos divinos, arbitrários ou não, e excessos (hubris) humanos, a Forma ideal do Bem na República dará lugar no Timeu ao Demiurgo que forma o mundo até ao nível das
almas humanas, enquanto se discute se haverá uma Forma ideal do mal, do lixo,
da morte, e se contesta que haja ‘mistura’ entre as Formas ideais,
contaminações portanto do Bem pelo Mal. Na tradição bíblica, o Deus antigo que
abençoa e amaldiçoa cederá claramente na tradição apocalíptica vinda de
Zaratustra à oposição entre Deus e o Diabo, sendo que desde o Génesis 2-3 que a
oposição entre Bem e Mal é marcada, a própria morte sendo castigo dos humanos
após uma criação boa. É provável que as posições variáveis da tradição
filosófica tenham conhecido algumas excepções (Spinoza, Schopenhauer,
Nietzsche), mas o que dela veio como dominância até nós, o que Heidegger chamou
ontoteologia, implica uma
exterioridade do Mal ao Bem que a respectiva personificação mitológica exibe
com clareza. Mas se fosse assim, seria sempre fácil discerni-los, qualquer
questão de ordem ética seria tão banal, tão simples de ser encarada como é a da
monstruosidade hitleriana para nós que viemos depois, ao contrário do que
parece ter sido o caso de Eichmann, uma espécie de cúmulo de banalidade.
[1] No Público de 9/10/2013, Irene Pimentel cita C. Browning, [Homens
ordinários. O Batalhão 101 da Policia de Reserva e a Solução Final na Polónia (1992), Web] que confirmou esta tese da banalidade
do mal estudando o comportamento dum batalhão de reservas responsável por
massacres na Polónia. Apenas 10% se escusaram, e eram mal vistos pelos outros.
Tratava-se, numa resenha na Web, de trabalhadores de Hamburgo de meia idade.
[2] A arguta Clara Ferreira
Alves, que muito admiro, não escapa a este preconceito vulgar contra Heidegger
no texto da Revista do Expresso de 12/10/2013.
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