Adaptado dum texto mais largo, foi necessário
omitir o que constitui a argumentação
essencial dele, o que poderá implicar menos facilidade de leitura. Espero todavia
que seja acessível a sua linha de fundo, o fio da sexualidade como mecanismo
excessivo e a necessidade do seu controle através da evolução biológica e da
história dos humanos. Se me atrevo a meter-me nestes domínios reservados dos
biólogos, com o risco de eles se escandalizarem ou, pelo contrário, de se rirem
de mim, é por os ter lido e aprendido tanto, tão interessantes coisas, e de
constatar ao mesmo tempo que esta literatura de biologia molecular não passa do
nível da bioquímica, não chega a questões que são vitais para a reflexão
fenomenológica.
Sexualidade e biologia
1. Para tentar compreender a evolução, tomemos a
nossa espécie mamífera, composta de quatro sistemas: a) o da circulação do
sangue que vai a todas as células do organismo fornecer moléculas de nutrientes
e de oxigénio para o seu metabolismo incessante (é o único que funciona no
feto); b) o sistema digestivo e respiratório que carrega o sangue com essas
moléculas (começa com o parto e completa o sistema alimentar); c) o sistema de mobilidade, órgãos perceptivos, cérebro neuronal e músculos
de locomoção, que busca na cena ecológica o que comer e beber para essa
digestão, além de procurar escapar a ser presa de outros (desde o desmame e das
primeiras autonomias, de andar, mexer e falar, da sua estruturação pela aprendizagem
dos usos tribais); d) o sistema sexual, que busca a reprodução da espécie e não do indivíduo como os outros três,
mas que nos mamíferos se veio inscrever parcialmente na anatomia feminina de
forma inovadora (assinala-se com a puberdade). O belo livro de J.-D. Vincent, A
biologia das paixões, coloca o
motivo de estado central flutuante como o que faz a unidade do mundo hormonal, quer no que diz respeito ao
sistema alimentar, glândulas de secreção interna do aparelho digestivo que
largam hormonas na circulação do sangue, capazes de criarem unidades de acção
fisiológica com receptores em células determinadas, quer no que diz respeito ao
sistema da mobilidade, o hipotálamo igualmente secretando hormonas no cérebro,
incluindo iguais às que o sistema alimentar produz (só as esteroides,
produzidas neste, conseguem intervir no cérebro, atravessando a membrana que o
isola). Região do paleo-cortex[1],
o chamado cérebro dos peixes ou répteis, o hipotálamo, “cérebro do meio interior”
(Vincent), tem papel central na homeostasia do sangue (temperatura, pressão
arterial e de osmose, teores de oxigénio, açúcares, lípidos, prótidos, pH...)
por via da secreção de hormonas no sangue, enquanto que o neo-cortex das aves e
mamíferos é o que tem papel
central na aprendizagem de estratégias na cena ecológica; é a relação entre
estas duas regiões de um cérebro duplo que se jogará entre as duas funções biológicas, da alimentação e da
mobilidade: por um lado, o jogo de excitação hormonal que se relaciona estritamente
com a lógica homeostática do sangue, equilíbrio a restituir, para cima ou para
baixo, sempre que exceda os parâmetros limites, a fome por exemplo, e assim
joga como uma espécie de motor retirado estritamente da cena ecológica, cego
para ela, e, por outro lado, a lógica desta cena onde há que buscar presas para
alimentação e segurança para não se ser caçado.
2. Se forem acidentes graves da cena ecológica a
afectarem o sistema da mobilidade e a precipitarem modificações evolutivas do
organismo, a questão é a de saber o nível em que essas modificações se podem
fazer, não parecendo óbvio que seja directamente o do metabolismo celular (como
é postulado pela teoria das mutações, que lhes acrescenta o ‘acaso’) mas o
nível intermediário, do que se pode chamar círculo homeostático (entre teores máximos e mínimos), que diz
respeito ao conjunto do organismo e se enlaça com as células especializadas.
Com efeito, assim como uma célula que se reproduz não o faz apenas ao nível dos
genes e dos cromossomas mas sim no seu conjunto com o citoplasma e respectivo
metabolismo em funcionamento, também a transformação dum organismo que venha a
ter incidências na espécie implica, de cada vez, substituir um círculo
homeostático por um outro um pouquinho diferente que continuará a andar bem, sem
que haja nenhuma razão a priori para excluir o jogo das oscilações entre os três sistemas enlaçados uns
nos outros. Para ter lugar, essa substituição deverá contar, parece em boa
lógica, com cumplicidades adentro do círculo homeostático, que todavia não
façam parte do seu funcionamento normal nem das suas oscilações. Ora, acontece que as hormonas esteróides da
sexualidade têm essa estranha lógica, de estarem dentro do sangue e de ao mesmo
tempo pulsionarem para fora do animal, para o outro do outro sexo, de terem
origem no metabolismo (de certas glândulas) e serem despejadas no “meio interior”
(Cl. Bernard) em que a homeostasia é regulada, escapando no entanto à economia
da nutrição, já que a sexualidade é a inversão desta, uma contra-economia, um
desperdício desatinado. Com efeito, ao invés de todas as outras células
especializadas, estas glândulas não estão ao serviço da alimentação de todas
elas, formam outro ‘sistema’ ao serviço da espécie, em excesso em relação à sua
lei fundamental de auto-reprodução. Se se compara com o que se passa em
espécies assexuadas – os vermes que, a certa dimensão, se segmentam em dois
mais pequenos, por exemplo, ou a hidra de água doce ou da esponja que fazem
sair de si por gemulação uma hidrazinha ou uma esponjinha –, pode-se dizer que
a reprodução sexual das espécies animais implicou a invenção da morte (dos
cadáveres), da bipolaridade fêmea / macho, da filiação e da fraternidade e
portanto do parentesco, das condições da aprendizagem[2].
Foi uma espécie de segunda invenção da vida, de que o resultado foi a imensa diversidade das espécies: com efeito, a divergência parcial
dos genomas fêmea e macho e o terem que se fundir para que haja reprodução
implica de si mesmo um mecanismo de variação que dificilmente poderia deixar de
ter tido incidências na evolução. Ora, esta invenção contraria a economia das autonomias animais em que, ao invés das
plantas e suas proliferações de ramos e folhas, cada órgão tem lugar e dimensão
determinados num corpo bem cheio (tão estrita é esta dimensionação do corpo
animal que obriga cérebro, pulmões e intestinos a circunvoluções de vária ordem
para aumentarem a sua superfície de trabalho nesse volume restringido à
partida). Ao contrário, anti-económica, a sexualidade multiplica e esbanja
gâmetas e forças atractivas para que uma percentagem mínima se cruzem por acaso
e proliferem.
3. A boca sendo órgão essencial da mobilidade para
a captura de presas, ela é também a primeira etapa da transformação destas em
moléculas que, após estômago e intestino delgado, passam ao sangue com destino
a cada uma das células. É onde encontrou as hormonas segregadas pelas glândulas
em adequação às variações dos teores desse sangue alimentador, após ter sido
motor dos comportamentos de saciar fome e sede. Estas variações podem relevar,
obviamente, do aleatório do que se come e bebe, das infecções possíveis, de
outros ‘acontecimentos’ derivados da situação do animal no mundo a que as
anatomias sabem melhor ou pior responder, como cães e gatos se sabem tratar.
Mas o que define esta anatomia de nutrição de todas as células do organismo,
incluindo as do sistema de mobilidade, é que, fazendo mediação com o sistema da mobilidade para cima e com o das
células para baixo, é aonde se conjugam, já não as necessidades orgânicas de se
estar no mundo da selva e das suas astúcias e aprendizagens, mas as
necessidades de transformar os pedaços de presa comidos em moléculas de carbono
mais simplificadas que sejam susceptíveis de serem aceites pelas membranas
celulares como boas para a síntese de proteínas. Ora, aqui encontramos outro
ponto em que o determinismo genético é fortemente ilógico no seu recurso ao
acaso das mutações do ADN. Em cada célula, este tem que estar adequado, não
apenas às moléculas que lhe chegam no sangue, em que um certo aleatório jogará
porventura embora muito controlado pelo trabalho do aparelho digestivo, mas
também às proteínas que são estruturais dessa célula segundo os seus tecidos e
órgãos. Ora, estes são aqueles de que a mesma anatomia nos seus dois sistemas
necessita (do adiposo ao neuronal haverá nos vertebrados duas centenas de
tecidos em células especializadas); reencontramos aqui o que se chamou acima círculo
homeostático, que na fenomenologia
de Hegel se resolveria por ‘dialéctica entre sujeito e objecto’[3],
mas que aqui, fora da ontoteologia, precisará deste motivo de círculo, bem como
da sua mediação como regendo e regido por acontecimentos. Isto é, assim como ao
nível do sistema de mobilidade na cena ecológica, as anatomias têm que ser
adequadas à caça e defesa de se ser caçado e as suas variações evolutivas
resultarem de catástrofes ecológicas, também a ligação deste sistema com o da
nutrição deverá ter incidências sobre este, na chegada do sangue às células.
Sendo provável, crê o leigo, que estas variações sejam muito mais lentas do que
as do sistema de mobilidade, só no entanto esta característica de mediação (do “estado central flutuante”, Vincent)
permitirá entender esta fascinante modificação evolutiva pela qual as células
se foram especializando nos órgãos necessários à sua própria nutrição. Milhões
de anos é a medida cronológica desta espantosa história.
4. Espantosa e fascinante: porque, descendo agora
ao nível das células, os genes são submetidos à lei da conservação da sua
própria célula! Os geneticistas que fizeram da mutação casual dos genes a chave
da evolução sabiam-no à sua maneira, foram eles que me ensinaram: só que o
problema aqui é filosófico, de lógica, a que a biologia não foge. É aonde a lição do primado dos
ribossomas de Barbieri[4]
sobre os ‘desoxiribo’ é fundamental, embora sem dúvida se vá aqui mais longe do
que o grande biólogo italiano. Quando Randel[5]
coloca uma proteína a ir dentro do núcleo ‘expressar’ o gene que, transcrito en
ARNm, permitirá criar uma nova sinapse, e portanto sublinha claramente como um
‘acontecimento’ vindo de fora, uma aprendizagem, vai ter efeitos a nível
genético, e quando Vincent e outros ensinam que esteroides podem ir juntar-se a
genes para criar efeitos no metabolismo, parece ao leigo ser possível pensar
que, em circunstâncias de crise catastrófica (à maneira de Stephen Jay Gould
talvez), os efeitos dos três sistemas enlaçados entre si reactivem esse primado
barbieriano dos ribossomas e dêem origem às mutações genéticas dos biologistas.
Sendo pois certo que tem que haver mutações genéticas devido ao
conservadorismo estrito do ADN, elas fazem parte dum conjunto de acontecimentos
de fora para dentro que agem segundo os laços entre os dois sistemas: sem
determinismos nem causas / efeitos. E o que são ‘acontecimentos’? na cena ecológica são conjugações de mais
do que um vivo que produzem efeitos em cada uma deles: por definição escapam a
qualquer definição susceptível de os determinar, é aliás por isso que as
ciências precisam de laboratórios! E no entanto, quando os cientistas se tornam aplicadores de ciência, os
biólogos se tornam médicos, têm constantemente necessidade de ‘análises’ de
todos os tipos para encontrarem índices de como funciona tal ou tal homeostasia
sanguínea ou tal ou tal fígado, consequências imprevisíveis de
‘acontecimentos’, não apenas de alimentação, por vezes também de ‘stress’ de
habitação. Sem que o médico possa dizer exaustivamente como tal e tal
acontecimento provocou este ou aquele sintoma, ele sabe em todo o caso da
relação entre uns e outros.
5. Voltemos às hormonas esteróides que têm
estranhas propriedades: sucede segundo J.-D. Vincent que as hormonas sexuais
têm um papel decisivo na embriologia do cérebro, revelando uma possibilidade de
hormonas machas virarem fêmeas e vice-versa, e ainda a possibilidade em certas
circunstâncias de virem tomar lugar no genoma para a síntese de enzimas
(Vincent, p. 294); têm também um papel fundamental nas metamorfoses dos
invertebrados e dos vertebrados. O que estas propriedades bizarras sugerem é
que, sempre que as modificações da cena ecológica fizerem pressão para
modificações dos organismos (sabe-se desde as ilhas Galápagos de Darwin que as
mesmas espécies evoluem diferentemente em cenas ecológicas diferentes[6]),
haverá capacidade de a sua circulação do sangue receber essas hormonas e estas
virem a ter efeitos inclusive de síntese de novas moléculas, além de que também
os mecanismos de expressão genética e os próprios ribossomas podem ter
incidências dessas. Hipótese de leigo, ligando leituras diferentes e pensando
pela sua própria cabeça: o desperdício sexual seria parcialmente recuperado.
6. Por outro lado, e aqui com mais liberdade, já
que não intervindo nos mecanismos biológicos, pode-se propor um outro argumento
para esta interferência do sistema da sexualidade sobre os outros dois, a
partir do facto de a ultrapassagem do curiosíssimo fenómeno das metamorfoses
ter tido como termo – tanto nos invertebrados, os artrópodos, como nos
vertebrados, as aves e os mamíferos – a formação de espécies endogâmicas de maneira bem mais estrita do que nas espécies
menos evoluídas, como se a reprodução sexual, tendo entrado muito cedo na
evolução, tivesse acabado por fazer parte de certa maneira da sua dinâmica,
para além dos esforços permanentes de auto-reprodução de cada indivíduo a favor
de e contra a lei da selva. O que parece significar que, quanto mais vai
crescendo a variabilidade das regulações na cena ecológica, tanto mais o genoma
ganha em poder enclausurante no que tem a ver com os acasalamentos reprodutivos.
O que será um bom exemplo de efeitos que se compensam, um que alarga a
diversidade e o outro que, indissociável e inconciliável com o primeiro, a
aperta e controla. A este argumento junta-se um outro muito forte. No que é
difícil de evitar chamar o cume evolutivo dos vertebrados, a evolução deu
origem a espécies classificadas como ‘mamíferas’, em que o sistema de
reprodução das espécies, até aí feito através de ovos postos no exterior, veio
alojar-se no ventre e nas mamas das fêmeas : esta revolução da anatomia e da fisiologia do
sistema alimentar feminino pelo sistema que lhe é alheio, o da reprodução
sexual, não teria tido nada a ver com as hormonas esteróides, pergunta o leigo ?
7. Tratar-se-ia duma espécie de sublimação
hormonal das esteróides, oh Freud!
capazes de irem além das suas funções específicas no sistema da sexualidade –
um sistema além do alimentar e do da mobilidade, estes economicamente ao
serviço da auto-reprodução, aquele, excessivo, ao serviço da espécie. Como se,
nos intervalos dos cios, lhes sobrasse tempo para outras funções do sistema
alimentar, relativas às oscilações das ligações dos dois sistemas, como se,
antes da psicanálise (e porque seria esta só humana?), já houvesse
‘sublimações’, isto é, deslocamentos das funções estritamente de reprodução
sexual para outras de nutrição (nos humanos também para a mobilidade), provavelmente desde a
embriologia, onde parece que as esteróides têm funções interessantes de guias
do crescimento do embrião.
Uma questão inusitada
8. Como pensar a incidência das mudanças das
nossas sociedades nas mutações genéticas? Por exemplo, a formação da classe
média durante o século XX nas sociedades desenvolvidas do Ocidente implicou
que, pela primeira vez na história dos humanos, muitos milhões de pessoas recentemente
escolarizadas passassem a ter usos que até aí eram fortemente circunscritos: quer
a sedentariedade em sentido estrito, estar as longas horas de trabalho sentado
a uma secretária em actividades monótonas mas sem grande esforço físico, quer
as novas condições de alimentação e de higiene; isto contribuiu para terem
inscritas nelas um novo tipo de fisionomia facilmente distinguível, quer do das
elegantes burguesias instaladas, quer do das populações rurais e operárias
quase analfabetas, com usos de trabalho fisicamente muito duro e prolongado que
lhes marcavam de rudeza os modos, rugosas as peles, os rostos, rudeza essa que
se diria transmitida também com os genes. Acontece que uma parte importante das
novas classes médias era composta de filhos deste povo rude que tiveram a
oportunidade de frequentarem a escola por alguns anos. Não sei se houve já
inquéritos genéticos sobre esta questão: entre a gente de rostos e modos rudes
e os seus filhos ou netos houve mutações genéticas equivalentes, isto é, que
permitam correlacionar diferenças genéticas (relativas à pele mais cuidada, às
diferenças alimentares, aos músculos dos braços e da posição sedentária
prolongada, que sei eu) com diferenças de usos urbanos? Se for o caso, será
claro que essas mutações equivalentes entre si relevam das alterações muito
substanciais dos usos sociais e então haverá que considerar que o tempo de uma
ou duas gerações dessa diferenciação é demasiado curto para resultar de
mutações casuais que se repetiriam milhões de vezes, implicaria que se
argumentasse com oscilações entre os vários sistemas para se entender o fenómeno.
Mas tal argumentação será extremamente complicada.
Sexualidade e história
9. Ora bem, este excesso sexual que produz gâmetas
e pulsões para o outro do outro sexo muito mais do que o que será de facto
eficaz em termos reprodutivos, esta maneira de a biologia jogar com a estatística
e de reintroduzir o acaso que a invenção da célula substituíra pela regulação
genética do aleatório[7],
este excesso – que na generalidade das espécies mamíferas é regulado pela
periodicidade do cio das fêmeas, o qual desapareceu nas dos primatas –
manifestou-se como fortemente problemático nas sociedades humanas, como todos
fazemos experiência, o que desde os alvores implicou necessidade de disciplinas
da parte dos nossos antepassados, a começar pelo interdito do incesto. Se é
certo que a fome e a sede obrigam as unidades sociais a diligências quotidianas
e à invenção de artes de caça, pesca e colheita, se doença e morte dos parentes
e amigos provocam dores grandes, a sexualidade dos humanos parece ser a sua única
função biológica que não existe para tolher faltas do organismo mas que é dela
mesma afirmativa, excessiva além da própria reprodução, já que sem sintomas dos
poucos dias férteis das mulheres em cada mês e não desaparecendo durante a gravidez
nem o aleitamento: excessiva como erotismo. Foi este excesso que colocou questões às sociedades humanas que sempre
tiveram que lhe pôr limites. É certo que a razão de ser desse excesso é a fecundidade
que a sexualidade assegura, mas que assegura de forma não segura. A fecundidade
é esta coisa habitual, mas extraordinária quando se pensa um pouco, de um par
de humanos (de animais, invertebrados também) poder gerar outros humanos muito
pequenos, necessitando de serem alimentados e protegidos durante vários anos
enquanto crescem, de se poder multiplicar esse par várias vezes e de serem
todos relativamente diversos uns dos outros, como se vai verificando à medida
que crescem.
10. Ora, fecundidade e crescimento do que nasce
pequeno são o que sempre provocou o espanto dos humanos, dos shamans, homens dos rituais sagrados, são a phusis, o poder dos vivos se moverem por si mesmos, kath’autôn, segundo Aristóteles. Em termos heideggerianos, a
phusis (dos que crescem,
desabrocham), a natureza (dos
que nascem), é a doadora por excelência da fecundidade e do crescimento que
esconde o seu poder para que eles sejam possíveis em sua autonomia. Essa doação
revela-se fenomenologicamente no par que concebe e sobretudo na mulher que,
grávida durante nove meses, ‘dá’ à luz o bebé e o aleita ainda uns meses
largos. Ora, é destes seres preciosos porque fecundos que os vários clãs fazem
doação uns aos outros, ‘levas tu a minha filha que outro me deu a dele’: cada
unidade social, em suas linhagens patrilineares, tem no coração da sua fecundidade
uma mulher vinda de outra linhagem, o que é patente que acrescenta diversidade,
novo patamar no que a sexualidade promove desde a sua invenção até à das mamíferas.
O laço social das sociedades humanas desde sempre que se faz desta troca
exogâmica das doadoras fecundas:
é a lição de Lévi-Strauss, o laço social tribal primeiro é o da ‘troca de
mulheres’, correlativa do interdito do incesto. O que significa que essa doação
das raparigas a outro clã, lei de exogamia, implica que ela seja preservada no
seu clã de origem, que os machos deste (irmãos, pai e tios, primos paralelos)
sejam interditos face a ela do excesso pulsional que faz parte intrínseca da
sexualidade; ora, este excesso sendo quotidiano, também tem que o ser o do
interdito, com o que tal implica de disciplina, que é necessária para a boa efectivação dos usos
que têm a ver com a nutrição e outros aspectos da habitação. Não custa admitir
que haja aqui algo como um deslocamento das energias pulsionais, para
brincadeiras de criança primeiro, para aprender e ganhar habilidades
espontâneas depois com que se fará a melhor figura possível diante dos outros,
no seu clã mas também aos olhos dos outros: a figura freudiana da sublimação jogar-se-ia aqui também. A sua dimensão social
manifestar-se-ia nas festas como excesso público de todos, quase como, em geral
privado, o erotismo o é entre dois.
11. Além do interdito do incesto, será
praticamente universal a condenação do adultério, nomeadamente onde não se
admita o divórcio. Na Roma do século III da nossa era, cultos de origem persa
(maniqueus) aliaram-se ao menosprezo platónico pelos corpos e seus prazeres,
tendo contaminado fortemente a moral da religião cristã que veio a ser imposta um século depois. As
classes altas das diversas civilizações elaboraram etiquetas de disciplinação
das pulsões sexuais e agressivas, como conta Norberto Elias no seu O
processo civilizacional, no que à
Cristandade medieval e Europa diz respeito (ele refere também a civilização
chinesa): a história da criação do ‘super-ego’ moderno. Tratava-se dos
cortesãos que passavam temporadas nas cortes reais e o interdito do incesto não
jogava entre casais nobres diferentes. Esse ‘super-ego’ veio a revelar-se
fecundo no advento do feminismo, quando as mulheres invadiram os empregos aonde
até aí só havia homens e se tornou necessário regular as relações entre ambos
os sexos.
12. Esta história moderna veio a encontrar
condições de ligeireza de civilização após horrores sem medida, trinta anos de
abundância e segurança social, assim como música à discrição, cinema e
televisão, condições essas que favoreceram uma espécie de desenlace no ano mítico
de 1968, desde o Japão à Califórnia passando pela França em greve geral de um
mês, que rebentou com as clausuras familiares e deu origem a um regime de
relações mais livres entre rapazes e raparigas, entre mulheres e homens, como
também entre parceiros do mesmo sexo. Após episódios históricos de libertinagem
aqui e ali, este desenlace pode aparecer então aqui neste contexto que prolonga
a evolução dos vivos na história dos humanos – como se se tratasse de
teleologia! – como remate desta tão longa história que vem desde a invenção da
sexualidade, esta conseguindo enfim fazer vingar como erotismo esta
ultrapassagem da sua função meramente reprodutiva. Não sem sombras, hélas!, já
que parece ser o que, risco e insegurança, suscita insurreições de puritanismos
furiosos e amedrontados nas zonas ortodoxas das civilizações monoteístas, desde
os Tea Party aos pilotos que destruíram as torres de Nova Iorque: virá daqui
algo a desmentir a teleologia?
[1] ‘Paleo’ quer dizer ‘antigo’, ‘neo’ é ‘novo’, de desenvolvimento
posterior na evolução a partir do primitivo.
[2] Não haverá
razão para espantos quando se encontrarem estes motivos no discurso psicanalítico
sobre a sexualidade humana enquanto sempre-já submetida à lei.
[3] ‘Sujeito’
exterior ao ‘objecto’ e por isso ‘contraditórios’. As duas leis dum duplo laço
são inconciliáveis mas não são exteriores, já que indissociáveis: nenhuma delas
existe previamente sem a outra. O ‘acontecimento’ não é contra o princípio da
não contradição, é-lhe prévio, este princípio lógico aplica-se apenas –
ontoteologicamente – a resultantes de ‘acontecimentos’.
[5] Eric Kandel
(prémio Nobel de medicina 2000), À la recherche de la mémoire. Une nouvelle théorie de
l'esprit, *2006.
[6] O que parece excluir em boa lógica
que o mecanismo da sua evolução consista apenas em mutações genéticas cegas.
[7] Exemplifique-se
a diferença entre aleatório e acaso: que eu choque com um carro surgido
repentinamente à minha esquerda, é aleatório, faz parte do possível na
circulação automóvel cuja lógica do tráfego o deve impedir; que o condutor desse
carro seja um colega de liceu que nunca mais tinha visto é um acaso que não tem
nada a ver com a lógica da cena do tráfego.
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