1. Toda a gente confunde, mas a
história ocidental distingue claramente dois tipos de fenómenos que apenas uma
noção vaga de divindade permite confundir: há muitos espirituais que não crêem
no Deus monoteísta do Ocidente. A primeira leva de movimentos espirituais
deu-se com a eclosão da escrita, escolas em que discípulos relêem e meditam os escritos
do mestre: em meados do primeiro milénio antes da nossa era. Zaratustra na Pérsia
(sec VIII), Lao-Tseu e Confúcio (sec. VI-V) na China, Buda na Índia (sec.
VI-V), os Profetas em Israel (s. VIII-VI), também Heraclito, Parménides,
Pitágoras, Sócrates na Grécia (s. VI-V). Escolas de exercício espiritual,
abrem um novo contexto social, buscando intensidades do viver – virtude,
sabedoria – que a reprodução das casas e dos seus usos não satisfazem já.
Rompem com o ‘religioso’, que implica o sagrado ancestral e diz respeito a toda
a gente; trata-se de aventuras de experimentação à margem das sociedades
estabelecidas, que abandonam os rituais e mitos destas, à maneira, entre nós,
de um novo pensamento, poético, filosófico, científico, que escave quase em
silêncio um novo caminho: elas estão na génese do que chamamos cultura, relativa
a antepassados históricos com nome (e não o sagrado holístico, de todos os antepassados). A oposição ocidental entre a alma e o corpo, não sendo
válida sem mais para as tradições asiáticas, permitirá em todo o caso
visualizar o que está em jogo em todas elas: o deslocamento dos gostos da casa,
da guerra e do corpo para os da alma. O espiritual é marginal, o religioso é
holístico e ancestral.
2. No evangelho, a distinção é clara
desde o início: o apelo à conversão com o baptismo como ritual de ruptura,
tendo sido o mundo político-religioso quem condenou os dois que apelavam à
conversão, João Baptista e Jesus. Este opôs Deus não apenas ao Dinheiro (Mateus
6,24) e ao poder político ocupante de César (idem 22,21) mas também ao Deus dos
mortos (“ele não é um Deus de mortos mas de vivos”, Marcos 12,27), isto é, ao
poder religioso do Templo, como mostra uma palavra dirigida a alguém que queria
seguir o mestre mas primeiro devia enterrar o seu pai: “deixa os mortos enterrarem
os seus mortos” (Lucas 9,60); o Deus dos mortos é o dos antepassados mortos e
enterrados, donde deriva a religião. Durante alguns séculos, o cristianismo foi
um movimento espiritual no meio de outros no império romano, foi mesmo perigoso
ser cristão em certa épocas, mas depois os Césares escolheram-no como religião
oficial em vez da ancestral. Em poucas gerações no Ocidente, o cristianismo
tornou-se religião holística ancestral, o baptismo tornado rito de bebés, sinal
evidente da mutação. Mas há outro sinal muito mais óbvio: a partir daí, a
religião não deixou de parir nas suas margens movimentos espirituais que se
referiam à aposta evangélica adulta contra os senhores deste mundo. O problema
destes movimentos foi terem-se tornado rapidamente ‘religiosos’, integrados na
hierarquia (o frade é pobre mas a Ordem é rica), donde que tiveram que surgir
outros, até à Reforma de Lutero, que visitara Roma na altura da construção da
Basílica de S. Pedro, financiada pela ‘venda’ de indulgências: o protestantismo
foi claramente espiritual na sua eclosão, mas também se tornou religião por sua
vez, com dissidências espirituais incessantes até aos carismáticos recentes.
3. A escrita na base do espiritual
(por isso o catolicismo fechou a Bíblia em latim, ainda assim era na minha
meninice) avalia criticamente o saber recebido de antepassados. A Filosofia de
Sócrates e Platão é indissociavelmente espiritual e intelectual (basta ler o Fédon), a busca do saber sendo da virtude também, foi
Aristóteles quem contribuiu para a separação das águas. Mas quem conheceu gente
dedicada ao saber ou à música ou outras artes que cultivava acima de qualquer
dos gostos de que o mundo vive, como os encontramos por vezes nas nossas escolas, Rómulo de Carvalho ou
Óscar Lopes, pode ter percebido que não é necessário crer numa divindade para
se ser espiritual e intelectual sem separação entre saber e modo de viver.
4. Os gestos e falas de simplicidade
do novo bispo de Roma Francisco foram acolhidos como sinais espirituais de bom
augúrio, continuará essa simplicidade do viver, esperemos. Mas no contexto religioso
imponente de basílicas, bancos e espectáculo mediático, vai ser bem difícil, creio, a tarefa quase impossível de trazer as gentes do religioso ao
espiritual e à sua ruptura, em tempos em que a crise nos assola e traz de volta
a miséria que julgávamos ultrapassada de vez. Faz parte de ser espiritual hoje
que, crentes ou não, demos as mãos – livres e solidárias – contra a dominação
da alta finança sobre o medíocre poder político e os médias ao seu serviço.
5. Francisco é como Obama: seduzem pela sua autenticidade, rara em políticos e religiosos; mas o contexto de poder, americano e vaticano, não pode deixar de criar decepções.
Sem comentários:
Enviar um comentário