1. “É preciso estilhaçar o todo”,
proclamou Nietzsche contra Hegel. Está feito, é essa a nossa situação,
condenados a não saber senão estilhaços. Sem que pareça haver quem se
escandalize com esta derrota do pensamento, todos se resignam talvez sem darem
por isso, compreendendo confusamente que este estilhaçar propício a todos os
relativismos é efeito do desenvolvimento das ciências que se multiplicaram em
especialidades incontáveis, incontroláveis, desafio a qualquer hipótese de
saber unificado. Diante desta avalanche de saberes que os filósofos doravante
ignoram, as filosofias recebidas, em torno do sujeito e do objecto, não tinham
possibilidade de se defenderem – que o ‘sujeito’ é filho da ‘alma’, oposto ao
corpo, à linguagem, ao trabalho, à sociedade, a todos estes ‘objectos’ que as
ciências têm dado a conhecer –, perdida a capacidade sistemática de que Hegel
terá sido o último artesão. Ora, foi o ‘todo’ dele, tentativa de domesticar o
relativismo ao abarcar a história, reino da relatividade por excelência, da
indeterminação, que foi visto por muitos, à tort ou à raison, como a fonte dos
totalitarismos tremendos da primeira metade do século XX, que foram levados
assim à recusa da própria empresa sistemática e da sua determinação.
2. Como responder a esta dupla
desconfiança? À falta de tradição filosófica satisfatória sobre as novas
questões científicas, só se pode obviar recorrendo ao saber oferecido pelas
próprias ciências, pelas biologias, linguísticas e semióticas, antropologias,
economias, ciências sociais, psicologias com neurologias, recorrer assim ao
próprio material estilhaçado, às grandes descobertas das ciências do século XX,
o que pode ser feito desde que se recorde que todas estas disciplinas tiveram
origem na filosofia (além da geometria e da astronomia) e que só se puderam
autonomizar das questões metafísicas com o corte de Kant entre filosofias e
ciências: pode-se recuperar essa dimensão filosófica delas após que esse corte
tenha conseguido os seus propósitos e manifeste agora, como seu efeito
crepuscular, este escândalo dos saberes estilhaçados. E como o fazer? Só com
recurso à filosofia que no século XX se deu como questão justamente essa
articulação das “ciências europeias” em crise (Husserl) através dos seus
discípulos dissidentes, Heidegger e Derrida, que puseram a ‘diferença’ antes da
‘substância’ e assim tornaram possível pensar uma sistematização que tenha a
indeterminação no seu âmago. É
que no fundo as ciências é de ‘estilhaços’ que se ocupam, é delas que nos dão a
conhecer as artimanhas.
3. Aconteceu assim, à lenta experiência da escrita
buscando, que o motivo derridiano de duplo laço se revelou adequado para explicar
fenomenologicamente – aliança de filosofia com ciências – o movimento de tudo o que se mova,
seja máquina, ser vivo ou estrutura social. Espanto dos espantos: encontrava-se
uma réplica moderna inesperada para o que tinha sido a antiga Physica de Aristóteles, uma filosofia do ser em movimento (donde derivou uma metaphysica do ser enquanto
ser) tornada caduca pelo progresso
das ciências europeias, que nasceram dela e com ela romperam após uma
longevidade de cerca de vinte séculos. É certo que ‘movimento’ e
equivalentes noutras línguas modernas não incluem facilmente o sentido de
‘crescimento’ (duma planta ou animal) ou de ‘mudança’ (de qualidade: uma
matéria que muda de forma, uma trans-forma-ção), como fazia o kinêsis grego, não impede que parece não ter havido, fora
da Physica de Aristóteles (nem
provavelmente no aristotelismo medieval, metafísico mais do que ‘físico’),
nenhuma filosofia que tenha tomado a questão do movimento dos vivos como sua questão central, na modernidade que a
partir de Descartes e Galileu reduziu o movimento ao deslocamento na extensão, no espaço (de tal maneira que uma boa
Enciclopédia como a francesa Universalis não tem entrada para ‘mouvement’,
remetendo para a cinemática, isto é, para a Física europeia).
4. Mas a análise desses movimentos
chocou com uma dificuldade, senão uma aporia. A invenção da vida, da célula,
foi a dum ‘mecanismo’, uma assemblagem de moléculas reunidas a partir dum mar
de moléculas equivalentes, uma nova unidade capaz de se reproduzir adentro
desse mar de moléculas, que a podem alimentar mas também destruir. O que
significa que a célula é uma estrutura de auto-reprodução, uma estrutura
conservadora, o que não anuncia nenhuma evolução, bem pelo contrário: a
invenção da célula é a negação da futura evolução. Igualmente, uma espécie
evoluída endogâmica é a negação da evolução que houve até ela ainda que os seus
indivíduos sejam razoavelmente diferentes uns dos outros; a endogamia defende-a
da introdução de genes que alterem a estrutura da espécie, igualmente
conservadora: que os diversos órgãos e tecidos especializados funcionem como
devem para garantir a auto-reprodução de cada indivíduo e não se metam a
inovar, a cancerigenar. Também as sociedades tribais que Lévi-Strauss estudou
são, disse ele, “frias” de resistirem a qualquer mudança, “contra o Estado”,
acrescentou P. Clastres, o que não anuncia nenhuma história de sociedades
complexas; e também nestas, casas, famílias ou instituições são estruturas de
auto-reprodução quotidiana que exigem que os seus membros se conformem aos usos
estabelecidos como rotina disciplinada e não se ponham a inventar
comportamentos surrealistas, cada um seguindo a sua própria cabeça. Como é
que conservação estrutural e inovação são logicamente compatíveis, é aqui a
questão, que pedirá uma nova
aliança entre filosofia e ciências (Prigogine), uma fenomenologia em que às
ciências actuais se restitua a dimensão filosófica que tinham antes do corte
kantiano entre ambas. Para entender essa aliança, haverá que abrir brevemente o
espaço da desconstrução da ontoteologia (Heidegger) e respectivo logocentrismo
(Derrida) da tradição filosófica e científica ocidental, iniciada pela fabulosa
invenção da definição por
Sócrates, Platão e Aristóteles, como se fez o percurso histórico entre duas
filosofias do movimento.
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