O que é para ti a Filosofia? Perguntou-me o Luís
Tavares, meu colega de blogue.
1. A Filosofia ? é um nível precioso, embora bastante abstracto, para
compreender as coisas em geral do universo, do universo terrestre (os astros e as galáxias são vistos da terra), nós
humanos incluídos privilegiadamente, claro. Mas não tanto eu, FB. Isto é, não tenho uma busca
predominantemente existencial, ao contrário de boa parte da gente nova que tive
como alunos. Creio que a razão disto é eu ter chegado à filosofia muito tarde,
pelos meus 23 anos e num contexto pessoal em que o cristianismo era predominante:
ele foi-se esvaziando, laicizando se posso dizer assim, mas as questões
existenciais não vieram nunca à baila da minha curiosidade. O meu ponto de
partida foi mais de ordem histórica e civilizacional, implicando as ciências e
o cristianismo. E como cheguei tarde e com um grande interesse, uma grande
paixão espiritual não filosófica, aconteceu que as minhas primeiras questões
foram teológicas (sobre o que sabia Jesus, humano e divino: a tese teológica
que me ensinaram era inadmissível) e que para lhes responder li o primeiro dos
evangelhos em Paris, no momento mais forte do estruturalismo.
2. Ora o estruturalismo foi a irrupção das
ciências humanas – a linguística, a antropologia, a história, o marxismo, a
psicanálise – na filosofia, o que implicou em mim o deslocamento progressivo da
teologia para a linguística e semiótica, articulada esta com a antropologia e a
história (como já fora a leitura do evangelho de Marcos), deslocamento que foi
acelerado pela entrada na faculdade de Letras que me obrigou a largar a teologia
pela filosofia da linguagem. A tese de doutoramento que aí fiz foi sobre a
linguística saussuriana, já sob a égide de Derrida, o qual entrou em filosofia com
uma questão inédita, a da escrita, para a qual, além de Husserl e Heidegger,
convocou Saussure, Lévi-Strauss, Freud, e muita literatura da mais difícil.
Esta, eu não a consegui, não tive nunca quem me iniciasse, rapaz novo, à
estética, paradoxo do meu nome, assim como a ética nunca me interessou por
razões de ter sido ‘existencial’ a minha entrada no mundo intelectual, me ter
ficado ‘resolvida’ na sua problemática com o chamado ‘discurso da montanha’
(Mateus, cap. 5-7), o que chamei uma ética da fecundidade além do que podemos,
uma ética de santos e de grandes apaixonados. Mas tanto o peso da teologia na
primeiro período e o da história e da semiótica, como a influência da minha
passagem pelo estruturalismo e a continuação pela desconstrução derridiana me
deram como imagem de marca o coxear de quem tem sempre um pé na filosofia e
outro fora. Foi na filosofia com ciências que este percurso desembocou.
3. A filosofia que faço é pois derivada de
Heidegger e sobretudo de Derrida: um dos seus pontos chave é a consideração, em
vez das ideias, das palavras no seu peso histórico, não se pensa senão por elas e pela tradição
anterior ao pensador, interpelado pelas questões da actualidade. Foi por isso
que me apareceu que o truque da filosofia, o que a distingue da restante
literatura, foi a invenção da definição por Sócrates, Platão e Aristóteles, que inauguraram assim um texto
gnosiológico aliado à geometria,
destacado quer das narrativas quer dos discursos em torno do ‘eu / tu’ e do
‘aqui / agora’ (Benveniste), o que vim a caracterizar como cena da inscrição,
com uma história ocidental relativamente autónoma em relação às cenas da
alimentação (a evolução dos vivos) e da habitação (a história das sociedades
humanas), com uma história – a história da escola – que teve dois momentos decisivos, o encontro desta com a
teologia cristã (Orígenes de Alexandria, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino)
e com o laboratório científico no século XVII. O primeiro teve como
consequência que a filosofia, juntamente com a geometria e o direito romano,
esteve no berço da Europa antes desta existir, o que é algo de rigorosamente
inédito em toda a história das sociedades humanas, tanto quanto posso saber, o
que deu à filosofia um lugar de instauradora da civilização moderna, alterado pelo segundo encontro, que teve como
consequência a universalidade histórica da técnica, que domina esta mesma modernidade.
4. Esta dominação veio a dar um acabamento à
história da filosofia greco-europeia, ao seu dualismo constitutivo – dentro /
fora, alma / corpo, sujeito / objecto – pelo ser no mundo heideggeriano e sua viragem para o Ereignis, obrigando-a a sair da sua ‘interioridade’
gnosiológica resultante da definição para abraçar com Derrida a imensidade da
sua ‘exterioridade’ civilizacional. Procurar compreender as coisas do universo
terrestre, a matéria e a energia, os vivos, as sociedades, os textos, a gente, é
a isto que eu brinco.
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