1. No lançamento do Heidegger, pensador da
Terra na Fábrica do Braço de
Prata a 30 de março de 2012, a convite e boa hospitalidade do Nuno Nabais e com
a generosa e cúmplice participação da Irene Borges Duarte, pôs-se a questão dos
exemplos em Filosofia, se são necessários ou porventura estorvos que distraem
do que verdadeiramente conta. Claro que se trata de uma questão a que
diferentes leitores darão respostas diversas, mas no caso do Heidegger a
questão para mim prende-se com a relação do pensamento dele com a
fenomenologia. Disse eu que a maior dificuldade desse pensamento é o grau de
abstracção dos seus argumentos, quase como se de matemática se tratasse, e da
raridade dos seus exemplos, sendo que estes me fazem sempre falta para
compreender o que está em questão. E acrescentei no final que, tendo vindo
tardiamente à filosofia, nunca estive nela com os dois pés, como aqueles que a
recebem como primeira formação universitária, mas sempre com um pé dentro e
outro fora. Ora, eu creio que no caso do Heidegger os exemplos, os meus em todo
o caso, têm um estatuto filosófico próprio, se se tem em conta o seu motivo da
diferença ontológica, entre o Ser (e mais tarde o Ereignis, Acontecimento) e os entes, aquele a nível
ontológico, estes a nível ôntico. Aquele não é ente (nomeadamente não é Deus),
é ‘nada’ que dá os entes e dissimula a doação, faz vir à presença cada ente e o deixa vir em sua autonomia temporal, retirando a
‘força’ da doação, da heteronomia doada.
2. Ora, que Heidegger tenha sempre procurado
compreender o nível do Ser, muito lentamente progredindo até ao Ereignis de 1962 (conferência Tempo e Ser), é obviamente a sua grande força de pensador e é
provável que, se tivesse dado mais atenção aos exemplos, se arriscasse a ser
compreendido ‘por baixo’, se dizer se pode, como se queixou, por exemplo, do
‘humanismo’ de Sartre na Carta sobre o Humanismo a J. Beaufret. Só que esses entes correspondem ao
nível da descrição fenomenológica pelo qual ele entrou, pela mão de Husserl e,
se rompeu com o mestre, foi para indagar justamente, não dos entes, das coisas,
mas do que as dá, do Ser pois. É então possível, e para mim necessário, a título
de fecundar outros tipos de discurso com o pensamento heideggeriano,
nomeadamente os científicos, é justo que se tente compreender como as
categorias de doação com retiro ou dissimulação dessa doação, podem ajudar a
pensar os discursos da biologia (exemplo que procurei ilustrar no colóquio de
Fenomenologia de Évora, em Outubro de 2011, nomeadamente em debate com A.
Damásio) ou da psicanálise, da antropologia, das ciências da linguagem. O
nascimento parece-me claramente um bom exemplo, o melhor porventura, da sua
busca pelo que faz vir à
presença e deixa vir, em
contraponto com o papel da morte para o Dasein em Ser e Tempo. E a aprendizagem, conascimento diz-se em francês
o conhecimento, já que é ela que institui o sujeito enquanto sujeito falante e
actuante na sua tribo. Questão crucial da Fenomenologia, que daria uma boa
razão a Heidegger para ter largado Husserl: cada uso que se aprende, seja
prático seja uma formação teórica, altera o sujeito, e é por isso que as noções sociológicas de
‘acção’ (Touraine) e ‘prática’ (Althusser) não são boas. Ora bem, a questão que
eu ponho, para defender ainda mais a minha herética maneira de fazer exemplos
fenomenológicos, é que presumo que o próprio Heidegger não terá dado por eles,
por algumas consequências do seu pensamento, não terá dado pelos retiros a
nível ôntico, que são o que
estrutura a reformulação que tentei da fenomenologia. Não terá entendido que o ser
no mundo altera o sujeito, que os
usos sociais da tribo do Dasein o instituem na sua maior intimidade e singularidade, de que a voz é um bom
exemplo, já que ela identifica a tribo pelo sotaque mas também a sua singularidade
(‘sou eu’, ao telefone). Já agora, sem ele também dizer que se trata deste
exemplo, a maneira como Derrida em De la Grammatologie, faz trabalhar a diferença de Saussure entre os
significantes e os sons pela diferença fenomenológica de Husserl, reduzindo a
empiricidade da voz singular (“le son entendu”) para reter apenas as suas
diferenças como significante fenomenal, estrutural (“l’être entendu du son”), a
diferença que se repete, não é
senão uma análise fenomenológica da aprendizagem da língua, de como num bebé se
institui uma voz inédita (e o mesmo se pode dizer da sua leitura do Esboço
de Psicologia clínica de Freud).
Também aqui exemplos de tipo fenomenológico podem permitir ajudar a pensar
melhor as descobertas científicas mais importantes; aliás, sem passar por
Derrida, seria mais difícil, talvez impossível usar Heidegger nessa tentativa
de compreender o que chamei O jogo das Ciências, compreender aquilo que se passa fora do
laboratório, no que chamei ‘cena’ (do tráfego, da gravitação, da alimentação,
da habitação, da inscrição): considerando o gesto de tirar um fenómeno dessa
cena para o examinar no laboratório em condições de delimitação da
multiplicidade aleatória de causalidades e depois o gesto de o restituir,
fazendo a teoria, não apenas do que se descobriu no laboratório (é o que os
cientistas fazem em geral) mas também do que se passa na tal cena em que as
regras científicas jogam em
função do aleatório da cena.
3. Isto serve também para elucidar os que ficaram
perplexos com a minha tentativa, dizendo que nem Heidegger nem Derrida eram
fenomenólogos. Sem dúvida, mas passaram por lá e não perderam nunca a ligação a
essa passagem obrigatória. Por exemplo, a dupla dimensão da différance, o seu enigma (no texto com esse título, nas Marges), corresponde justamente ao que é o mesmo (uma
língua, uma espécie biológica, uma tribo) que releva das ciências respectivas e
ao excesso fenomenológico que é o singular de cada voz falante ou de cada
indivíduo.
4. Esta aplicação da différance permite tematizar esta relação entre o mesmo e o
seu excesso (singular) em termos da minha ousadia em Física, a de propor que
cada grave é constituído por forças (nucleares, electromagnéticas,
gravitacionais) que contêm excessos energéticos (respectivamente: protões e
neutrões, electrões, graves sujeitos ao princípio da inércia), segundo a
célebre fórmula de Einstein, E = m.c2. Alguém que fala dirigindo-se
a outro, usa uma certa energia de relação, com muitas cambiantes possíveis
entre afecto e rivalidade, e a língua tem regras (ou leis, também se diz) que
são justamente o que retém essa energia sonora (ou gráfica) de forma, digamos,
civilizada. Quando a língua não consegue mais essa retenção, tanto pode dar
choro como riso ou gritos de fúria, e por aí fora. Os códigos linguísticos,
Barthes assinalava-o em S/Z,
são leis, isto é, são forças que retêm energias singulares: assim as oposições
filosóficas do logocentrismo de que Derrida nos ensinou a desconstrução, são
forças políticas nos seus efeitos sociais, o logos preponderante era o do pai e patrão,
preponderante sobre escravos, mulher e filhos, mas sujeito na cidade a
pais-patrões de casas mais ricas. O direito, por sua vez, com suas leis e códigos,
também implica teoricamente uma mesmidade (todos os cidadãos são iguais perante
a lei) que deve reter e conter as energias dos cidadãos nas suas competições.
Igualmente, julgo que se pode pensar que os cancros são excessos energéticos
que se rebelam às forças do ADN que contêm os metabolismos celulares nas suas
funções especializadas no respectivo órgão e na respectiva dimensão, a
obesidade sendo um outro tipo de fenómeno de excesso que as forças ou códigos
do ADN não contêm suficientemente. Ora bem, são estas forças que são
susceptíveis de ciência, não os singulares que se movem nas respectivas cenas,
ecológicas ou sociais, consoante o tráfego (e que já Aristóteles dizia que não
são susceptíveis de ‘ciência’). Isto é, estes fenómenos não são nunca de
‘singulares’ sozinhos, de ‘coisas em si’, mas sempre de ‘seres no mundo’ com
outros.
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