1. Li uma entrevista do filósofo João
Maria Freitas Branco, meu amigo, como um desafio, uma boa provocação. Dizia
ele, e foi a manchete do Público (3 novembro 2013): “estamos a viver uma revolução tão profunda como a do neolítico”
– com um “provavelmente” antes de “profundo” no texto que matiza um pouco a
afirmação inesperada –, a que talvez se venha a chamar “revolução informática”.
Extensa e rápida, ainda pouco sabemos dela. Afirmação inesperada, pois parece
passar por cima da revolução industrial, crendo eu que se trata da sua terceira
fase, após a primeira (até ao final do sec. XIX: máquina a vapor, ferro e
primeira química industrial) e a segunda (electricidade, automóveis e aviões,
aço e betão armado, grandes cidades), terceira fase que é certamente caracterizada
pelos transistores e pelos circuitos integrados, pela electrónica ou
electricidade de correntes fracas e susceptíveis de serem operatórias. É a
partir deste factor tecnológico novo que acho que se pode reflectir um pouco
sobre o que está a mudar tão aceleradamente, colocando questões sociais, politicas
e culturais novas.
Resumo das duas revoluções que houve
2. A invenção neolítica da
agricultura e da criação do gado arrancou os humanos à selva em que se disputavam
com outros mamíferos e outros vertebrados, criando excessos de alimentação que
libertou outros humanos para tarefas especializadas em cidades, além das da
guerra dos nobres. Tratou-se duma invenção da geografia, em sentido etimológico,
os humanos começaram a ‘escrever’ (grafia) a terra (geo), como da história que
se tornou possível a partir dessas escritas e outras artesanais, incluindo o
que assim chamamos, escrita que transcreve o que dizemos e calculamos de
maneira a poder durar além da morte dos que escrevem e pensam, a criar pois
condições de ‘progresso’, uma nova geração de discípulos podendo ir além da
herança que recebeu dos mestres da geração anterior. Polanyi chamou “grande
transformação” à que resultou do que chamamos revolução industrial e que veio
das cidades e já não dos campos que pressupõe, é claro, mas também da escrita
que no século XVII aliou a definição filosófica herdada dos Gregos com a
geometria que mede e a mecânica das forças (Newton) no que chamamos laboratório,
onde o labor artesanal faz unidade com o conhecimento humano, gerando a nossa
noção de ciência, física e química, donde inventores de variadas vocações nos
deram as máquinas, a electricidade, as químicas.
3. Se quisermos datar o início desta
modernidade, o período que vai de 1450 a 1520 presta-se a isso. Foi o tempo das
descobertas dos oceanos e dos continentes do planeta terrestre, o tempo em que
o renascimento da Europa se fez ao sul italiano como humanismo e ao norte com a
invenção da imprensa e a quebra consequente do cristianismo com a reforma
protestante, a qual só se estabilizou devido à possibilidade de os cristãos
terem a bíblia nas mãos. E é claro que colocar assim um início é sempre uma
facilitação, já que Gutenberg só teve textos para imprimir devido ao movimento
de transformação comunal e das universidades medievais dos séculos XII e XIII.
4. Esta invenção da imprensa permitiu
substituir a cópia de manuscritos um a um por trabalho muscular de copistas por
uma mecanização tipográfica que incide directamente sobre as linhas dos textos
alfabéticos compostas previamente por um só trabalho que servirá para
multiplicar as cópias que forem precisas: é nesta multiplicação, fecundidade da
tipografia, que consiste o fenómeno novo de que a cibernética é hoje, aos nossos
olhos, a última etapa. O trabalho tipográfico é industrial, faz-se em unidades
sociais especializadas, as casas de edição, representa uma incidência nova – em
relação às escolas, às igrejas e às sinagogas – da cena social da habitação, da
cidade, se se quiser, sobre a cena intelectual do saber, das escritas e
leituras, incidência essa que conhecerá mais tarde uma reversão fecunda com o
laboratório dos engenheiros que constrói artifícios variados para a cidade a
partir da colusão do artesanal da mecânica com a geometria e a filosofia natural
no laboratório científico. Mas já houvera o protestantismo e o alargamento do
renascimento na origem do humanismo como movimento de letrados voltados para o
pensamento, as ciências, as artes e a filosofia, para repensar a estrutura das
sociedades, das cidades.
5. Então a cibernética, ver-se-á
adiante porque é que prefiro este termo ao de informática, será uma forma –
entre outras, específica? não sozinha, em todo o caso – de a cena social do
século XXI incidir sobre a cena da escrita, do conhecimento e do pensamento e
tornar possível movimentos sociais, de tendência planetária talvez com o tempo,
de que se tentará esboçar um desenho. Para lá chegar, será necessário recordar
de forma resumida as principais formas desta incidência, entre a invenção da
imprensa e a cibernética. As sociedades humanas inventaram quatro formas de
inscrição (não há nome nenhum que convenha às quatro, a não ser este, que
implica que todas se aprendem) que foram diagnosticadas num texto sobre palavras,
números, músicas e imagens[1], as três primeiras articulando-se linearmente: as
palavras duplamente, feitas de fonemas ou letras imotivadas (não referem nada)
e inserindo-se em frases; os números e outros caracteres da matemática tendo
uma referência convencionada (quantitativa) e formando equações como suas
frases; os sons musicais imotivados em suas frases musicais; as imagens,
enfim, não têm articulação linear mas a superficial dum plano com moldura. É
sobre estes quatro tipos de inscrições, duas orais e duas escritas, mas aquelas
com formas de notação adequada (alfabeto e musical), que haverá diferentes
técnicas. Podemos dizer sumariamente que estas são da ordem da mecanização
(energia cinéticas, como a máquina de escrever), da química (fotografia e cinema)
e da electricidade (telégrafo), nenhuma delas podendo operar sobre as inscrições
sem um trabalho humano prévio, mais ou menos criativo, como hoje se diz, ainda
que se trate dum ‘operador’ que obedece a indicações dum ‘autor’, à maneira dos
dactilógrafos, ofício gerado pela invenção da máquina de escrever no séc. XIX,
quando a tipografia ainda exigia do autor um trabalho com “papel e tinta,
caneta e mata-borrão” (Zeca). Além dos livros, a tipografia já produzia também
jornais, tendo o sec. XIX inventado a escrita química pela luz (phôs), a fotografia que na viragem para o século
seguinte ganhou movimento (kinêsis) cinematográfico. Foi todavia a electricidade a invenção maior nos seus
efeitos, tanto na cena social como na das inscrições. É o que nos vai ocupar.
A electricidade enquanto corrente
6. Ela consiste numa forma de energia
composta de electrões de átomos metálicos que, sob certas condições (diferença
de voltagem), ‘correm’ por superfícies, sobretudo de cabos ou fios fabricados
para o efeito. Essa corrente eléctrica, que só foi possível devido à invenção da pilha pelo italiano Volta (1800)
– a electricidade foi materialmente inventada, creio ser o único caso em que não havia nada antes, por assim
dizer, apenas fenómenos estranhos de magnetismo exibidos em salões do sec.
XVIII –, tem a propriedade peculiar de se poder transformar noutras formas de
energia (locais, que não ‘correm’) e reciprocamente: cinética ou mecânica
(motor eléctrico, turbina), luminosa e térmica (lâmpadas, painéis solares,
aquecimentos), sonora (telefone), ondas electromagnéticas (rádio, televisão),
exemplos não exaustivos, nomeadamente das chamadas correntes fortes ou de alta
tensão. Esta propriedade teve uma fecundidade imensa na transformação das
paisagens na 2ª etapa da revolução industrial, já que permitiu transportar
energia, com fios ou sem fios, com altos rendimentos a grandes distâncias (tele-), de turbinas hidro-eléctricas e centrais
térmicas às cidades e fábricas onde devolve as diferentes formas de energia segundo
as necessidades locais. As grandes metrópoles do séc. XX, incluindo os
ascensores dos arranha-céus, só assim foram possíveis.
7. É a possibilidade de transformação
recíproca em energia luminosa e sonora, mas agora em correntes fracas, de baixa
tensão, e já não as que movem motores e iluminam cidades, que tornou possível a
cibernética. Partamos dum exemplo mais antigo, o telefone. Uma fala (ou uma
música) é uma ‘corrente de ar’ com frequências determinadas que um mecanismo
electro-fónico transforma em uma ‘corrente eléctrica’ que, em vez da mesma
tensão dum cabo de electricidade das nossas casas, desposa as frequências sonoras
em tão ‘alta fidelidade’ que pode no aparelho do interlocutor voltar a
transformar-se na mesma ‘corrente de ar’ que este reconhece e a que responde,
por uma mesma via no sentido do regresso. Não sou físico, seja como for que
essa transformação se passa, temos a possibilidade de dois diagramas de
frequências, sonora e eléctrica, se corresponderem, ainda que porventura à
vista deles não se vislumbre tal correspondência, que no entanto a nossa
experiência do telefone nos confirma: as duas correntes em suportes diferentes
são a mesma. Mas temos outros exemplos de fenómenos equivalentes: um trivial é
uma leitura em voz alta, em que à linearidade das palavras alfabéticas, segundo
a visão, corresponde a das palavras orais, segundo a audição, e creio que se
pode dizer que como é que os cérebros de quem aprendeu a ler fazem isso é ainda
hoje razoavelmente misterioso, em ligações entre grafos de sinapses (Changeux),
provavelmente não lineares como a escrita e a fala. Outro exemplo, menos
trivial, foi-nos fornecido pela biologia molecular: entre a sequência dum troço
de ADN, a do respectivo ARNm e a da proteína que este ‘sintetiza’, há igualmente
um paralelo exacto (que as célebres mutações genéticas podem levar a erros e
doenças).
As correntes governáveis
8. É assim esta equivalência técnica entre correntes eléctricas com frequências moduláveis,
como se diz, correspondendo biunivocamente às frequências das inscrições
sonoras (falas e músicas) ou alfabéticas e matemáticas, além das imagens (que
percebo menos como se faça), que está no coração cibernético dos dois fenómenos
novos que tentaremos compreender, os computadores e a Teia deles (WWW). O que é
que o computador tem de específico, em relação aos fenómenos de inscrição
anteriores, desde os livros e jornais à rádio, cinema e televisão, e com a
excepção do telefone? Estes funcionam segundo uma estrutura de multiplicação a
partir dum só pólo, ‘criativo’ como se diz – o autor, a redacção do jornal, a
tipografia, o locutor da rádio, o realizador e as respectivas maquinarias de
emissão –, devendo chegar a uma quantidade grande e dispersa de receptores que
acolhem os produtos inscritos sem terem sobre eles outro controle do que o da
critica pessoal, com efeitos praticamente apenas de ordem doméstica, se se pode
dizer. Ora, o computador implica estruturalmente as mãos desse operador
doméstico, mãos que escrevem em teclados palavras ou números, textos ou
problemas, e até notação musical. As imagens é outra coisa, mas com micros
apropriados também se pode falar e musicar sonoramente, mas dificilmente o
falar substitui o escrever no teclado que dispense a dactilografia, por razões
que têm a ver com a articulação fonética das palavras (as vozes são
empiricamente diferentes e a electricidade é de alta fidelidade). Também a
articulação das palavras em frases, segundo as regras da sintaxe e da semântica
das diversas línguas, implica uma limitação dos textos, à diferença da
matemática (o texto citado acima explica estas questões): o fenómeno estrutural
da polissemia das línguas,
obstáculo desde sempre à lógica que acabou por o tornear inventando um
algoritmo de tipo matemático, impede o computador de ‘pensar’ a partir do texto
que lhe é fornecido pelo teclado, ao invés da matemática que, com programas de
software adequados, consegue não só calcular muito rapidamente como inclusivamente fazer cálculos
complexos demais para os humanos. Este tipo de dificuldade computacional com as
línguas duplamente articuladas testa-se bem nas dificuldades de tradução,
embora haja melhorias notáveis nos últimos anos quando se trate de textos de
tipo técnico e não literário.
9. Ora bem, creio que se pode e deve dizer que
esta resistência da polissemia das línguas ao computador garante a parte activa
dos operadores naquilo que dizem, que querem dizer, tal como acontece aliás com
o telefone, mutatis mutandis.
Os operadores são necessários à Internet, são um factor democrático no coração
da tecnocracia que ela representa. É onde o termo ‘cibernética’ me parece mais
interessante do que ‘informática’, correlativo da semanticamente pobre
‘informação’, resposta que se dá a quem saber o horário dum comboio, o preço
duma mercadoria, o trajecto para um dado destino ou outra receita do género.
Quem pede a informação precisa dela e fica dependente da veracidade do
informante, como assim também se situa o leitor de livros e jornais, o
espectador televisivo, meros receptores, críticos embora, do que lhe enviam,
daquilo de que o informam. A palavra ‘cibernética’, do grego “arte de pilotar,
de governar”, acentua pelo contrário a capacidade de ‘piloto’ do operador, como
ele ‘governa’ o seu computador, como a operatividade deste depende da sua ‘criatividade’,
da sua “razão adulta”, como dizia Kant e J. M. Freitas Branco assinalava. E diz o
que permite essa diferença entre espectador e operador, o jogo da electricidade
como ‘corrente’ que desposa textos ou números ou músicas, que é susceptível de
1/0, de passar ou ser interrompida, de ser governada de forma produtiva. Se há
revolução, ela radica aqui, no que cibernética diz e impede de caracterizar a
Internet como um ‘média de massas’, perto do livro por esse lado, que também
suscita uma operatividade mental do seu leitor e o pode metamorfosear.
A questão política
10. Mas não há bem sem mal. Um livro não é bom só
por ser livro, ainda que best-seller, Mein Kampf foi um livro
que fez mal, a mediocridade dos ‘médias de massas’ também pode afectar os
internautas, como testemunhou autobiograficamente N. Carr que se viu incapaz de
ler um livro, ou mesmo um capítulo (ver neste Blogue a internet e os livros
que contam). É possível que muito
do que se passa nela, além dos negócios, não seja mais do que agitação,
informação e entretenimento, pouco haja de cibernética fora dos profissionais.
Creio aliás que a especulação financeira que deu cabo das economias ocidentais
nesta crise que estoirou em 2008 foi acelerada pela internet.
11. E que incidências politicas positivas, que
revolução? é a questão de Freitas Branco, o contexto da sua entrevista. É
difícil de saber por enquanto, diz ele e tem sem dúvida razão. A liberdade
activa do operador e o facto de não haver pólos de emissão e possível comando como nos outros
médias, significa um funcionamento anárquico, etimologicamente ‘sem poder’, que
normalmente é dispersivo, não facilita apelos a regrupamentos, excepto em
momentos de crise aguda do contexto social e político, como já se tem visto e
onde os telemóveis funcionam como uma espécie de complemento, porventura mais
importantes ainda. Apelos que vêm de fora da Internet e para fora dela encaminham. Mas o que poderá ser mais
significativo é o papel directamente político e democrático de discussões e de
escolhas, votações e sondagens, e por aí fora, o que se chamaria um papel democrítico, como o que exercem os blogues que ganham público
devido às questões que suscitam, papel esse que irá alem do duma ‘opinião
pública’ se for o duma ‘participação pública’. É aí que sem dúvida o futuro dirá
e fará as surpresas, o tipo de pequenas e grandes questões que poderão ser
activas democriticamente, do bairro à nação, à Europa, ao clima de planeta. Sem
que haja que pensar a Internet só, provavelmente livros e revistas, rádios e
televisões continuarão a jogar o seu papel, quiçá maior. O grande obstáculo
continuará a ser o de todos estes médias funcionarem predominantemente nas
línguas regionais e nacionais, não parecendo óbvio que o inglês macarrónico que
serve de segunda língua técnica e comercial seja adequado sem mais à universalidade
desta democrítica.
Extracto doutro texto inédito
28. É nesta história que entram os computadores,
fazendo correr electricamente os textos que os nossos dedos escrevem, dedos que
são automaticamente reduzidos com todo o seu contexto habitacional no acto
mesmo de escrever. A Teia global é feita desses textos inscritos em corrente
eléctrica, reduzido o hardware de todos os aparelhos, e lidos em ecrãs, a corrente eléctrica escapando à
nossa percepção. Claro que entre esses escritos que circulam há muita
narrativa, muita efusão afectiva do Mundo, tal como numa carta que para isso é
escrita ; também há elementos indicadores da proveniência dos textos, como
datas e assinaturas nas cartas, mas a aceleração eléctrica, os reenvios frequentes
esbatem-nos. Mas no que diz respeito a textos de pensamento e conhecimento que
circulam, ainda que assinados como os livros das bibliotecas, o seu
encavalitamento uns atrás dos outros cria uma espécie de palimpsesto
electrónico em que, referido embora o Mundo da habitação e alimentação, essas
referências exigem a competência inteligente do leitor, com o risco de a
‘corrida’ textual fazer mais para diluir do que para intensificar essa inteligência[2].
A palavra tradicional que diz este efeito é ‘especulação’. Ela foi usada para
criticar a maneira escolástica de transmitir o saber por leituras, comentários
e debates universitários de textos recebidos dos antepassados, os comentários
de Agostinho pelo Lombardo sendo em seguida comentados, como os de Aristóteles
pelo Aquino. O texto fala do Mundo, define e argumenta, é ‘espelho’ (speculum) dele, reenvia para outros textos sem quase se
tocarem, com um jogo de espelhos reflectindo-se uns nos outros. Essa maneira
especulativa foi a ‘chance’ da futura Europa, quando começou a conhecer por
‘experiência’ coisas de que esses livros antigos não sabiam nada, como Duarte
Pacheco Pereira já argumentava por ela contra a autoridade dos Antigos um
século antes de Galileu. Especulação é o reenvio de textos para textos sem
passarem pelo contrôle experimental das coisas de que esses textos falam. Não é
necessariamente pejorativo : qualquer demonstração matemática o faz, é a
grande virtude do operar matemático, mas de que carecem as línguas duplamente
articuladas, que têm que recorrer a definições para argumentarem logicamente a
partir delas, chegando no entanto, num Heidegger por exemplo maior, a um nível
de abstracção notável, muito parco em exemplos. A hipótese colocada aqui é a de
que a Teia se presta a um tipo electrónico de especulação, de mensagens que
reenviam a mensagens com os seus contextos de habitação sempre reduzidos, o que
daria azo a uma tendencial oposição entre os ecrãs e o Mundo de que eles falam e que reduzem, com alguma
analogia com a oposição clássica entre a alma e o corpo com o respectivo mundo.
Presta-se a um idealismo electrónico, que a corrida da corrente acelerará. Onde encontrar uma analogia para o
que quero dizer ? nos alunos fracos que repetem o que leram sem terem
percebido grande coisa : se se prestam a ler, os ecrãs prestam-se também a tresler. Insisto no ‘prestar-se’, toda a leitura se
presta a isso, é a razão da crítica platónica da escrita no Fedro. O que
ajudará a impedir esse risco de tresler é a necessidade, como em relação às
bibliotecas, de haver guias de leitura : os professores são sempre
imprescindíveis. Não é só a Teia
que assim contribue para a multiplicação da ‘bêtise’, da ‘burrice’ ; como
sempre houve livros e jornais imbecis, também acontece rádios e televisões
serem financiadas por critérios de audiências, por um lado, como por outro,
após um dia de trabalho quantas vezes monótono e um trajecto cansativo de
regresso a casa, apetece qualquer banalidade que nos queiram impingir, que
chegam ao ponto de trazerem as gargalhadas e as palmas já gravadas no programa,
para sublinhar a imbecilidade da coisa que permite escapar ao engravatado dos
empregos, dos mal-empregados.
29. Mas pode-se ter uma perspectiva mais positiva,
quando se pensa que muita gente encontra no ‘emprego’ do Ge-stell, não um ofício que goste de fazer mas um salário
para o tempo livre, aquele em que não está no emprego. A partir da instituição
de correios electrónicos, em que cada um tem que tomar a iniciativa de abrir um
endereço e de ir bater à porta de outros, sem que haja poder institucional de
contrôle interno à Teia – que é um albergue espanhol –, podem-se criar todo o
tipo de alianças segundo interesses próprios, com muito maior facilidade do que
com os meios anteriores e bem maior alcance geográfico, desde que haja língua
comum aos assim aliados. Reduzidos electronicamente os seus corpo e mundo, não
se é solipsista no entanto como a alma de Platão e Descartes. E encontra-se na
Teia algo de novo, e para todos os gostos. Para espectadores que busquem
saberes de todos os géneros, que podem inclusivamente encontrar coisas raras e
difíceis, que a poucos interesse, como que uma enciclopédia imensa de todos os
níveis culturais. Quem se sinta monótono na sua vida habitacional, entre
família e emprego, tem mil maneiras de respirar melhor (mas pode não encontrar
nenhuma, é claro, se não se souber orientar). Pode encontrar nos ecrãs o que
lhe permita divertir-se, o
‘diverso’ que se solta do ‘universo’ obrigatório para poder respirar em
direcções várias e não constrangidas : cultura e espectáculos vários, o
novo ‘ópio do povo’, termo que já não é necessariamente negativo se compensação
para vidas cansadas e sem horizontes quando as revoluções se tornaram coisa do
passado, o ‘ópio’ sendo um prazer quando o contexto aborrece, melhor em todo o
caso do que o ópio propriamente dito. A cultura antes de mais: a Teia oferece a
qualquer um o acesso aos maiores tesouros e monumentos da história da
humanidade. O prazer cultural, além da especialização profissional, poderá ter
o sentido forte do que outrora se dizia ‘espiritual’, que começou por ser
liberdade de respirar além das clausuras das doxas, sentidas como asfixiantes, como foi a
filosofia de Platão, por exemplo, a espiritualidade dos tempos do neoplatonismo
plotiniano ou no século XIV a ‘devotio moderna’. Foi a força dessas
experiências, em que intelectual e espiritual não se distinguiam nitidamente,
que se impôs de tal forma, que o corpo e o seu contexto mundano tornaram-se
mesquinhos, redução dos usos da habitação, riquezas, glórias das guerras e
luxos afins. Assim há por vezes quem aposte tudo, o emprego incluido muitas
vezes, no viver sem apoios, a respirar fora do mundo mundano : como
convidam os textos de Nietzsche. Ou, para quem os souber ler, os capítulos 5 a
7 do evangelho de Mateus que tanto seduziu Pasolini, herege de todas as
ortodoxias.
Ver também neste blogue A Internet e os livros que contam.
[1] http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/fbelo.htm.
Palavras, Números, Músicas, Imagens. Livro, Cérebro, Computador.
[2] Não há nada melhor para pensar do que ler bons textos, devagar e com lápis
na mão, e ir escrevendo o que eles derem a pensar.
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