(uma
leitura do MANIFESTO DO PARTIDO
1. “Apesar das
circunstâncias terem mudado muito no decurso dos últimos 25 anos, os
princípios gerais expostos neste Manifesto conservam ainda hoje a sua exactidão
nas suas grandes linhas. Haveria que rever, aqui e ali, alguns detalhes. O próprio
Manifesto explica que a aplicação dos princípios dependerá em todo o lado e sempre
das circunstâncias históricas dadas, e que, por consequência, não há que atribuir
importância demasiada às medidas revolucionárias enumeradas no final do capítulo
2. Esta passagem seria hoje, em bastantes aspectos, redigida de forma
diferente”, escrevem Marx e Engels no prefácio que redigiram para a reedição
de 1872 do que consideram um “documento histórico que não nos atribuímos já o
direito de alterar”193. Chamaria a esta
advertência, que me parece digna de quem elaborou com tanta pujança a primeira
grande ciência europeia da história, regra da historicidade: a regra
não-dogmática da articulação entre os “princípios teóricos” dessa ciência e as
“circunstâncias” do movimento histórico que é o próprio domínio dessa
ciência. Ora, a leitura dessas 10 medidas (expropriação da propriedade fundiária,
imposto altamente progressivo, abolição da herança, centralização do crédito
nas mãos do Estado, etc.) mostra que não se tratava apenas de ‘detalhes’ e a
questão pôr-se-nos-á, 150 anos, e já não apenas 25, após a sua enunciação, de
saber até que ponto a distinção entre os “princípios teóricos” e as “medidas de
aplicação” não depende também das “circunstâncias” do próprio movimento
histórico: a teoria marxista não é ela também radicalmente histórica, não
estará sujeita às revisões que ditarem as alterações das circunstâncias da sua
enunciação?
2. Bem sei que é
uma imensa questão e que, mais do que o tempo aqui, me falta a competência para
poder tentar uma resposta cabal. De forma que me darei limites drásticos: os
da leitura apenas do texto do próprio Manifesto cuja publicação comemoramos
e dos seus quatro prefácios, os de 72 e de 82 de Marx e de Engels, e os de 83 e
de 90 de Engels apenas. Quanto aos limites de competência (lerei o Manifesto e os seus prefácios
com alguma ingenuidade, sem conhecer a história das suas releituras), modalizarei
estas reflexões pelo condicional, pelo seu carácter de hipóteses de interpretação.
E se se achar que, mesmo assim, há abuso, só me resta a justificação duma necessidade
intelectual que releva do meu próprio percurso.
3. Se estou aqui
convosco a comemorar o Manifesto, é por me considerar seu herdeiro. Fui marxista entre os
finais dos anos 60 e os dos anos 70, deixei de o ser na década de 80 quase sem
dar por isso, porque o marxismo se me foi gastando, inadequado às questões
filosóficas que então me ocupavam (de filosofia da linguagem e de epistemologia
da linguística), que não eram primariamente questões de sociedade e de justiça
social. E quando estas voltaram a tornar-se manifestas, evidentes, imensas e insolúveis
a curto e médio prazo – desde o desemprego estrutural e da flexibilidade do
trabalho à impotência dos países africanos e outros –, aquando da implosão do
comunismo soviético há uma dezena de anos, senti, como muitos outros, o incómodo
do vazio de pensamento que o esgotamento do marxismo deixara. Se não sou já
marxista (mas nunca fui leninista, nunca o consegui ler, devo a Althusser o
encontro com o marxismo pré-leninista), não sou no entanto ex-marxista como
muitos por aí – para quem ex-marxismo significa anti-marxismo –, e a avaliação
crítica que aqui vou arriscar é justamente a tentativa de guardar dessa tão
forte herança o que seja essencial para pensar o movimento histórico
contemporâneo. Mas se comecei por invocar o que chamei regra não-dogmática da
historicidade, é porque procurarei ser um herdeiro crítico e impiedoso: a
‘beatice’ (ou dogmatismo) seria a de tudo querer guardar, com a consequência
de para nada tal servir. Os tempos que correm pedem, a quem trabalha nos
domínios do pensamento filosófico e histórico, que se refaça o gesto
essencial da modernidade, o de repensar e avaliar (seleccionar: reter, rejeitar,
reformular) todas as grandes heranças do pensamento europeu: grega, hebraica
e cristã, romana, iluminista, marxista, que sei eu. E desde já adianto que
deste reterei sobremaneira duas grandes lições filosóficas, uma relativa
ao pensamento histórico, outra às sociedades modernas. E seja qual for o
interesse que esta minha comunicação possa suscitar junto de vós, quereria
que soubessem que escrevê-la foi para mim um acto de saúde intelectual. Por
isso quero agradecer, de antemão e do fundo do coração, o convite que me foi feito
para estar aqui.
As grandes alterações históricas
4. Começarei por
esboçar o quadro das grandes alterações históricas após o período de referência
de 1848-1890. a) Marx e Engels escreveram e pensaram no apogeu da primeira
fase da revolução industrial, a que ocorreu desde o último quarto do século
XVIII (em Inglaterra) até aos finais do século XIX, fase essa caracterizada
pela máquina a vapor, o carvão, o ferro e a primeira química, primeira fase que
multiplicou as fábricas, atravessou as paisagens das jovens nações modernas
com os caminhos de ferro e os oceanos com os navios a vapor, criou um proletariado
industrial como classe trabalhadora (com algum paralelo com a escravatura,
base da agricultura dos nobres guerreiros de outrora), instaurou o ensino primário
obrigatório e desenvolveu o liceal e universitário para as elites burguesas. b)
A segunda fase, desde o final do século XIX até aos três quartos do século XX,
foi a da electricidade, dos motores eléctricos e de explosão, do aço, do
betão, do petróleo e da química do plástico, do automóvel e do avião, fase que
criou as grandes cidades e seus prédios altamente concentrados do que se chama
classes médias, as quais saíram dos liceus generalizados a quase toda a população,
classes dos empregados de escritório e de serviços, dos técnicos de inúmeras
especializações, fase essa que, depois de ter aligeirado fortemente a dureza
do trabalho operário nas fábricas, fez diminuir o proletariado nos países
mais industrializados, como na fase anterior sucedera com os trabalhadores da
agricultura, aligeirou também o trabalho feminino com os electrodomésticos,
libertando as mulheres para os empregos outrora masculinos. c) A etapa actual
está no seu início, caracterizada pela electrónica e pela internet, pelo
tratamento e circulação de ‘linguagens’, pelos robots e computadores que
aliviam trabalhadores de todas as categorias dos trabalhos mais monótonos,
musculares ou de escrita e contas, mas também os expulsam para um desemprego
crescente e flexibilizam e tornam inseguro o emprego dos outros, destruindo
uma boa parte das condições de trabalho mais humanas conseguidas pelos
movimentos sociais históricos dos trabalhadores durante a segunda fase da
revolução industrial.
5. Marx e Engels
não conheceram pois nem a electricidade, nem o automóvel, nem o betão armado. A
segunda fase da revolução industrial, por um lado, alterou muito fortemente as
condições e relações sociais nos países capitalistas, por outro, suscitou em
países que estavam ainda sujeitos a relações feudais ou coloniais o desejo dum
desenvolvimento industrial acelerado. Esta duplicidade de situações, típica da
2ª fase da industrialização capitalista, parece-me permitir compreender a
bifurcação essencial que conheceu o movimento histórico que se reclamava do
marxismo: o leninismo foi a forma que, sem excepção, se implantou nos países
atrasados, enquanto que, nos países mais adiantados, desde o início do século
XX (à excepção dos países latinos de tradição predominantemente católica que
são a França e a Itália), foi o reformismo social-democrata (sindicatos e
partidos) quem protagonizou a condução das lutas do movimento operário de que
resultaram as seguranças sociais, as férias pagas, a melhoria substancial –
inequívoca nesses países – do poder de compra e das condições dos
trabalhadores assalariados. Do meu ponto de vista de herdeiro, não devo
perfilhar a priori nenhuma dessas duas correntes: a regra da historicidade
diz-me que se tratará justamente de duas maneiras diferentes de articular os
“princípios teóricos” recebidos de Marx e Engels e as tão obviamente
diferenciadas “circunstâncias” do movimento histórico. A dificuldade é que
os próprios princípios teóricos foram questionados pelo movimento
social-democrata, a própria teoria considerada histórica e feita objecto de
‘revisão', donde o apelativo pejorativo de ‘revisionismo’ vindo dos
leninistas, com o risco inerente de, ao menos em relação às diferenças de
circunstâncias históricas, serem por sua vez acusados de dogmatismo, de
cegueira à própria história. Quanto à 3ª e tão recente fase, a da electrónica
e da globalização acelerada, ela liquidou o leninismo de forma inapelável e
está ameaçando os ganhos históricos do movimento reformista.
A descoberta deslumbrada da inteligência da história
6. O prefácio de
1883, o primeiro que Engels redigiu sozinho, contém apenas a declaração
expressa de que “a ideia fundamental e directora do Manifesto [...] pertence
única e exclusivamente a Marx”
(id. p.
11). Essa “ideia-mestra” é assim resumida: “a produção económica e a estrutura
social que dela resulta necessariamente formam, em cada época histórica, a
base da história política e intelectual dessa época; por consequência (desde
a dissolução da propriedade comum do solo dos tempos primitivos), toda a
história foi uma história de lutas de classes, de lutas entre classes
exploradas e classes exploradoras, entre classes dominadas e classes
dominantes, nas diferentes etapas do seu desenvolvimento social; mas esta luta
atingiu actualmente uma etapa onde a classe explorada e oprimida (o
proletariado) já não se pode libertar da classe que a explora e oprime (a
burguesia), sem libertar ao mesmo tempo e para sempre a sociedade inteira
da exploração, da opressão e das lutas de classes” (ibid., sublinho o dogmatismo).
Em nota posterior, Engels evoca como Marx lhe expôs claramente esta ideia
quando se conheceram, em 1845.
7. Esta fidelidade
à memória do amigo defunto ajuda-nos a reconstituir imaginariamente o
deslumbramento do jovem filósofo hegeliano de vinte e poucos anos que rompe
com a primeira grande filosofia europeia da história pelo deslocamento que
opera do seu sistema, do campo centrado em torno do par sujeito / objecto,
para uma filosofia da história, das suas estruturas e classes sociais. Este
deslumbramento é o de quem descobre a própria lógica da história: é essa lógica
descoberta, até aí dissimulada, que ‘manifesta’ o primeiro capítulo do Manifesto, onde não aparecem
as duas outras palavras do título do texto (nem ‘partido’ nem ‘comunista'), que
abundam nos dois outros capítulos. Ora, o título desse primeiro capítulo,
“Burgueses e Proletários”, aos nossos olhos que o lêem 150 anos depois,
inscreve-se irresistivelmente no contexto da primeira fase da revolução industrial,
durante todo o século XIX, e sem dúvida que a própria paisagem urbana, extremando
fortemente os bairros habitados pelas classes dominantes e pelas outras classes
burguesas dos subúrbios miseráveis onde se alojava em péssimas condições o
proletariado das novas fábricas que espalhavam nuvens de fumo negro e odores
químicos quase irrespiráveis, essa paisagem ajudava ‘visivelmente’ à ‘evidência’
intelectual do filósofo. O que o 1º capítulo do Manifesto terá feito, em
seguida, foi ter dado acesso a muitos operários e outros não-intelectuais, que
viviam / viam esse urbanismo exacerbado de exclusão total de classes,
ter-lhes dado acesso ao vislumbre dessa lógica ‘científica’ da história. Quem
não conheceu excelentes militantes operários convencidos da cientificidade e
inevitabilidade do comunismo?
8. Mas seria
estultícia que nos apressássemos a concluir, à maneira ex-marxista, sobre a
ultrapassagem do marxismo pela própria lógica da 2ª fase da revolução
industrial e capitalista, que contrariou, nos factos históricos, as previsões
do Manifesto. Por um lado, porque a corrente social-democrata saída
do marxismo não foi alheia a essa ultrapassagem, mas sobretudo porque a descoberta
de Marx vai além das alterações futuras e das suas previsões. E vai além da descoberta
de Marx, indivíduo, o próprio Manifesto o assinala no início do seu 2º
capítulo: “as concepções teóricas dos comunistas não repousam de forma nenhuma
sobre ideias, princípios inventados ou descobertos por tal ou tal reformador
do mundo” (idem, p. 38). Como se pode ver
algum efeito de denegação, em sentido psicanalítico, nesta citação textual que
‘denega’ os seus próprios autores e, por outro lado, como 150 anos são passados,
recorrerei a uma outra citação recente, insuspeita porque dum filósofo,
Jean-Luc Nancy, que nunca foi marxista e que escreve em 1991, justamente em
plena época da implosão soviética.
9. Eis. “Há [...]
uma mudança geral, na época de ‘Marx', do regime do próprio pensamento, um
deslocamento em profundidade da maneira como ‘pensamento’ e ‘realidade
histórica’ se indexavam um na outra e na maneira como isso mesmo se dá a
pensar. [...] O que faz com que ‘Marx’ seja talvez menos e mais do que um pensador:
um acontecimento em que o pensamento se vê perspectivado de outro lado. A praxis e o comum como o próprio assunto
[de que se ocupa] o pensamento, e onde o pensamento se torna para si mesmo
desconhecível.” E mais adiante: “O que se produz na época de Marx [...] é isto:
que o ‘real’ se torne, expressamente, o sujeito do pensamento, e não o seu
objecto. Ou ainda: que o ‘real’ se explicite enquanto ‘sujeito’ do pensamento.
Quer dizer que o pensamento toca num ponto em que tem que se retornar, ou se
torcer sobre si mesmo, para exibir o que o faz pensamento (e não
apenas o que o ‘faz pensar') e que ‘ainda’ não é o ‘pensamento'. Do que ele
exibe assim, também exibe, no mesmo gesto, a exterioridade e o carácter de
excesso sobre tudo o que ‘pensamento’ pode designar ou representar. Isto
arrasta, a prazo, um certo número de transformações do próprio pensamento do
‘sujeito': Nietzsche, depois Freud, depois Heidegger, não estão longe de
Marx. É talvez mesmo esta ‘proximidade’ (singular, seguramente) que temos
ainda que aprender a captar”. E ainda: “O que acontece, de Hegel à época de
Marx, é que a efectividade dum ‘fora comum’ da filosofia (o ‘trabalho’, a
‘indústria’, as ‘classes’, a ‘miséria’, os ‘povos’, o ‘mercado’, o ‘dinheiro’,
as ‘forças, os ‘corpos’) faz-se valer como o lugar, como o sujeito e como a praxis
do que Hegel chama ‘a ideia’ “(Nancy)194.
10. Não podendo
detalhar o pensamento de Nancy, limitar-me-ei a sublinhar como ele diz o
deslocamento filosófico de Hegel a Marx: do sujeito humano para o ‘real’ da
história dos humanos. É este real histórico, acontecimento decisivo da história
da filosofia europeia, que se pensa – sob forma de divulgação, como se diz – no texto do
Manifesto. Esta, a primeira das duas lições marxistas que retenho hoje aqui. A
segunda dará mais trabalho a dizer, uma vez que terá que ter em conta a regra
da historicidade aplicada ao conteúdo mesmo da ‘descoberta da lógica da história’
por Marx, terá que ter em conta o que, na continuação da história, desmentiu
(ou não) essa lógica. E se se achar que esta primeira lição é filosoficamente
demasiado abstracta, ao menos dela algo se entenderá quanto ao meu propósito
aqui: o que nos importa não é dizer bem ou mal de Marx, contabilizar mais ou
menos o que guardar dele, mas ter critérios para reter o que, deste deslocamento
‘filosófico’ formidável, que outros pensadores levaram em outras direcções
também, vale hoje ainda como pensamento. É uma imensa questão, pela qual
vogam estes meus ensaios, como sei e posso.
Quatro críticas ao 1º capítulo do Manifesto
11. O 1º capítulo,
o da manifestação da história – “a história de qualquer sociedade até aos
nossos dias não foi senão a história de lutas de classes” –, reparte-se grosso
modo em duas metades, uma dedicada ao processo revolucionário da Burguesia
triunfante, a outra à descrição do processo revolucionário do Proletariado por
vir195. Pegarei em quatro pontos.
12. O argumento
central (id. pp. 28-29), que faz a transição entre os dois quadros, baseia-se
na analogia entre a violência da revolução burguesa, que quebrou as cadeias
feudais que travavam o desenvolvimento das forças produtivas, e a história da
indústria e do comércio que havia dezenas de anos que era a revolta das
forças produtivas modernas contra as relações de produção ou regime burguês da
propriedade. Exemplo: as crises comerciais como epidemia de sobreprodução,
como desordem da sociedade burguesa que ameaça a existência da propriedade privada.
“Como é que a burguesia ultrapassa estas crises? Por um lado, destruindo pela
violência uma massa de forças produtivas; do outro conquistando novos mercados
e explorando mais a fundo os antigos. Aonde é que isto chega? À preparação de
crises mais gerais e mais formidáveis e a diminuir os meios de as prevenir”.
150 anos passados, é difícil de resistir à presciência desta citação: as guerras
terríveis deste século e o negócio das armas como destruição, a conquista de
novos mercados (hoje nada do íntimo das nossas casas parece escapar ao mercado
da chamada comunicação social) e as novas e permanentes crises. Mas a sequência
do argumento – a incapacidade de resistência do regime de propriedade burguês
ao progresso das forças produtivas e a inevitabilidade da vitória do proletariado
(última frase do capítulo) – foi desmentida pela história.
13. O meu 2º ponto
procura encontrar no próprio texto razões para esse desmentido, no contraste
entre a evocação dos dois actores míticos da cena: “a sociedade divide-se em
duas grandes classes diametralmente opostas” (id. p. 23). A Burguesia é descrita,
desde a sua formação nos burgos medievais, como vencedora, tendo “jogado na
história um papel eminentemente revolucionário” (id. p. 24): “submeteu o campo
à cidade, os países bárbaros aos civilizados, subordinou os povos de camponeses
aos povos de burgueses, o Oriente ao Ocidente”, “na sua dominação de classe
ainda não secular, criou forças produtivas mais numerosas e colossais do que
tinham feito todas as gerações passadas em conjunto” (id. p. 27). Enquanto
que, pelo contrário, o Proletariado é composto de operários despojados de
tudo, “obrigados a venderem-se dia a dia, são uma mercadoria”, “simples
acessório da máquina, a quem não se exige senão a operação mais simples, monótona,
fácil de aprender” (“o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e
das crianças”), “escravos da classe burguesa, do Estado burguês, [...] da
máquina, do capataz, e sobretudo do burguês fabricante” (id. pp. 29-30). A
sua força consistirá, não tanto nos triunfos efémeros em defesa dos seus
salários (exemplo com a lei das 10 horas diárias na Inglaterra de 1847),
mas na sua união política, numa luta nacional e internacional de classes que
os modernos caminhos de ferro permitem. Os “elementos de educação” vêm-lhe
da burguesia: quando esta se alia com ele nas suas lutas contra outros interesses,
quando precipita no proletariado fracções inteiras da classe dominante, e
enfim, “da mesma maneira que, outrora, uma parte da nobreza passou para a burguesia,
também nos nossos dias uma parte da burguesia passa para o proletariado e,
nomeadamente, essa parte dos ideólogos burgueses que se içaram até à
inteligência teórica do conjunto do movimento histórico” (id. p 33), ou
seja, os próprios Marx e Engels. Sem educação, sem propriedade, sem família
em sentido burguês, sem carácter nacional, sem leis, moral, religião, “sem
nada que salvar que lhes pertença” (id. p 34), estão aptos para a revolução
guiados pela “inteligência teórica do conjunto do movimento histórico”; o
que esta não previu, essencialmente se tendo passado no século XX, foi que
justamente um dos meios da burguesia para resolver as suas crises de
sobreprodução tenha sido ‘dar’ ao proletariado educação, garantias de
salários e de saúde, alguma propriedade, família e moral, como condição da
sua integração nos novos mercados necessários para ultrapassar as crises, e
que essa ‘doação’ tenha sido conseguida pelas lutas operárias classificadas
de efémeras, conduzidas pelos seus sindicatos e partidos sociais-democratas,
que essa maneira da integrar o proletariado e este modo de conseguir aquilo
de que o Manifesto constatava a carência gritante viesse de uma outra
“inteligência teórica do conjunto do movimento histórico”, a de Keynes. O
fresco da tão nítida oposição Burgueses / Proletários foi perdendo nitidez.
14. O 3º ponto da
minha indagação diz respeito ao lugar curioso que o Manifesto dá à máquina na sua
composição teórica. Por um lado, tem um lugar revolucionário inequívoco: “os
mercados alargavam-se sem cessar: a procura crescia sempre. A manufactura,
por sua vez, torna-se insuficiente. Então o vapor e a máquina revolucionaram
a produção industrial” (id. p 23). Mas por outro lado, creio que em nenhuma vez
ela se liga expressamente ao conceito decisivo de “forças produtivas”, da mesma
maneira que não é nunca expressamente colocada como ‘invenção’ da burguesia
revolucionária, e ainda que é ignorado o papel crucial do engenheiro e da
ciência (e isso vai porventura além do Manifesto, julgo ser lacuna
da teoria marxista, quiçá porque pouco visível no século XIX, apesar de que já
em 1776 o engenheiro Watt se aliara ao capitalista Boulton para fabricar as
máquinas a vapor da sua invenção). Se a máquina, elemento revolucionário, não
pertence à burguesia revolucionária, poder-se-ia pensar que seria no sentido
de lhe reservar a possibilidade de estar do lado do proletariado, adentro
juntamente das “forças produtivas”. Mas não é isso que parece se passar no Manifesto: já indiquei acima
como o operário é um acessório e um escravo da máquina; na 1ª fase da sua luta
contra a burguesia, o proletariado destruiu máquinas, estas apagaram “toda a
diferença no trabalho e reduziram em quase todo o lado o salário a um nível
igualmente baixo” (id. pp. 31, 32). No 3º capítulo chegar-se-á a falar na
“demonstração irrefutável dos efeitos mortíferos do maquinismo” (“e da divisão
do trabalho”)196. Ora, hoje, passados
150 anos, parecem-me claras três coisas. a) Que a 2ª fase da revolução
industrial e capitalista contrariou um argumento decisivo do Manifesto, segundo o qual “o
operário moderno, em vez de se elevar com o progresso da indústria, desce
sempre mais baixo, abaixo mesmo das condições de vida da sua classe [...] é
portanto manifesto que a burguesia é incapaz de preencher mais tempo o seu
papel de classe dirigente e de impor à sociedade, como lei suprema, as
condições de existência da sua classe; ela já não pode reinar, porque é incapaz
de assegurar a existência do seu escravo no quadro da sua escravatura, porque
ela é obrigada a deixá-lo decair ao ponto de ter de o alimentar em vez de se
fazer alimentar por ele” (id. p. 35); pelo contrário, uma franja considerável
do mundo operário ‘emburguesou-se', esse início de desproletarização tendo
prosseguido na 3ª fase pela tecnicização dos que trabalham com máquinas
electrónicas. b) Que esta 3ª fase, sob a forma de flagelo que é o desemprego é
certo, está pondo à luz o enorme benefício da máquina, uma das grandes
promessas do século XVIII: substituir o esforço muscular e cerebral repetitivo
dos humanos, libertar o tempo destes para actividades culturais e lúdicas. c)
Que o desenvolvimento informático e robótico e das actividades de carácter
comunicacional está dando ao engenheiro e, em geral, ao capaz de ‘performances’
rentáveis, um lugar primordial, que se pode mesmo sobrepôr ao do capitalista,
como sugere a figura de um Bill Gates.
15. E chego ao meu
quarto ponto sobre o 1º cap. do Manifesto, a ver com a
composição do seu conceito de revolução, burguesa ou proletária. Julgo – não
pude dispor do tempo de trabalho semiótico necessário para maior certeza – que
ele tem duas componentes: a força e a razão, aquela afirmada nitidamente, já
que necessária para tomar o poder e quebrar os laços que se lhe opõem,
afirmada, por exemplo, como violência e brutalidade. Quanto à razão, tão
exaltada nas filosofias de Kant e de Hegel, todos aqui estaremos de acordo em
que o que fez a força histórica de Marx foi justamente a sua proposta da
revolução – a transformação duma situação social gritante de desigualdade, o
luxo duns poucos à custa da miséria duma multidão – ser feita, não em termos
de moral ou de utopia, mas nos de uma reflexão racional sobre o que possibilitou
essa mesma situação social e o que impedia essa transformação revolucionária. A
razão faz parte assim, com a violência, do conceito marxista de revolução, mas no Manifesto, ela afirma-se
discretamente, sem que a própria palavra apareça (não dei por ela na tradução
clássica de Laura Marx): diz-se por exemplo no cálculo egoísta e no pagamento
a pronto, por um lado, e, por outro, no negativo da frieza, da impiedade, da
anti-sentimentalidade, do carácter aberto e directo (ou seja, manifesto) da
maneira da burguesia ter calcado aos pés as relações feudais (id. p. 25).
Também na necessidade já referida de “elementos de educação” que vêem ao
proletariado da burguesia197, a
“inteligência teórica” dos ideólogos burgueses que passaram ao proletariado
sendo a única menção explícita no 1º capítulo, retomada aliás no início do 2º
(id. pp. 37-38), o qual contém ainda uma breve discussão dos “pontos de vista
religiosos, filosóficos e ideológicos” do comunismo (onde a célebre proposição
“as ideias dominantes duma época nunca foram senão as ideias da classe dominante”),
onde se fala “de ideias que revolucionam uma sociedade” (id. p. 44). Já que a
máquina a vapor revolucionara a produção industrial, esta discreção em torno
da razão – a ciência nunca é mencionada, o sábio enfileirando com o médico, o
jurista, o padre e o poeta na lista das “actividades que passavam por
veneráveis e consideradas com um santo respeito” (id. p. 25) – não é a desligar
do que se disse em relação à máquina. Esta é com efeito simultaneamente força
(vapor, energia) e razão (invenção no contexto largo da física e da química), e
pode-se pôr a hipótese de haver um jogo semântico em que o silenciamento da
razão e do engenheiro (mais claramente burgueses) permita que a expressão
“forças produtivas” – a que a máquina pertence – possa, juntamente com a
união do proletariado, dar ‘força’ à violência revolucionária do proletariado.
Quanto à razão, não creio ser injusto, sabendo-se da história posterior, se
disser que o Manifesto – que manifesta a ‘verdade’ histórica do partido comunista
– considera que esse partido já tem a ‘razão’ que basta para a revolução. O
início do 2º cap. como que denega o que no termo ‘partido’ há de ‘distinto’,
‘oposto a’, ‘parte’, ‘separado’, ‘particular’, para não reter senão o que há de
‘comum’ no termo ‘comunista’, ‘conjunto’ e ‘totalidade’ do movimento operário:
o partido-comunista, com um traço de união que dá origem a como que uma só
palavra em que a ‘parte’ se dissolve no ‘comum’, tem a razão das lutas
proletárias. O que a história leninista posterior manifestou: “praticamente,
os comunistas são portanto a fracção mais resoluta dos partidos operários de
todos os países, a fracção que arrasta todas as outras; teoricamente, eles têm
sobre o resto do proletariado a vantagem duma inteligência clara das condições,
da caminhada e dos fins gerais do movimento proletário” (id. p. 37). É o que
consuma, me parece, a unidade do título: tornar manifesta esta “resolução
arrastadora” e esta “inteligência” clara do partido-comunista, a sua violência e
a sua razão revolucionárias.
A abolição da propriedade privada
16. Vamos agora ao
2º capítulo, que tem uma composição muito diferente do primeiro: este
manifestava uma lição de história, de uma forma por assim dizer distante, da
distância da razão, dos argumentos, do pensamento filosófico e do seu vasto alcance.
Agora trata-se de polémica, da “posição dos comunistas” e da resposta às objecções
que se lhes põem, a certa altura o texto adopta um “nós/vós” durante cerca de
três páginas. O essencial desta “posição dos comunistas”, ponto fulcral do
futuro movimento marxista, é colocado de forma lapidar. “Os comunistas podem
resumir a sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada”
(id. p. 38). Sem dúvida que se trata duma consequência do 1º capítulo, da tese
da ultrapassagem das relações modernas de produção ou regime de propriedade
burguesa pelas forças produtivas modernas; não obsta que só aqui é que ela é
colocada e sustentada, e assumidamente como “posição dos comunistas”. Esta disjunção
entre ‘teoria’ e ‘estratégia', entre a leitura do passado e as questões do
futuro, dá-lhe obviamente um estatuto de mais discutível do que a lição de
história do 1º capítulo, mais susceptível portanto, tal como as 10 medidas do
final do mesmo capítulo, de submissão à regra da historicidade. Assim o
entenderam os sociais-democratas do Norte europeu, ao contrário da corrente
leninista, porque as diferentes condições históricas assim o impuseram a
ambos, ainda que em guerra mútua.
17. Ora, podemos
ver como Marx e Engels oscilaram nas suas previsões em torno desta futura
bifurcação dos marxistas. a) O final do Manifesto põe as suas esperanças
revolucionárias na Alemanha e no seu partido comunista, “porque a Alemanha se
encontra na véspera duma revolução burguesa, porque a cumprirá em condições
mais avançadas da civilização europeia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido
do que a Inglaterra e a França nos séculos XVII e XVIII, e que por consequência,
a revolução burguesa alemã não poderia ser senão o prelúdio imediato duma
revolução proletária” (id. p. 60, eu sublinho). b) No curto prefácio de 1872, é
silenciada a revolução (burguesa?) conduzida por Bismarck, mantendo o Kaiser
como imperador e sem ter havido revolução proletária nenhuma, e é a recente
Comuna de Paris que é a nova referência de experiência histórica para o movimento
proletário. c) Eles próprios observam no prefácio à edição russa de 1882, que
o Manifesto é silencioso em relação à Rússia, quando “hoje, [o czar] é [...] o
prisioneiro de guerra da revolução, e a Rússia está na vanguarda do movimento
revolucionário da Europa” (id. pp. 13-14), mas podemos verificar que este
surpreendente deslocamento das “condições mais avançadas da civilização
europeia” para um país em que “a propriedade fundiária burguesa” está ainda
“em via de formação”, ao confirmar-se historicamente em 1917, é feito
repetindo o esquema proposto pelo Manifesto para a Alemanha, o
duma revolução burguesa seguida de imediato pela revolução proletária. Neste
sentido, e na confirmação da tese central da abolição da propriedade privada,
é óbvio que Lenine é fiel ao Manifesto. d) Em 1890, no Primeiro de Maio, no
mesmo prefácio em que Engels cita o anterior de 1882, ele termina com a
evocação da jornada desse dia: “no momento em que escrevo estas linhas, o proletariado
da Europa e da América passa a revista das suas forças, pela primeira vez
mobilizadas num só exército, sob uma mesma bandeira e para um mesmo fim imediato:
a fixação legal da jornada normal de 8 horas, proclamada desde 1866 pelo
Congresso da Internacional em Genebra [e portanto no tempo ainda de Marx], e de
novo pelo congresso operário de Paris de 1889”. E termina: “Pudesse Marx estar
ao meu lado, para ver isto com os seus próprios olhos” (id., p. 18). É a
corrente social-democrata europeia que, apesar da “efemeridade” destas
conquistas segundo o Manifesto (acima, § 13), se encontra caucionada, antes, é
certo, da “revisão” da tese da abolição da propriedade privada. Embora se
possa também entender que seja o carácter internacional do movimento que é
aqui caucionado, algo que o Manifesto propõe firmemente desde o início,
resposta do proletariado à internacionalização da burguesia e do mercado.
18. Ora, a questão
da propriedade privada, avaliada segundo a regra da historicidade, que tem em
conta as circunstâncias do movimento histórico, foi tendo soluções diferentes
consoante estas. Abolida pelo Estado nas revoluções leninistas, isto é, em
países suficientemente atrasados do ponto de vista industrial e capitalista
para que essa medida se justificasse por causa da aceleração do próprio
processo de industrialização, em que o Estado e o partido tiveram um papel
de liderança necessário (embora não suficiente, veja-se África)198. Houve também abolição da propriedade
privada em certas circunstâncias políticas – como a nacionalização das fábricas
do francês L. Renault, colaboracionista com os nazis, após a última guerra –,
da mesma maneira que seriam a ter em conta, para uma discussão cabal da
questão, as diversas formulações jurídicas dessa propriedade (sociedades anónimas
por acções, por exemplo), a imposição de convenções colectivas de contratos
de trabalho, o desenvolvimento recente das técnicas de gestão, etc., tudo
modalizações mais ou menos ‘sociais’ da propriedade. Ora, ao nível mais geral
das relações entre as empresas privadas e o Estado, foi por a Inglaterra ter
sido a primeira nação a industrializar-se – em condições históricas particulares
das suas aristocracia e burguesia, condições essas que têm a ver também com o
seu carácter insular – que ela se tornou uma campeã da livre iniciativa, o
Estado não tendo tido papel significativo até à grande depressão dos anos 1930
(igualmente nos Estados Unidos); pelo contrário, o atraso dos países
continentais, França, Bélgica, Holanda, países escandinavos, todos de tradição
ocidental, obrigou os Estados desses países a tomarem iniciativas de liderança
variadas, em relação por exemplo à construção de caminhos de ferro ou à
criação de instituições de crédito estatais. Isto é, o papel maior ou menor do
Estado teve a ver com os coeficientes de atraso no desenvolvimento. Ou ainda,
a comparação do desenvolvimento industrial de dois grandes países atrasados
com tradições comunitárias, o Japão e a União Soviética, poderia mostrar
talvez como foi possível ao primeiro, importador de tecnologia ocidental, chegar
ao nível que se sabe jogando o jogo do mercado ao contrário do segundo, que
todavia se içou ao primeiro lugar na exploração espacial, sem dúvida por se
tratar, mesmo nos Estados Unidos, dum domínio estatal. Seja como fôr, o panorama
contemporâneo, e nomeadamente a implosão dos países comunistas e a grande
dificuldade em se desenvolverem aí dinâmicas empresariais, e ainda o
relativo atraso electrónico dos seus engenheiros, parece não permitir hoje
grandes dúvidas sobre a necessidade, nesta como noutras questões, da regra
não-dogmática da historicidade de que partimos. Porque justamente há aqui um
problema de fundo que a questão da propriedade privada mascara, e que tem a
ver com a segunda lição do marxismo que me parece de reter. Será o meu último
ponto, peço desculpa por não ter conseguido ser mais breve.
Economia e sociedade (sobre a proposição mais célebre
do Manifesto: “a história de qualquer sociedade até aos nossos
dias não foi senão a história de lutas de classes”)
20. Que dizer sobre
esta afirmação fundamental? A maior reticência, 150 anos após, seria sobre o
uso da noção de ‘classes sociais’ e sobre a sua universalidade histórica: é um
conceito onde – fora do seu alcance na definição do conceito económico de modo
de produção, e nesta proposição obviamente que vai muito além – se amalgamam
coisas importantes que as posteriores ciências das sociedades têm procurado
compreender: basta dar o exemplo das estruturas de parentesco, cuja teorização
por Lévi-Strauss há 50 anos me parece ser, após a teorização de Marx, o núcleo
mais sólido das ciências das sociedades europeias. Ora, é esse amálgama que explica,
creio, a dificuldade que já no Manifesto se percebe e que o marxismo posterior
sempre teve, em entender o fenómeno das nacionalidades, que continua crucial
ainda hoje. Mas julgo que se pode dizer, em abono do Manifesto, que a escravatura,
quer antiga quer moderna, e o proletariado do século XIX são provavelmente
as classes dominadas mais claramente demarcadas em toda a história. A grande
diferença é que a primeira é fruto claro da força da guerra, das sociedades
monárquicas ou de conquista, enquanto que a segunda, o Manifesto o diz, é fruto da
própria revolução industrial, da força mas sobretudo da razão, como a história
posterior mostrou.
21. Esta ressalva
fundamental não anula no entanto a verdade da proposição, que poderá ser
estendida até às sociedades primitivas sem classes sociais199
e que eu reformularia assim: “a história de qualquer sociedade até aos nossos
dias foi sobretudo história de guerras”, em que matizei o ‘não... senão’ em
‘sobretudo’ para ter em conta o enorme leque dos estudos actuais dos
historiadores. E julgo que se poderá estender ainda mais o seu alcance, já
que os humanos não inventaram a guerra, encontraram-na já como um fenómeno da
vida. Se se tem em conta que o número de moléculas de carbono, essencial a
todas as moléculas de que os vivos são compostos, é constante na biosfera e na
atmosfera, percebe-se que há um ciclo assim da transformação sucessiva do
carbono: o carbono do CO2 da atmosfera
é transformado pela fotossíntese na glicose das plantas, os herbívoros
alimentam-se destas para terem carbono nas suas células e por sua vez servem
de alimento à células dos carnívoros, donde resulta uma lei inacreditável da
vida, por assim dizer o seu b-a-ba: os animais têm que se comer uns aos outros
como condição mesma de serem vivos e de continuarem vivos. A grande lei da
vida é a lei da selva. Ora, ela é evidentemente inconciliável com a lei de reprodução
de cada vivo, do ponto de vista deste, as espécies animais tendo mil astúcias
para lhe escaparem enquanto vítimas e mil e uma para lhe obedecerem enquanto
predadoras. Isto é, a lei da selva comanda inclusivamente as anatomias de
predação e fuga de cada espécie, mas por outro lado, cada um dos animais, o
nome o diz, é o que dá animação à selva, é a fonte energética dela, se se pode
dizer, já que sem animais não há selva.
22. Seria um jogo
análogo entre duas leis impossíveis (sigo aqui na esteira do filósofo francês
J. Derrida) que eu quereria – ousarei dizer ‘substituir'? – contrapor à
proposição da luta de classes do Manifesto. Entre a repartição das mais-valias da
produção entre capital e trabalho, entre lucros e salários, há inevitavelmente
conflito: não há com efeito nenhum critério intrínseco rigoroso, aritmético,
económico ou outro, que decida dessa repartição, a qual é estruturalmente
aleatória e só pode ser decidida por uma luta, luta de classes aqui sem dúvida,
cada qual querendo obter o máximo possível, achando sempre que a outra parte
tem de mais, todo o capitalista quer maximizar os lucros, todo o assalariado
tem sempre mais desejos de comprar, de viajar, etc., o próprio sistema o
incita a isso permanentemente. As modernas convenções colectivas, conseguidas
em sequência das lutas sindicais durante a 2ª etapa da revolução industrial
e capitalista, são uma maneira política e democrática de regular essa repartição.
Enquanto que a abolição da propriedade privada leninista decidiu duma vez,
dogmaticamente: crendo fazê-lo em nome da sociedade, fê-lo em nome do
Estado. Isto é, a decisão não respondeu, nem podia, ao argumento do Manifesto contra o capital –
este é “um produto colectivo, [que releva] da actividade em comum de muitos
indivíduos e mesmo, em última análise de toda a sociedade” (p. 39) –, não
decidiu entre capitalistas e proletários, mas entre capitalismo privado e capitalismo
de Estado. Porque a nacionalização não faz desaparecer o capital, o Estado
terá que o acumular, ter lucros e investir, etc. No entanto, na Europa ocidental,
a corrente do marxismo reformista (e pouco importa aqui que se reclamassem
ainda ou já não de Marx) não se contentou apenas com a questão dos salários:
preocupou-se também com a da assistência na doença, com as férias e reforma,
com as condições de trabalho, de higiene e de segurança, com as condições
de habitação, etc. Ou seja, preocupou-se em obstar à maneira como o desenvolvimento
do capitalismo ameaçava dissolver a sociedade que lhe dava, como diz o Manifesto, todas as condições
para ele se desenvolver, mas sem pôr em questão a própria dinâmica desse
capitalismo, sem anular a lei de autonomia de qualquer empresa produtiva,
aquilo que é justamente o que dá ânimo, dinamismo à sociedade e que implica
sempre um duplo risco: técnico, relativo ao engenheiro (às “forças produtivas”),
e do capital, relativo ao economista (às “relações de produção”). Esta lei de
autonomia dinamizadora não permite dissociar nem opôr estas duas relações, não
há máquina sem capital nem capital sem máquina. É necessário que a qualidade
dada pelo engenheiro e o preço calculado pelo economista assegurem que o
aleatório essencial do mercado corresponderá ao investimento do capital, incluindo
os salários. A dinâmica estrutural da empresa depende desse risco. Por outro
lado, a sociedade é o tecido de todas as empresas (e de outras instituições)
e famílias, cuja dinâmica de reprodução é feita do conjunto de todas as diversas
dinâmicas de cada uma dessas unidades sociais, com as suas concorrências e
complementaridades também. As respectivas autonomias são um factor decisivo
da reprodução conseguida do conjunto, mas esta só se faz se as energias de
cada empresa estiverem dinamizadas. Esta correlação estrutural entre as duas
leis, será legível na palavra ‘privada’ na expressão ‘propriedade privada’:
esta só é ‘própria’ de alguém porque foi ‘privada’ do ‘comum social’, porque
este sofreu uma ‘privação’. É o que ignora a concepção romana de propriedade
que herdámos, que se excede do uso ao abuso.
23. Há pois um
conflito irredutível entre duas leis. Por um lado, a lei de autonomia de
cada empresa, que a pode tornar ‘cega’ e agressiva da sociedade de que é parte
privada: quer ao nível do engenheiro (poluição no ambiente em seu redor,
menor qualidade dos produtos, horários e ritmos de trabalho acelerados de mais,
etc.), quer ao nível do economista (salários baixos e lucros elevados, fuga
aos impostos e à segurança social, desemprego sem partilha do tempo de trabalho,
etc.); quer ainda a um nível acima dos dois – questão que presumo particularmente
grave e sem solução à vista: os discursos públicos (e não só publicitários)
dos meios de comunicação social que dependem da clientela das audiências,
cuja persuasão aliciante pode ser socialmente perversa, na medida em que
incitam indefinidamente a criação de desejos numa população jovem sem meios
para os satisfazer e é assim empurrada, quer para o crime, quer para a droga.
Por outro lado, a lei da reprodução da sociedade enquanto conjunto, que fornece a
qualquer empresa máquinas, energia, matérias primas, engenheiros, técnicos
e outros trabalhadores, o respectivo saber escolar ganho pela razão
histórica humana e até o próprio capital acumulado antes, tudo aquilo que se
tornou ‘próprio’ do capitalista por ‘privação’ do comum social. Uma empresa
capitalista só funciona apropriando-se do que a sociedade ‘reproduz’ e
devolvendo-lhe em seguida os seus produtos para que ela lhos compre.
Concorrência e conflito são essenciais (mesmo nas sociedades planificadas),
não apenas entre as empresas, mas entre cada uma delas e o conjunto da sociedade.
Mas nos dois sentidos, porque se as empresas não são dinâmicas, e para isso
têm que ser autónomas, a sociedade também não é dinâmica, envelhece, como
terá porventura sucedido às sociedades leninistas.
24. Este conflito
reflecte-se num conflito entre disciplinas: a economia, desmedidamente
desenvolvida, não deve ser senão uma disciplina social autónoma (como a
linguística ou as ciências jurídico-políticas) adentro da sociologia como
ciência das sociedades, mas esta parece incapaz da avaliação crítica do
discurso económico (para o que aliás terá contribuído a tese marxista da determinação
em última instância das estruturas sociais pelas económicas).
Uma nova Internacional (Derrida)
25. Eis hoje o
nosso dilema: o sistema financeiro actual das grandes empresas económicas, prosseguindo
os seus lucros de forma especulativa (ao espelho dos capitais e lucros, não
vendo nada para fora disso), ameaçam as sociedades de muito variadas formas, e
estas apresentam-se com os seus Estados nacionais extremamente fragilizados. O
movimento operário reformista europeu aprendeu, durante a segunda fase da
revolução industrial e capitalista, a regular os conflitos e a defender a
sociedade sem destruir a sua dinâmica, para isso dispôs de pensadores também.
Nesta 3ª fase, em que as comunicações electrónicas aceleram terrivelmente os
ritmos, está a desenvolver-se – em nome do chamado “pensamento único”, o que,
tal como o “partido único” de antanho (uma ‘parte’ não pode ser única), é um
conceito contraditório, não é pensamento, já que este não existiu nunca, na
longa história das civilizações, senão quando foi plural e polémico – está a
desenvolver-se um neo-liberalismo que procura abater todas as defesas das
sociedades contra a lógica estrita do mercado, defesas essas que são o que o
regulam e o tornam socialmente viável; sem elas, ele torna-se insocial, capaz
de destruir a sociedade que o suporta (a crise devastadora que esta
especulação abriu 10 anos depois). A chamada globalização do mercado, que o Manifesto pensou já como
internacional, implica a instauração de mecanismos mundiais de regulação
articulando-se aos estatais e nacionais, implica como tarefa prioritária a
instauração do que Derrida chamou uma nova Internacional: “uma transformação
profunda, projectada sobre uma longa duração, do direito internacional, dos
seus conceitos e do seu campo de intervenção; da mesma maneira que o conceito
dos direitos humanos se determinou lentamente no curso dos séculos através de
muitos sismos sócio-políticos (trate-se do direito ao trabalho ou de direitos
económicos, dos direitos da mulher ou da criança, etc.), também o direito
internacional deverá espalhar e diversificar o seu campo até incluir nele,
pelo menos se ele deve ser consequente com a ideia de democracia e dos direitos
humanos que proclama, o campo económico e social mundial, para além da
soberania dos Estados [...]. Uma “nova internacional” procura-se através destas
crises do direito internacional, ela denuncia já os limites dum discurso sobre
os direitos humanos que permanecesse inadequado, por vezes hipócrita, em qualquer
caso formal e inconsequente consigo mesmo enquanto a lei do mercado, a “dívida
exterior”, a desigualdade do desenvolvimento tecno-científico, militar e
económico mantiverem uma desigualdade efectiva tão monstruosa como a que
prevalece hoje, mais do que nunca, na história da humanidade. Porque tem que se
gritar, no momento em que alguns ousam neo-evangelizar em nome do ideal duma
democracia liberal que teria enfim chegado a si mesma como o ideal da história
humana: nunca a violência, a desigualdade, a exclusão, a fome e portanto a
opressão económica afectaram tantos seres humanos, na história da terra e da
humanidade”200.
26. Porque precisamos
de reaprender a pensar, a partir de Marx e contra Lenine, mas tendo em conta
muitos outros pensadores também, estamos aqui a avaliar a herança desses
nossos Antepassados. A história ensina-nos que as tarefas que relevam da
justiça social nunca ficaram garantidas para sempre, como o Manifesto presumiu
indevidamente: quero crer que há tarefas a recomeçar para cada nova geração.
192 Comunicação ao Colóquio
realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a 12-13 de Novembro
de 1998, 150 Anos do Manifesto do Partido Comunista. O Manifesto e o seu
Tempo,
Colibri, 2000, pp. 89-106.
193 K. Marx et F. Engels, Manifeste
du Parti Communiste, trad. de Laura Lafargue, Éditions Sociales, 1962, Paris,
p. 9-10
194 J.-L. Nancy (e J.-C.
Bailly), La comparution (politique à venir), Christian Bourgois,
1991, pp.70-75.
196 A saber: “a concentração
dos capitais e da propriedade fundiária, a sobreprodução, as crises, a fatal
decadência dos pequenos burgueses e dos camponeses, a miséria do proletariado,
a gritante desproporção na distribuição das riquezas, a guerra de exterminação
industrial das nações entre elas, a dissolução dos antigos costumes, das
antigas relações familiares, das antigas nacionalidades” (idem, p. 50).
197 Aliás, apenas a última
das dez medidas aplicáveis com a revolução se refere à “educação pública e
gratuita de todas as crianças” e à “combinação da educação com a produção
material” (id. p. 46).
198 A minha ideia é que terá
sido o fim dessa necessidade de recuperação, juntamente com as novas indústrias
electrónicas de comunicação social, que provocou, talvez com atraso, a implosão
impressionante do mundo leninista. Na China, parece que a manutenção da
estrutura burocrática e centralizada do Partido não relevará do ‘comunismo’,
mas da tradição chinesa de mais de 2 milénios de império burocrático e centralizado.
199 Segundo o antropólogo P.
Clastres, “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”, in
Clastres, Gauchet, Adler, Lizot, Guerra, religião, poder, Ed. 70, 1980.
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