1. A propósito de Bernard d’Espagnat, físico
teórico francês de vocação filosófica, falecido recentemente com 94 anos, José
Cutileiro escreveu no Expresso de 29 de Agosto o seguinte: “[...] as implicações filosóficas da física
quântica – das leis paradoxais que regem o mundo das partículas subatómicas,
onde causas não produzem necessariamente efeitos; partículas subatómicas podem
estar em dois lugares ao mesmo tempo; onde objectos separados por grandes
distâncias podem exercer efeito instantâneo um sobre o outro; onde o mundo não
existe, se nós não o observarmos – assim demonstrando que algumas noções
capitais da física tradicional e do bom senso estão erradas”. E mais adiante:
“D’Espagnat ele próprio negava que a física quântica pudesse dizer-nos fosse o
que fosse sobre a matéria”. Não pretendo pôr em questão o excelente antropólogo
e antigo embaixador que lamentei na altura junto do seu director que o Expresso tivesse acabado com as suas crónicas extremamente
cultas sobre “O mundo dos outros” por restrições financeiras, mantendo uns
tantos cronistas idiotas; creio que as duas citações são fidedignas[1], resumem
bem o que os físicos costumam dizer da mecânica quântica, mas é mais fácil
discuti-las do que as dum físico teórico que por regra não sabe grande coisa de
filosofia e fica muito perturbado, com tentações dogmáticas, quando sabe de
gente de fora a mexer nas coisas dele.
2. O interesse das duas citações é que elas
contradizem-se uma à outra: se a mecânica quântica não pode dizer nada sobre a
matéria, que estuda a física de Newton, então esta não está “errada”, como diz
a outra citação, e podemos deixar de lado o “bom senso”, já que desde
Copérnico, Galileu e Newton que ele foi fortemente abalado: não é o sol que
anda em redor da terra, como os nossos olhos o vêem todos os dias em que não há
nuvens, mas esta que gira em torno dum seu eixo. As leis paradoxais que
Cutileiro resume, são leis então de quê, se não o são da “matéria”? Dum mundo
que não existe se nós não o observarmos? Um “mundo” sem “matéria”? É esta noção
de “mundo” que é, não apenas paradoxal, mas errada, já que esta palavra serve
para designar algo de forte estabilidade, com “leis” que se repetem; leis
paradoxais aonde? aonde se “observam”, no laboratório em que se fazem explodir
núcleos de átomos e se seguem as trajectórias das partículas evanescentes que
resultam das acelerações a que são sujeitas, evanescentes já que a esmagadora
maioria sem tempo praticamente nenhum de subsistência. Nos aceleradores de
partículas do CERN não há “mundo” nenhum, nem “leis” aliás, nem viabilidade
para nenhum dos conceitos da física de Newton, que portanto não pode ser
“errada”, já que noutros laboratórios que experimentam movimentos de “matérias”
as suas leis continuam a ser reconhecidas, como automóveis e outras máquinas,
prédios e barragens, biologias e medicinas, continuam a funcionar sem paradoxos
quânticos.
3. Há assim um logro filosófico em que a Mecânica
quântica incorre, o de pensar que o que estuda das partículas à solta corresponde sem mais ao sub-mundo da matéria,
digamos, a uma espécie de infra-realidade dos átomos; mas já a propósito da era
de Planck, o astrofísico Hubert Reeves dizia que “nela, as palavras
‘temperatura’, ‘energia’, ‘massa’, ‘velocidade’, ‘tempo’, ‘espaço’ – o vocabulário
querido do físico, sem o qual ele
se sente nu – perderam o seu sentido” (H. Reeves, La
première seconde, Seuil, 1995, p. 131), acrescentemos-lhes ‘mundo’ e ‘matéria’.
Trata-se da questão da diferença abissal entre as leis da física macroscópica
(as tais decretadas “erradas” quando elas continuam a regular a experimentação
dos respectivos laboratórios) e os fenómenos do nível quântico: a ‘continuidade’
que os físicos postulam entre esses dois níveis é um ‘salto desmedido’, um
salto (das medidas, laboratoriais e irredutíveis) que não pode deixar de o ser
também nos respectivos conceitos, ainda que se seja físico teórico, como
d’Espagnat, desde que se tenha em conta que a física é estruturalmente
laboratorial.
4. Porque é que isto me interessa, eu que não sei
quase nada das vertigens da mecânica quântica? Pela razão fenomenológica
elementar (que eu pratico: Filosofia com Ciências) de que não existe nada no mundo que qualquer tipo de ciência
tenha descoberto que subsista simplesmente por si só, como ‘substância’, ainda
que “partícula”: tudo o que existe (não evanescente) é complexo, como julgo ser
a tese principal de Edgar Morin, é composto de vários elementos discerníveis. E essa complexidade, acrescente-se a Morin, é a
de duplos laços que lhe
regulam o movimento na cena de circulação que a reproduziu. Ora, a teoria do
átomo e da molécula corresponde ao nível mínimo da realidade em que esses
duplos laços se encontram, duplos laços justamente de partículas, respectivamente protões e neutrões no núcleo
atómico e electrões em torno dele. Estas partículas só subsistem ligadas por forças nucleares e electromagnéticas, que
serão o que lhes retira o carácter paradoxal das partículas aceleradas do CERN.
Serão estes dois tipos de força que anulam a paradoxalidade quântica das
partículas à solta: com efeito, é
a ligação pela força nuclear dos protões e neutrões que responde pela
propriedade essencial da matéria que está na base de toda a física newtoniana,
nomeadamente da força da gravidade, a chamada impenetrabilidade, que parece ignorada pelas partículas à solta e
será a primeira causa dos espantos que estas provocam nos físicos. Também as
partículas chamadas electrões têm que estar estabilizadas em seus átomos por
forças electromagnéticas para se poderem formar moléculas, e a partir daí haver
sólidos, líquidos e gases, astros e ser vivos. A mecânica quântica decretaria
“erradas” todas as outras disciplinas científicas, tal seria necessário para a
sua ‘cientificidade’?
5. É possível assim articular a Mecânica quântica
com a física clássica, recorrendo à fenomenologia das forças fundamentais, ao
seu efeito nas partículas dos átomos. Já agora, como colocar
fenomenologicamente a teoria da Relatividade, a outra grande teoria física que
se busca unificar com a Mecânica quântica? Acontece que ela também diz respeito
a partículas, os fotões, os quais são libertados por electrões dos átomos
quando mudam de nível energético e partem do sol à velocidade da luz – que são
eles! – duma maneira que a ‘matéria’ do universo (também) não consegue, como se
fosse aqui igualmente verdadeira a afirmação de d’Espagnat, que também a
Relatividade “não pudesse dizer-nos fosse o que fosse sobre a matéria” (também
os fotões não são ‘matéria’, nem sequer têm massa, mas dela provêm, como todas
as outras partículas quânticas). De qualquer forma, parece-me que os fotões não
‘obedecem’ aos paradoxos quânticos, já que irradiam à sua grande velocidade,
como se tivessem como ‘missão’ iluminar a terra e os outros planetas; pode-se
pôr a hipótese de terem o seu paradoxo próprio, o de tanto serem abordáveis
enquanto ‘partículas’ como enquanto ‘ondas’, como os fotões das outras ondas
electromagnéticas (das rádios aos telemóveis).
6. Pode este colocação fenomenológica ajudar a
perceber a dificuldade da questão da unificação da Física que se deseja e não
alcança, apesar de tantos lhe irem no encalço? Certamente que não, se esta
consistir numa equação universal que dê conta das duas novas físicas do século XX, como creio ser o
objectivo dos físicos, com a consideração anexa de que a física clássica,
“errada”, não teria nada a ver com ela, nenhum contributo a dar-lhe. Mas
sabe-se que quando se trata de movimentos com velocidades incomparáveis com a
luz e de movimentos de massas dos graves terrestres com dimensões incomparáveis
às das partículas, as equações principais respectivamente da Relatividade e da
Mecânica quântica, tendo em conta as diferenças de escala laboratoriais, reduzem-se às equações de Newton. Ora bem, essas diferenças
de escala são da ordem dos laboratórios, dos respectivos instrumentos de
medida, são elas que os tornam irredutíveis uns aos outros, isto é, creio eu, sem esperanças
da tal equação comum. Mas pode-se inverter a operação de redução. Se se tiver em conta que ambos os laboratórios,
da relatividade e quântico, são feitos de instrumentos de medida que, eles,
relevam da física de Newton, pode-se pensar que a unificação não deverá ser
conseguida a partir das duas teorias mais recentes mas daquela donde elas são
uma extensão de escala. Então será a equação newtoniana a universal
unificadora, tal como foi buscada desde Newton a Maxwell pelo menos, dotada de
duas extensões mais complexas
para as duas escalas das novas teorias físicas, as das partículas (a ‘extensão’
é a inversão da ‘redução’). É necessário, para que essa unificação se conceba,
ter em conta não apenas equações teóricas fora dos laboratórios e respectivas
escalas instrumentais, mas também o que fenomenologicamente a Física aprendeu
com a teoria do átomo e da molécula, prévia à das partículas. Seria a dimensão
fenomenológica da própria física que lhe faria falta mas isso por ‘culpa’ da
tradição filosófica que ela herdou dos Gregos e dos Medievais, logocentrista
(Derrida), que desde Platão (2ª parte do Fedro) pensa o pensamento como ‘interioridade’ e
menospreza a escrita sem a qual todavia ele não se comunica a outrem noutro
lugar e momento, menospreza-a por ser ‘exterior’; o mesmo se passa noutras ciências, como a Biologia molecular e neuronal, argumento sobre T. Avelar e A. Damásio http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/12/no-paradigma-da-biologia-falta-o-ser-no.html
Ora, o laboratório experimental de Galileu e
de Newton que introduziu a técnica no conhecimento desconstrói esse
logocentrismo, a que a geometria dos desenhos sempre escapara. Mas quando os
físicos teorizam, tendem a afastar-se do laboratório, a esquecerem-se dele, a pensarem já sem ele, como se não passasse de
andaimes de construção que se retiram e esquecem quando os prédios são
concluídos. Pensam fora do laboratório, como se reconstituíssem a
‘realidade’ sem ele: no nosso
exemplo, como se as partículas dos aceleradores fossem tais quais abaixo dos
átomos e dos seus núcleos que se fizeram explodir, sem interrogar a necessidade
dessa explosão laboratorial, o papel das forças nucleares na retenção dessas
partículas que justifica a impenetrabilidade da ‘matéria’, a tal que d’Espagnat
sabia não ter lições a receber da Mecânica quântica.
7. Há que dizer que quem assim fala, sem ser
físico nem químico, teve todavia uma licenciatura em engenharia civil (IST) na
sua juventude, há quase 60 anos (onde é certo que não teve aulas sobre as novas
físicas). Fiquei contente de ter escrito este texto, coligindo coisas que até
aqui estavam esparsas nas minhas tentativas, finalizando enfim um argumento de
Fenomenologia física (secção da Filosofia com Ciências em que estas assumem um papel filosófico) que prosseguia há pelo menos 15
anos. Bem haja, José Cutileiro! O texto a que este dá acabamento foi
escrito sob a égide de Prigogine, em 18/10/2017
[1] J. Cutileiro explicou-me contudo que, no contexto da segunda citação, a palavra ‘maéria’ referia-se à questão da existência ou não de Deus. Salve-se assim d’Espagnat da contradição que lhe atribuí, mas o argumento não depende dela, que serviu apenas, e felizmente, para despoletar o pensamento.
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