1. Na instrutiva entrevista a Maria
de Sousa e Manuel Sobrinho Simões por Anabela Mota Ribeiro sobre o cancro (rev.
2 do Público de 26 julho), a
primeira fez vários apelos à diversificação das perguntas das investigações
científicas. Dirigia-se aos cientistas, é certo, jovens nomeadamente, mas
acontece que as perguntas científicas relevam do paradigma e este tem uma
dimensão filosófica escondida aos olhos dos cientistas, dimensão essa que
contém um erro que interfere nas perguntas experimentais que eles fazem.
Trabalhando em Filosofia com
Ciências, com a dimensão filosófica delas antes de se diferenciarem em ciências
com a invenção dos laboratórios, proponho aqui a minha pergunta.
2. Ao ler textos de biologia molecular
e de neurologia, fiquei admirado de verificar que dão sempre um salto por cima
da anatomia; o título do livro de M. Sobrinho Simões citado na entrevista (Gene,
célula, ciência, homem) ilustra-o
bem: dos ‘genes’ e das ‘células’, a ‘ciência’ passa logo para o ‘homem’ (e a
mulher, claro), ou seja, para o organismo, como se a anatomia não estivesse
entre esses dois níveis, o básico e o geral. Trata-se a descoberta extraordinária
da genética como se ela determinasse tudo o mais e não houvesse caminhos entre ambos
os níveis. A entrevista fala de órgãos diferentes, mas enquanto susceptíveis de
serem afectados por cancros, não em relação à sua especificidade anatómica.
Creio que, além do cartesianismo da compreensão do complexo a partir do simples
(contra o qual se levantou E. Morin com o motivo de ‘complexidade’),
reflecte-se aí uma atitude filosófica europeia (que vem de Platão e
Aristóteles) em que o ‘interior’ é determinante sobre o ‘exterior’, donde resulta a dificuldade de compreender as
incidências do ambiente ecológico sobre o organismo.
3. Eis o que me parece ser a lógica
da evolução, tal como a deduzi
dessas leituras. Os genes dos unicelulares eucariotes primitivos têm como papel
regular o metabolismo para restabelecer as suas diversas moléculas complexas
admitindo moléculas exteriores; os ribossomas que jogam na síntese dessas
proteínas degradam-se quimicamente, o ADN permanece o mesmo no núcleo para
quando voltar a ser necessário. A partir das colónias de unicelulares,
iniciou-se um processo de ‘aquisição colectiva’ de moléculas para todas as
células, as quais se especializarão em tecidos e órgãos com o objectivo único
de facilitarem a
alimentação molecular de todas as células em condições ecológicas mais exigentes (além de se defenderem de serem comidos). É que
para os animais só noutros vivos – plantas (que receberam carbono do CO2
pela fotossíntese) para os herbívoros e plantas e animais para os carnívoros –
é que se encontram as moléculas orgânicas de que precisam: lei da selva. Esta determina os dois sistemas na anatomia de
todas as espécies animais, com ou sem vértebras: um de nutrição e outro de
mobilidade, encabeçados pela boca e ambos regulados pelo cérebro, eles visam
essencialmente a reformulação incessante das células (predação) e evitar ser presa
de outrem. A lógica da anatomia de cada espécie pode dizer-se como uma espécie
de contrato que todos os órgãos fazem entre si para alimentarem
democraticamente todas as células. Com efeito, a circulação do sangue, após o
processo digestivo que moleculiza os pedaços comidos, vai a todas as células
levar moléculas. É esse contrato que os cancros rompem.
4. Se os genes têm como papel regular o
metabolismo e restabelecer as suas diversas moléculas complexas a partir da
chegada de novas moléculas pelo sangue, poder-se-á deduzir que seja a relação
deles com o que chega do sangue que há que analisar em termos de saber como se
canceriza. Talvez que entre as várias regulações da homeastasia pelo velho
córtex endócrino se encontre a do tamanho dos vários órgãos e tecidos e que
esta se exerça na relação sangue / células alimentadas, com
papel quiçá das esteroides (http://filosofiamaisciencias.blogspot.pt/2008/02/evoluo-e-sexualidade.html)
e que o neo córtex, adequado às estratégias no ecológico e no social,
intervenha (um cérebro duplo, não dois à parte, Changeux). No caso humano, o
que se chama psico-somático é provavelmente aí que tem lugar, maneira possível
de qualquer ‘stress’ poder influir na distribuição sanguínea das moléculas.
Quando a evolução chegou aos humanos e estes progrediram em usos e saberes até
hoje, já o essencial das anatomias estava fixado em prol da predação e das
artes de ataque e defesa em vista do objectivo da economia estrutural: alimentar
todas as células.
5. Não sei se já isto é aceitável.
Sou mais atrevido todavia na maneira de responder a uma questão do livro
admirável de M. Barbieri, Teoria semântica da evolução (questão que ele não põe), em que o papel dos
ribossomas ARN na constituição dos unicelulares foi prévio ao dos
desoxi-ribonucleicos ADN: como é que estes são retidos no núcleo para se manterem
os mesmos sem degradação? A crer na nomenclatura, perde um ‘oxi’, sei lá como:
dos ARN se fez o ADN. Mas haverá, hoje vai-se sabendo, processos de retrotranscrição
que se acrescentam aos genes: então não poderá ser que as mutações genéticas,
em vez de serem puramente casuais (o que aflige muito a lógica), sejam resultado de processos desses que sejam,
por assim dizer, a inversão do normal ADN -> ARN, este será por vezes
transgredido, repetindo os começos? Se for assim, o processo da evolução não
será puro acaso de mutações genéticas que batem certo sabe-se lá porquê, mas
jogo celular em órgãos anatómicos que também recebem impactos da cena
ecológica, de dentro para fora e de fora para dentro. O mecanismo essencial da
retenção dos genes na reprodução celular poderá ter tido infracções positivas
que repetiam as origens unicelulares e deram as evoluções. Ora bem, não poderão
essas infracções continuarem a ocorrer frequentemente mas de forma negativa,
por exemplo por vias psico-somáticas de inadaptação ao social, caso por caso?
Serão isso muitos dos cancros?
6. Peço desculpa de me meter nisto, mas evitei o meu
jargão fenomenológico (ser no mundo, doubles binds, etc). Claro que não tenho a menor ideia de como
poderá haver nesta especulação algo que interesse as hipóteses laboratoriais,
limito-me a deduzir de coisas que leio na divulgação corrente. Mas estou convencido
de que todas as ciências são marcadas negativamente nos seus paradigmas
teóricos pelo predomínio do interior sobre o exterior de que falo no § 2, a que
Heidegger chamou ontoteologia
e Derrida logocentrismo; só a
matemática e as técnicas de medida laboratoriais lhe escapam, mas não a teoria
que interpreta os resultados depois de ter imaginado a experiência, nem sequer
a maior parte da filosofia que se faz ainda hoje. Será esse erro filosófico que
impede de entender coisas como a influência do psicosomático nos cancros. No
caso dos neurologistas (Eccles, Changeux, Edelman, Damásio, Kandel), ninguém dá
importância à aprendizagem, da linguagem por exemplo maior, que estrutura o
cérebro com o que lhe vem de fora, um órgão simultaneamente biológico e social. É certo que só os cientistas é que sabem o que
se faz nos laboratórios, mas as suas teorias não são imunes à filosofia que
inventou a definição e a argumentação teórica. Esta pergunta diferente atesta a dificuldade do diálogo, mas eu achei que
tinha alguma responsabilidade cívica em fazê-la.
Para mais ampla curiosidade eventual
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